São Paulo, quinta, 2 de outubro de 1997.



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Vão livre desaparece na festa de 50 anos


Museu, que P.M.Bardi teria chamado de "lindo sonho de mulher", flutua sobre colunas, com vão livre de 70 metros de extensão e 8 metros de altura, para preservar vista que alcançava o viaduto do Chá antes da construção de edifícios


MARIO CESAR CARVALHO
da Reportagem Local

O urbanista uruguaio Joaquim Eugênio de Lima (1845-1902), empreendedor que abriu a avenida Paulista em 1891 e loteou a região dos Jardins, deixou uma exigência ao morrer: doaria o terreno do parque Trianon à prefeitura desde que preservassem o belvedere -a vista que, antes da construção dos edifícios, alcançava o viaduto do Chá, no centro da cidade.
É por isso que o prédio do Masp flutua sobre colunas, com um vão livre de 70 metros de extensão e 8 metros de altura.
Diz a lenda que a arquiteta Lina Bo Bardi imaginou o prédio ao passar pelo terreno vazio, onde antes havia um salão de bailes, demolido em 1957.
No cinquentenário do Masp, a vista exigida por Eugênio de Lima e o vão livre projetado por Lina para emoldurá-la sumiram. O espaço sob o museu foi ocupado por uma espécie de tenda nas exposições de Monet e Michelangelo.
Não é o primeiro desaforo que o prédio sofre, na definição do arquiteto Marcelo Ferraz, que trabalhou com Lina durante 15 anos e é conselheiro do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. "Aquele cirquinho está desfigurando o Masp. Aquela treliça metálica parece posto de gasolina", diz.
O primeiro ataque ao prédio, aliás, é anterior a sua própria existência. Partiu do próprio marido da arquiteta, Pietro Maria Bardi. Lina costumava contar que, ao ver o projeto pela primeira vez, em lugar de se assombrar com o arrojo do desenho, ele teria dito em tom de desdém: "É um lindo sonho de mulher...", como se aquilo fosse impossível de ser construído.
Fácil de construir, o projeto não era. E não só por causa das dificuldades técnicas. Faltava dinheiro. Tanto que o projeto de 1957 só começou a sair do papel três anos depois. Foi o prefeito Adhemar de Barros quem resolveu bancar a idéia de Lina.
Ela já havia desistido do projeto, quando Adhemar resolveu erguer o museu. Em 1958, Lina foi para Salvador, onde transformou o Solar do Unhão, um casarão do período colonial, no prédio que abriga hoje o Museu de Arte Moderna da Bahia.
O Solar do Unhão, onde convivem o antigo e o novo, seria o germe do projeto do Sesc Pompéia, que ela iniciaria em 1977.
Em Salvador, Lina conviveu com todo o caldo cultural que resultaria no tropicalismo -Glauber Rocha (há versões de que ela fez parte da cenografia de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e não assinou), Caetano Veloso e Gilberto Gil. Voltou em 1960 para fazer o Masp.
Essa convivência com o Nordeste brasileiro e com a arquitetura colonial seria decisiva na carreira de Lina.
Nascida em Roma, a 5 de dezembro de 1914, ela acreditava que o design e a arquitetura populares do Brasil poderiam dar a resposta ao impasse pelo qual passava a arquitetura moderna. À essa época, a arquitetura dita racionalista havia virado sinônimo de bancos envidraçados, todos insípidos.
Lina achava que o choque do concreto com a precariedade da arquitetura brasileira era uma das respostas a esse impasse. A simplicidade das linhas do Masp e um certo brutalismo derivam da convivência com o Nordeste.
Era o que ela chamava de "arquitetura pobre", não no sentido monetário, mas se aproximando da idéia de que menos pode ser mais.
"Acho que no Museu de Arte de São Paulo eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais", escreveu.
Havia também o impasse técnico. Em 1960, não havia um vão livre em concreto de 70 metros no Brasil. Colocá-lo sobre um túnel, o da avenida 9 de Julho, na região central de São Paulo, era ainda mais temeroso.
O impasse técnico foi resolvido pelo José Carlos de Figueiredo Ferraz. Foi ele que conseguiu tirar "o lindo sonho de mulher" do papel.
Figueiredo Ferraz, que seria prefeito de São Paulo no início da década de 70, topou fazer o projeto de cálculo estrutural de graça. Foram oito anos de obras, entre 1960 e 1968.
Nesse período, o projeto do Masp sofreu várias alterações, segundo o engenheiro Roberto Rochlitz, que trabalhou com a arquiteta durante a construção.
A mudança mais importante ocorreu na fachada, segundo Rochlitz. O Masp não foi projetado com paredes de vidro. A fachada, originalmente, era de placas de concreto. Houve a mudança porque as placas não deram certo -rachavam no meio por causa da altura. "Foi aí que Lina decidiu usar o vidro", conta Rochlitz.
Alterações menores eram comuns. Lina trabalhava num barracão junto ao canteiro de obras na avenida Paulista. Lá, ela ia detalhando o projeto.
Era muito simpática com os peões e dura com engenheiros e outros mandachuvas, segundo Rochlitz. Quando não queriam executar o que ela propunha, recorria a Edmundo Monteiro, presidente do museu no período, que reclamava diretamente com o prefeito -Adhemar de Barros ou Faria Lima.
No dia 11 de novembro de 1968, o prédio foi inaugurado pela rainha Elizabeth 2ª, que visitava o país.
Começaram logo após a inauguração os atritos que se estendem até hoje. Lina, que se definia como "militarista, stalinista e antifeminista", não concordava com o tipo de programação que seu marido Bardi planejava para o museu, conservadora demais, segundo ela.
Lina dizia que não havia feito um museu para as belas-artes, para o século 19, mas para as reformulações estéticas que ocorreram no século 20 e, particularmente, nos anos 60. Em 1969, ela organizou uma mostra antológica de design brasileiro para o Masp, batizada de "A Mão do Povo Brasileiro", com objetos de todo país.
Logo em seguida, rompeu esteticamente com Bardi. Enquanto ele bajulava poderosos para obter recursos para o museu, Lina se ligava ao que havia de mais contestador na cultura brasileira -o teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa.
Para o Oficina, Lina fez em 1969 a cenografia das peças "Na Selva das Cidades", de Brecht, em que aparecia o primeiro nu frontal feminino do teatro brasileiro, e de "Gracias Señor", em 1971.
Amigos de Lina contam que nesse período ela não frequentava o museu por discordar do que era mostrado. Aproximou-se da ALN (Aliança Libertadora Nacional), grupo que partiu para a guerrilha no final dos anos 60 para combater o regime militar. Nos anos 70 chegou a responder um Inquérito Policial Militar para explicar suas supostas ligações com o líder guerrilheiro Carlos Marighella. Acabou absolvida.
Lina não fazia nada casualmente, segundo o arquiteto André Vainer, que colaborou com ela no projeto do Sesc Pompéia.
Os vidros da fachada, o cavalete usado para expor os quadros (em vidro e concreto) e o tipo de material empregado no prédio (o mais simples possível) são consequência do conceito de museu que ela queria imprimir ao Masp.
Lina, que morreu em 1992, deixou algumas pistas sobre o que sonhava para o Masp. Queria romper com a noção de museu do século 19, com paredes, sequência cronológica e salas para diferentes estilos. Ele achava que esse tipo de museu, que conhecia desde sua infância em Roma, era inadequado para o "Novo Mundo", para o Brasil.
Ele queria luz e ar puro na arte, como disse num dos textos sobre o Masp: "Um recanto da memória? Um túmulo para múmias ilustres? Um depósito ou um arquivo de obras humanas que, feitas pelos homens para os homens, já são obsoletas e devem ser administradas com um sentido de piedade? Nada disso. Os museus novos devem abrir suas portas, deixar entrar o ar puro, a luz".
A fachada de vidro, hoje transformada em cartaz publicitário, tinha essa função -deixar a luz entrar, fazer com que o museu fosse atravessado pela vida da cidade.
Museus revestidos de vidro eram uma inovação internacional em 1957, segundo André Vainer. O arquiteto alemão Mies van Der Rohe só projetaria a Galeria Nacional de Berlim em 1962. Museus modernos eram raríssimos. Existiam dois famosos: o Guggenheim, em Nova York, e o Museu do Século 20, em Tóquio.
O Guggenheim segue um projeto de Frank Lloyd Wright encomendado em 1942, mas o prédio só ficou pronto em 1959. O museu japonês é de Le Corbusier, pioneiro da arquitetura moderna, e foi erguido entre 1957 e 1959.
O caráter inovador do Masp é reverenciado internacionalmente. No momento, estão sendo feitas 30 teses sobre Lina, nos Estados Unidos, Holanda e França, entre outros países, segundo Marcelo Ferraz.
"O Masp provoca espanto entre os pesquisadores porque quebra o conceito cronológico de museu", afirma Vainer.
O rompimento com a cronologia não era mero capricho da arquiteta. Ela não via sentido nesse tipo de divisão -arte do século 16, arte do século 17 e assim por diante.
Sua idéia era colocar num mesmo espaço toda a história da arte, com as obras flutuando sobre cavaletes feitos de concreto e vidro. Desse choque nasceria um novo olhar, uma nova forma de encarar a arte.
Lina tinha uma clareza espantosa nas definições: "O fim do museu é o de formar uma atmosfera, uma conduta apta a criar no visitante a forma mental adaptada à compreensão da obra de arte, e nesse sentido não se faz distinção entre uma obra de arte antiga e uma obra de arte moderna", escreveu sobre seu projeto para a antiga sede do Masp, na rua 7 de Abril, na região central de São Paulo.
Para o arquiteto Marcelo Ferraz, o projeto de Lina para o Masp começou a ser distorcido quando retiraram os cavaletes de vidro. Eles sumiram em novembro do ano passado com a exposição "Arte Italiana em Coleções Brasileiras".
"Colocaram rodapés, janelas falsas e portas falsas na exposição de arte italiana. É ridículo. Parecia um palacete do século 17. O Masp era único e, quando jogaram os cavaletes fora, transformou-se em um museu igual a qualquer outro", diz Ferraz.
Júlio Neves, presidente do museu, diz que os cavaletes voltam a ser usados já na retrospectiva que começa hoje.
A idéia do quadro flutuante começou a ser experimentada na antiga sede do Masp.
O prédio era do francês Jacques Pillon, mas os andares do museu foram reformados por Lina. Nele, os quadros já eram expostos em painéis suspensos por tubos que desciam do teto, uma espécie de rascunho do que seriam os cavaletes do Masp.
Lina queria acabar com o esnobismo dos museus. Para ela, o Masp teria de falar "à massa não informada, nem intelectual nem preparada".



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