São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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JOÃO PAULO 2º

BIOGRAFIA

Jovem Karol Wojtyla queria ser poeta

Atleta e ator na juventude, católico clandestino no comunismo e doutor em filosofia, Karol Wojtyla foi o primeiro papa eslavo na história da igreja

GERARDO MELLO MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em cerca de 2.000 anos e depois de 263 ocupantes da cadeira de São Pedro, Karol Wojtyla, um polonês, foi o primeiro papa eslavo na história da igreja. Sua eleição quebrou também uma tradição de quase meio milênio: foi o primeiro papa não-italiano desde Adriano 6º, um holandês, que reinou de 1522 a 1523.
Oriundo de família da pequena classe média -seu pai era oficial reformado do exército- perdeu cedo a mãe. Cursou o primário em Wadowice, onde nascera, a 18 de maio de 1920, e lá fez o curso ginasial, destacando-se nos estudos e nos esportes.
Era um jovem e belo atleta, com seus brilhantes olhos cinza-azul e seu ar de galã, com um sorriso puro e permanente. Queria ser poeta e dramaturgo. A guerra o surpreendeu no primeiro ano de universidade, quando mal começara o curso de língua polonesa e literatura. As tropas de ocupação alemã fecharam a universidade.
Tinha 20 anos quando o pai morreu em 1941. Decidiu tornar-se padre. Entrou para o seminário. Terminada a guerra, libertada da ocupação alemã, a Polônia conheceu outro tipo de ditadura: o regime comunista, que implantou no país a perseguição religiosa. Mesmo assim, o seminarista Wojtyla continuou a estudar na clandestinidade.
Graduado com distinção em teologia, foi ordenado padre pelo cardeal Adam Sapieha, em Cracóvia. Transferido para o famoso Angelicum, a Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino, em Roma, doutorou-se em filosofia, com uma tese sobre o conceito de fé em São João da Cruz. Voltou à Polônia e à sua Universidade de Jagiellonian para cursar teologia.
Ocupou-se, então, do pensamento dos existencialistas alemães, voltando-se para a obra também de Gabriel Marcel. Mergulhou nas obras de Kierkegaard, de Martin Heidegger, dos russos Chestov e Soloviev, detendo-se na aventura filosófica de Max Scheler, sobre a qual escreveu sua famosa tese de doutorado.

Presença política
Em 1958, é nomeado por Pio 12 titular de Ombi e auxiliar da Arquidiocese de Cracóvia. Recebeu a notícia de sua ascensão ao bispado quando se encontrava numa competição de remo, com um grupo de estudantes, num fim de semana. Em 1964, Paulo 6º o nomeia arcebispo de Cracóvia, no auge da perseguição comunista aos católicos na Polônia. Tornou-se, então, uma presença política atuante no país.
Em junho de 1967, Paulo 6º o nomeia cardeal. Já tinha, a esta altura, publicado um trabalho de repercussão em toda a Europa, "Amor e Responsabilidade" -um tratado sobre sexualidade.
Chegou ao Concílio Vaticano 2º (1962-1965) com alta reputação teológica e cultural, respeitado como mestre de ética nos círculos universitários. Foi eleito membro da Comissão Preparatória do concílio, exerceu uma influência especial na contribuição ao debate sobre liberdade religiosa.

Oitava tentativa
Nunca se sabem exatamente as manobras e as peripécias que resultam na eleição de um papa. No conclave de outubro de 1978, que elegeu Karol Wojtyla, por exemplo, falharam as tentativas de consenso em torno de um nome italiano. Nos diversos escrutínios, nenhum deles teria alcançado o quórum majoritário necessário.
Teria sido apenas na oitava tentativa que se chegou à escolha definitiva do relativamente jovem cardeal polonês. A eleição teria sido por maioria avassaladora: 103 dos 109 cardeais votaram nele.
Em homenagem a seu antecessor, adotou o nome de João Paulo 2º. Como João Paulo 1º, dispensou a pomposa e milenar cerimônia de coroação, e tomou posse no meio do povo, na praça São Pedro, adotando apenas o título de "pastor universal da igreja". Era o dia 21 de outubro de 1978.
A 13 de maio de 1981, foi gravemente ferido a bala por um jovem pistoleiro turco, Mehmet Ali Agca. Hospitalizado, teve uma longa convalescença que durou cerca de cinco meses.
Mais tarde teria um encontro dramático e sigiloso com o jovem que pretendera assassiná-lo, dando-lhe seu perdão e sua bênção. Até hoje não estão plenamente esclarecidos os nomes dos mandantes do atentado, parecendo certo que houve uma conexão do Partido Comunista da Bulgária, cumprindo ordens da KGB soviética.
Outras fontes católicas levantam também a acusação de que a CIA, interessada na eliminação do papa, teria articulado a agressão do terrorista turco, acumpliciada com a própria KGB.
Ainda convalescente do atentado, dirigiu à cristandade a encíclica "Laborem Exercens". Nesse documento, denuncia a falsidade do projeto do marxismo para a sociedade e para os trabalhadores e profetiza o próximo fim dos regimes fundados na precária superstição científica da ideologia de Marx. Ao mesmo tempo, condena a falsidade da chamada ordem capitalista, cujo fim também preconiza, anunciando a necessidade de uma nova ordem, fundada sobre os direitos dos trabalhadores, sobre a dignidade do trabalho e o primado do ser humano.

Novo milênio
Em 1988, João Paulo 2º lançou a encíclica "Sollcitudo Rei Socialis" (Preocupação com a Realidade Social), propondo uma nova ordem social, enfatizando problemas de distribuição de renda e políticas financeiras.
João Paulo 2º foi o papa que preparou a igreja para levá-la una, santa, católica, apostólica e romana ao vestíbulo de um novo milênio. O novo milênio era, parece, uma de suas obsessões. Não tanto como um marco, mas como um emblema da igreja.
João Paulo 2º foi, em toda a história da Igreja, papa peregrino por excelência. Nenhum outro viajou mais do que ele. Apenas a Rússia e a China lhe fecharam as portas, apesar de todas as gestões diplomáticas do Vaticano.
Nos últimos anos de seu pontificado, a imprensa leiga de todo o mundo deu curso a frequentes rumores e especulações sobre uma possível renúncia de João Paulo. O motivo sempre alegado seria o agravamento de sua frágil saúde, gravemente comprometida desde o atentado de 1981.
Coube a João Paulo 2º o sofrimento de administrar duas vicissitudes trágicas em seu reinado. Uma foi a profanação do mais sagrado santuário das religiões cristãs, com o cerco da basílica da Natividade, memorial do lugar em que nasceu Jesus, sitiada e profanada por ameaças de destruição pelos soldados de Israel.
A outra, o escândalo da pedofilia que envolveu dezenas ou centenas de padres nos Estados Unidos, foi o mais rumoroso escândalo da história do clero católico.
João Paulo 2º herdara as liberalidades e as soluções permissivas introduzidas nos pontificados de João 23 e Paulo 6º. Embora rigorosamente ortodoxas, essas permissividades, como a laicização dos padres que obtiveram licença para casar, trouxeram mais inquietação do que paz à vida do clero e dos fiéis. João Paulo negou sistematicamente todas as licenças de padres para casar.
Mesmo quando estourou o escândalo da pedofilia nos EUA, aberração que sexólogos leigos atribuem aos rigores da castidade, permaneceu intransigente. "Não há nenhuma relação entre pedofilia e celibato" -declarou. Exigiu dos bispos americanos a punição dos culpados e sua exclusão do sacerdócio e da Igreja.
A tolerância zero com os declives da sociedade hedonista de nossos dias, que vão dos direitos do nascituro -desde a possibilidade da concepção ao respeito dos sacramentos e dos mandamentos da Igreja-, pode parecer às vezes adorno fora de moda à sua doce imagem de pastor da paz, do amor, da esperança e da liberdade de todas as religiões.
Mas, na verdade, ilumina para sempre o perfil de santo e de profeta daquele ancião vestido de branco, que milhões de homens, mulheres e crianças aclamaram, nas praças de todo o mundo, chamando-o de "João de Deus".


Gerardo Mello Mourão, poeta e escritor, foi correspondente da Folha em Pequim (China) de 1980 a 82


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