São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

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FOLHA INÉDITOS

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Dois homens e uma mulher

Stuart Não sei se vou saber fazer isso direito. É possível que eu conte as coisas na ordem errada. Você vai ter que me aguentar. Mas acho melhor ouvir a minha história primeiro.
Oliver e eu fomos colegas de colégio. Éramos o melhor amigo um do outro. Depois eu trabalhei em um banco de investimentos. Ele estava ensinando inglês para estrangeiros. Gillian e eu nos conhecemos. Ela era uma restauradora de quadros. Bem, ainda é. Nós nos conhecemos, nos apaixonamos, nos casamos. Eu cometi o erro de pensar que este seria o final da história, quando era só o começo. Suponho que muita gente cometa esse tipo de erro. Nós vimos filmes demais, lemos livros demais, acreditamos demais nos nossos pais. Tudo isso foi há cerca de dez anos, quando estávamos na casa dos 30. Agora nós estamos... não, você mesmo pode calcular isso.
Oliver roubou-a de mim. Ele queria a minha vida, então tomou-a. Fez Gill se apaixonar por ele. Como? Eu não quero saber. Acho que nunca vou querer saber. Durante algum tempo, quando suspeitei que alguma coisa estava acontecendo, fiquei obcecado em saber se eles estavam trepando ou não. Pedi a você para me contar: lembra? Eu implorei a você: eles estão trepando, não estão? Eu me lembro de ter perguntado. Você nunca respondeu, e agora eu sou grato por isso.
Eu fiquei meio doido na época. Bem, isso é bastante razoável, bastante compreensível, não acha? Eu dei uma cabeçada em Oliver e praticamente quebrei o nariz dele. E, quando eles se casaram, eu invadi a recepção e fiz uma cena. Depois fui embora para os Estados Unidos. Consegui que a firma me transferisse. Para Washington. Por incrível que pareça, a pessoa com quem eu mantive contato foi Mme. Wyatt. É a mãe de Gillian. Ela foi a única pessoa que ficou do meu lado. Nós costumávamos nos corresponder.
Após algum tempo, eu fui vê-los na França. Ou melhor, eu os vi, mas eles não me viram. Eles tiveram uma briga no meio da rua, Oliver deu na cara dela enquanto as pessoas fingiam que não estavam espiando pela janela. Eu inclusive. Eu estava num hotelzinho em frente.
Então eu voltei para os Estados Unidos. Não sei o que estava esperando encontrar quando fui vê-los -não sei o que encontrei realmente-, mas não ajudou nada. Será que pioraram as coisas? Certamente elas não melhoraram em nada. Acho que foi o bebê que acabou comigo. Sem o bebê eu poderia ter conseguido alguma coisa.
Não lembro se contei para você na época, mas, depois que meu casamento acabou, eu comecei a pagar por sexo. Não me envergonho particularmente disso. Outras pessoas deviam envergonhar-se por terem me tratado como me trataram. As prostitutas chamam o seu trabalho de "negócio". "Fazendo negócio?", costumavam perguntar. Não sei se ainda dizem isso. Estou fora daquele mundo agora.
Mas o que quero dizer é isso. Eu costumava fazer negócio a trabalho e fazer negócio por prazer. E conhecia muito bem esses dois mundos. Quem não conhece nenhum deles acha que é todo mundo se comendo. Que o homem de terno cinzento está ali para acabar com você e que a piranha cheia de perfume vai se transformar num transexual brasileiro assim que você mostrar o seu cartão de crédito. Bem, uma coisa eu posso dizer. Geralmente você recebe aquilo pelo que pagou. Geralmente as pessoas cumprem o combinado. Geralmente, trato é trato. Geralmente, você pode confiar nas pessoas. Não estou dizendo para você deixar a carteira aberta em cima da mesa. Não estou dizendo para você distribuir cheques em branco e virar de costas no momento errado. Mas você sabe onde está. Geralmente.
Não, as traições de verdade acontecem entre amigos, entre aqueles que você ama. Amizade e amor existem para fazer as pessoas se comportarem melhor, não é? Mas a minha experiência não foi essa. A confiança leva à traição. Você poderia dizer até que a confiança convida à traição. Foi isso o que eu vi, o que aprendi, na época. Essa é a minha história até aqui.

Oliver Confesso que estava cochilando. "Et tu"? Ó narcoléptico e esteatopígico Stuart, ele, da compreensão crepuscular e da "Weltanschauung" forma de Lego. Olha, será que podemos adotar uma visão mais ampla? Chou-en-lai, meu herói. Ou Zhou-en-lai, conforme ele se tornou mais tarde. Na sua opinião, qual foi o efeito da Revolução Francesa na história do mundo? E o sábio homem respondeu: "É cedo demais para dizer".
Ou então, em vez de uma visão tão olímpica ou confuciana, pelo menos vamos ter alguma perspectiva, algum matiz, algumas audaciosas justaposições de pigmento, OK? Cada um de nós não escreve o romance da sua vida enquanto caminha? Mas, infelizmente, poucos são publicáveis. Veja só que pilha enorme de tolices! Não entre em contato conosco, nós entraremos em contato com você -não, pensando bem, nós também não entraremos em contato com você.
Agora, não faça um julgamento precipitado de Oliver, eu já o alertei sobre isso antes. Oliver não é um esnobe. Pelo menos, não no sentido estrito. O problema não está nem no conteúdo desses romances nem na posição social dos seus protagonistas. "A história de um piolho pode ser tão boa quanto a história de Alexandre, o Grande -tudo depende da execução." Uma fórmula adamantina, não acha? O que é preciso é um sentido de configuração, controle, discriminação, seleção, omissão, organização, ênfase... aquela palavrinha suja de quatro letras, arte. A história da nossa vida nunca é uma autobiografia, é sempre um romance -este é o primeiro erro que as pessoas cometem. As nossas memórias são apenas um outro artifício: ande, admita isso. E o segundo erro é supor que uma trabalhosa recuperação de um detalhe anteriormente festejado, por mais que ele pudesse ser estimulador num bar, constitui uma narrativa capaz de atrair o por vezes necessariamente cruel leitor, em cujos lábios habita com razão a eterna pergunta: por que você está me contando isso? Se for por uma questão de terapia do autor, não espere que o leitor pague a conta do psiquiatra. O que é uma maneira educada de dizer que o romance da vida de Stuart é, francamente, impublicável. Eu fiz o teste do primeiro capítulo, o que é bastante normal. Às vezes eu dou uma olhadinha também na última página, só para confirmar, mas, neste caso, eu simplesmente não tive coragem. Não me considere severo. Ou, se o fizer, reconheça que sou severo, mas verdadeiro.
Vamos direto ao ponto. Toda história de amor começa com um crime. Concorda? Quantas "grandes passions" nascem entre corações inocentes e sem envolvimentos outros? Só em romances medievais ou na imaginação infantilóide. Mas entre adultos? E como Stuart, a enciclopédia de bolso, decidiu lembrar, nós estávamos todos na casa dos 30 na época. Todo mundo tem alguém, ou um pedaço de alguém, ou a expectativa de alguém, ou a lembrança de alguém, que ou quem descarta ou trai quando conhece o Sr., a Srta. ou, neste caso, a Sra. Certa. O que eu estou dizendo não é verdade? É claro que nós apagamos a nossa traição, justificamos a nossa perfídia e oferecemos em retrospecto uma tábula rasa do coração no qual a grande história de amor é então inscrita; mas tudo isso é uma palhaçada, não acha?
E se, portanto, somos todos criminosos, qual de nós vai condenar o outro? O meu caso é mais notório do que o seu? Eu estava envolvido, na época em que conheci Gillian, com uma "señorita" da terra de Lope, chamada Rosa. Insatisfatoriamente envolvido, mas é claro que eu diria isso, não é? Stuart, sem dúvida, estava envolvido com uma classe de balé de fantasias e uma coleção de revistas pornográficas de desapontamentos na época em que conheceu Gillian. Gillian estava inequivocamente, na verdade legalmente, envolvida com o dito Stuart na época em que eu e ela nos conhecemos. Você vai dizer que tudo isso é uma questão de grau, e eu responderei: não, é uma questão de absolutos.
E se, no seu jeito urgentemente legalista, você insistir em fazer acusações, então o que posso dizer além de "mea culpa", "mea culpa", "mea culpa", só que não fui eu que joguei gás asfixiante nos curdos, fui? Adicionalmente e alternativamente, como os advogados com os quais você convive dizem "bifurcativamente", eu argumentaria que a substituição de Stuart por Oliver no coração de Gillian -como vocês, bípedes embecados, emperucados, falastrões tendem a não admitir- não foi uma coisa má. Ela estava, como se costuma dizer, especulando.
De qualquer jeito, isso tudo aconteceu há muitos anos, há um quarto de nossas vidas. Isso não faz lembrar o termo "fait accompli"? (Eu não vou me arriscar com "droit de seigneur" ou "jus primae noctis".) Ninguém ouviu falar na lei da prescrição? Sete anos para diversos crimes e delitos, pelo que sei. Não existe uma lei da prescrição para roubo de mulher?

Gillian O que as pessoas querem saber, quer perguntem diretamente ou não, é como eu me apaixonei por Stuart e me casei com ele, e depois me apaixonei por Oliver e me casei com ele, tudo no menor espaço de tempo legalmente possível. Bem, a resposta é que eu fiz exatamente isso. Não recomendo que você faça o mesmo, mas garanto que é possível. Tanto emocionalmente quanto legalmente.
Eu amava o Stuart de verdade. Apaixonei-me por ele de uma maneira simples, direta. Nós nos demos bem, o sexo funcionou, eu amava o fato de ele me amar e pronto. E então, depois de nos casarmos, eu me apaixonei por Oliver, de uma maneira nada simples, mas sim muito complicada, inteiramente contra os meus instintos e a minha razão. Eu resisti, neguei, me senti imensamente culpada. Também me senti intensamente excitada, intensamente viva, intensamente sensual. Não, na verdade, nós não "tivemos um caso", como dizem. Só porque eu sou metade francesa, as pessoas falam em "ménage à trois". Não foi nada disso. Foi algo muito mais primitivo, para começar. E, além disso, Oliver e eu só dormimos juntos depois de Stuart e eu termos nos separado. Por que as pessoas se acham especialistas naquilo que não entendem? Todo mundo "sabe" que se tratava apenas de sexo, que Stuart não era muito bom na cama, enquanto Oliver era fantástico, e que, embora eu pareça muito equilibrada, sou na verdade uma namoradeira, uma rameira, e provavelmente uma piranha. Então, se você quer mesmo saber, a primeira vez que Oliver e eu fomos para a cama, ele teve um ataque de nervos "da primeira noite" e não aconteceu absolutamente nada. A segunda noite não foi muito melhor. Depois nós nos ajeitamos. Curiosamente, ele é muito mais inseguro nessa área do que Stuart.
A questão é que você pode amar duas pessoas, uma depois da outra, uma interrompendo a outra, como eu fiz. Você pode amá-las de formas diferentes. E isto não significa que um amor é verdadeiro e o outro é falso. Eu gostaria de ter conseguido convencer Stuart disso. Eu amava cada um deles sinceramente. Você não acredita em mim? Bom, não importa, eu não quero mais discutir o assunto. Só tenho a dizer o seguinte: isso não aconteceu com você, não é? Aconteceu comigo.
E, olhando para trás, eu fico surpresa de não acontecer com mais frequência. Muito tempo depois, a minha mãe disse, a propósito de alguma outra situação emocional, não me lembro bem, alguma coisa a dois ou a três, ela disse: "O coração ficou sensível, e isso é perigoso". Eu entendi o que ela estava querendo dizer. Estar apaixonada deixa você vulnerável para se apaixonar. Não é um paradoxo terrível? Não é uma verdade terrível?



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