São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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E se...

as Copas de 42 e 46 tivessem ocorrido?

A Argentina, o melhor time do mundo na época, venceria os dois Mundiais, suas massas não se sentiriam tão desamparadas, o peronismo seria desnecessário e não haveria o panelaço que derrubou o governo em 2001

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Não tivesse ocorrido a Segunda Guerra Mundial (1939/45), que, por sua vez, impediu a realização de duas Copas, não teriam ocorri­ do igualmente os "panelaços" que derrubaram, em 2001, o governo Fernando de la Rúa, até porque não haveria a crise que está jogan­ do a Argentina ladeira abaixo. Delírio de um argentinófilo? Sim, puro delírio. Mas com uma pequena base nos fatos. Para explicar, voltemos um pouco no tempo. As duas Copas que não puderam ocorrer por causa da Guerra foram as de 42 e 46. O que acontecia nessa época aqui neste fim de mundo que é o Cone Sul da América Latina? No campo político, estava nas­ cendo o mais bemsucedido mo­ delo de populismo, um modo de fazer política que logo se tornaria hegemônico em todo o subconti­ nente. Perdura até hoje, por mais que especialistas de alto nível o dêem por morto e sepultado, ape­ nas para ele ressuscitar adiante. A versão argentina de populis­ mo chamavase (chama-se ainda) peronismo, tomado do nome de Juan Domingo Perón, o general que seria três vezes presidente da República, abriria as portas da po­ lítica para a classe operária (os "descamisados") e morreria no exercício do cargo, em 1974. No campo de jogo propriamen­ te dito, o futebol argentino vivia, nos anos 40, sua fase de ouro, con­ forme a descrição de Rodrigo Ber­ tolotto, Rodrigo Bueno e Sérgio Teixeira Jr., que, em caderno es­ pecial da Folha, fizeram uma si­ mulação das Copas não disputa­ das. A Argentina ganharia ambas. Aqui também, admitem os au­ tores, há um pouco de delírio, mas há mais ciência. Foram feitos mais de mil cálculos e analisadas 387 partidas de 39 seleções. Simulação ó parte, o fato é que o futebol argentino do período in­ cluía figuras que sempre parece­ ram a este repórter muitos mais monumentos ambulantes do que gente de carne e osso. Refirome, por exemplo, a Pedernera, More­ no, Loustau e Sastre (este jogou no São Paulo). Explico: vi jogar Pelé e Maradona, os dois princi­ pais monstros sagrados na última metade do século passado. Foram excepcionais e, "argentinofilia" ó parte, sou obrigado a admitir que Pelé era melhor. Mas, por têlos visto jogar, sei que tanto um como o outro erra­ vam, pisavam na bola, perdiam gols feitos e assim por diante. Pedernera e cia., ao contrário, não vi jogar. Apenas ouvi falar, li a respeito. E tudo o que se conta de ídolos, pelo menos os antigos, ex­ clui os maus momentos. Logo, tu­ do o que se diz deles leva a crer que jamais erraram um lance. Só monumentos não têm pecados. O que tem a ver o nascente po­ pulismo de Perón com os triunfos que a seleção argentina obteria nos Mundiais de 1942 e 1946? Simples: o peronismo talvez se fizesse desnecessário. Todo brasi­ leiro conhece a paixão do argenti­ no, primeiro por ele próprio, logo depois pelas coisas da Argentina em geral, futebol ó frente. Essa paixão exige que o argenti­ no se afirme perante o mundo, dia sim, outro também. Ou porque tem "a maior avenida do mundo" (a Nueve de Julio) ou porque tem o melhor futebol do mundo ou porque tem Evita Perón, a mulher de Perón, que se tornaria "Maria Eva de los desamparados". Para parte dos argentinos, quase uma santa, altura a que se ergueu por­ que morreu cedo, de câncer, quando morava na Casa Rosada, sede do governo, tal como ocorre­ ria depois com o general. Perón ascendeu ao trono em 46. Se a Argentina tivesse ganho a Co­ pa de 42, suas massas talvez não se sentissem tão desamparadas a ponto de rezar por "Maria Eva" e aclamar um caudilho. Não fosse pela guerra que bloqueou as Co­ pas, a Argentina não teria enchido as arcas de seu Tesouro como "ce­ leiro" do mundo, como a chama­ vam então, por vender seus ini­ gualáveis trigo e carne aos famin­ tos de um planeta em chamas. Perón gabavase de não poder caminhar pelos corredores do Te­ souro, tantas eram as barras de ouro ali acumuladas. Foram elas que financiaram as políticas po­ pulistas, que transformaram Pe­ rón em um mito que sobreviveu ó derrubada (1955), a 18 anos de ba­ nimento e até a morte. Essa mitologia alimentou uma certa necrofilia em que a Argenti­ na se especializou: roubaram o cadáver de Evita, roubaram tam­ bém o de Aramburu, um dos mi­ litares que derrubou Perón, corta­ ram as mãos do cadáver de Perón. Neste delírio, é possível supor que a anomalia política argentina tivesse relação com a anomalia fu­ tebolística. Por que o melhor fute­ bol do mundo, como era o argen­ tino dos anos 40, só viria a ganhar uma Copa em 78, em circunstân­ cias esportivas polêmicas (o su­ posto suborno de jogadores pe­ ruanos) e em circunstâncias polí­ ticas desgraçadas (uma das mais sórdidas e violentas ditaduras de uma história sempre violenta)? Meu delírio só não tem resposta para uma pergunta: o que aconte­ ceria na Copa de 50 se tivessem si­ do disputadas as de 42 e 46, venci­ das ambas pela Argentina? A final só poderia ser Brasil e Argentina. Estaria em jogo não só a supre­ macia no campo mas a suprema­ cia na América do Sul, que os dois países disputaram até o início dos anos 80, quando o peso físico, po­ pulacional e econômico do Brasil vergou os dirigentes argentinos (a população é outra história). Em 50, os brasileiros eram, aos olhos argentinos, muito mais "macaquitos" do que nos anos posteriores. Seria impensável que negros pudessem vencer brancos. Um confronto entre Danilo, Bauer, Zizinho, Ademir etc., num lado, e Pedernera, Sastre e More­ no e cia. do outro, seria o maior épico de todos os tempos. Ainda mais que Pelé e Maradona não se encontraram em um estádio e ne­ nhum dos muitos monstros sa­ grados produzidos de um lado e do outro teve a dimensão dos no­ mes de 50 ou de Pelé e Maradona. Uma pena. A final da Copa de 50 entre Brasil e Argentina, qual­ quer que fosse o resultado, foi o melhor jogo que não houve. Ah, ia esquecendo: por que não teria havido panelaço em 2001 se a Argentina ganhasse as Copas de 42 e 46? Porque, neste delírio, elas substituiriam o peronismo como afirmação da Argentina ante o mundo e não seria preciso um pe­ ronista "fake" como Menem para arruinar o país e causar os panela­ ços que derrubaram seu sucessor. Suspeito que 11 de cada 10 ar­ gentinos preferiria Pedernera a Menem.



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