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FOLHA INÉDITOS
Com "Amor, Etc.", que chega ao Brasil no fim do mês, Julian Barnes retoma trio de "Em Tom de Conversa"
Dois homens e uma mulher
Stuart Não sei se vou saber fazer isso direito. É possível que eu
conte as coisas na ordem errada.
Você vai ter que me aguentar.
Mas acho melhor ouvir a minha
história primeiro.
Oliver e eu fomos colegas de colégio. Éramos o melhor amigo um
do outro. Depois eu trabalhei em
um banco de investimentos. Ele
estava ensinando inglês para estrangeiros. Gillian e eu nos conhecemos. Ela era uma restauradora
de quadros. Bem, ainda é. Nós
nos conhecemos, nos apaixonamos, nos casamos. Eu cometi o
erro de pensar que este seria o final da história, quando era só o
começo. Suponho que muita gente cometa esse tipo de erro. Nós
vimos filmes demais, lemos livros
demais, acreditamos demais nos
nossos pais. Tudo isso foi há cerca
de dez anos, quando estávamos
na casa dos 30. Agora nós estamos... não, você mesmo pode calcular isso.
Oliver roubou-a de mim. Ele
queria a minha vida, então tomou-a. Fez Gill se apaixonar por
ele. Como? Eu não quero saber.
Acho que nunca vou querer saber. Durante algum tempo, quando suspeitei que alguma coisa estava acontecendo, fiquei obcecado em saber se eles estavam trepando ou não. Pedi a você para
me contar: lembra? Eu implorei a
você: eles estão trepando, não estão? Eu me lembro de ter perguntado. Você nunca respondeu, e
agora eu sou grato por isso.
Eu fiquei meio doido na época.
Bem, isso é bastante razoável, bastante compreensível, não acha?
Eu dei uma cabeçada em Oliver e
praticamente quebrei o nariz dele. E, quando eles se casaram, eu
invadi a recepção e fiz uma cena.
Depois fui embora para os Estados Unidos. Consegui que a firma
me transferisse. Para Washington. Por incrível que pareça, a
pessoa com quem eu mantive
contato foi Mme. Wyatt. É a mãe
de Gillian. Ela foi a única pessoa
que ficou do meu lado. Nós costumávamos nos corresponder.
Após algum tempo, eu fui vê-los
na França. Ou melhor, eu os vi,
mas eles não me viram. Eles tiveram uma briga no meio da rua,
Oliver deu na cara dela enquanto
as pessoas fingiam que não estavam espiando pela janela. Eu inclusive. Eu estava num hotelzinho
em frente.
Então eu voltei para os Estados
Unidos. Não sei o que estava esperando encontrar quando fui vê-los -não sei o que encontrei realmente-, mas não ajudou nada.
Será que pioraram as coisas? Certamente elas não melhoraram em
nada. Acho que foi o bebê que
acabou comigo. Sem o bebê eu
poderia ter conseguido alguma
coisa.
Não lembro se contei para você
na época, mas, depois que meu
casamento acabou, eu comecei a
pagar por sexo. Não me envergonho particularmente disso. Outras pessoas deviam envergonhar-se por terem me tratado como me trataram. As prostitutas
chamam o seu trabalho de "negócio". "Fazendo negócio?", costumavam perguntar. Não sei se ainda dizem isso. Estou fora daquele
mundo agora.
Mas o que quero dizer é isso. Eu
costumava fazer negócio a trabalho e fazer negócio por prazer. E
conhecia muito bem esses dois
mundos. Quem não conhece nenhum deles acha que é todo mundo se comendo. Que o homem de
terno cinzento está ali para acabar
com você e que a piranha cheia de
perfume vai se transformar num
transexual brasileiro assim que
você mostrar o seu cartão de crédito. Bem, uma coisa eu posso dizer. Geralmente você recebe aquilo pelo que pagou. Geralmente as
pessoas cumprem o combinado.
Geralmente, trato é trato. Geralmente, você pode confiar nas pessoas. Não estou dizendo para você
deixar a carteira aberta em cima
da mesa. Não estou dizendo para
você distribuir cheques em branco e virar de costas no momento
errado. Mas você sabe onde está.
Geralmente.
Não, as traições de verdade
acontecem entre amigos, entre
aqueles que você ama. Amizade e
amor existem para fazer as pessoas se comportarem melhor, não
é? Mas a minha experiência não
foi essa. A confiança leva à traição.
Você poderia dizer até que a confiança convida à traição. Foi isso o
que eu vi, o que aprendi, na época.
Essa é a minha história até aqui.
Oliver Confesso que estava
cochilando. "Et tu"? Ó narcoléptico e esteatopígico Stuart, ele, da
compreensão crepuscular e da
"Weltanschauung" forma de Lego. Olha, será que podemos adotar uma visão mais ampla? Chou-en-lai, meu herói. Ou Zhou-en-lai, conforme ele se tornou mais
tarde. Na sua opinião, qual foi o
efeito da Revolução Francesa na
história do mundo? E o sábio homem respondeu: "É cedo demais
para dizer".
Ou então, em vez de uma visão
tão olímpica ou confuciana, pelo
menos vamos ter alguma perspectiva, algum matiz, algumas audaciosas justaposições de pigmento, OK? Cada um de nós não
escreve o romance da sua vida enquanto caminha? Mas, infelizmente, poucos são publicáveis.
Veja só que pilha enorme de tolices! Não entre em contato conosco, nós entraremos em contato
com você -não, pensando bem,
nós também não entraremos em
contato com você.
Agora, não faça um julgamento
precipitado de Oliver, eu já o alertei sobre isso antes. Oliver não é
um esnobe. Pelo menos, não no
sentido estrito. O problema não
está nem no conteúdo desses romances nem na posição social dos
seus protagonistas. "A história de
um piolho pode ser tão boa quanto a história de Alexandre, o
Grande -tudo depende da execução." Uma fórmula adamantina, não acha? O que é preciso é
um sentido de configuração, controle, discriminação, seleção,
omissão, organização, ênfase...
aquela palavrinha suja de quatro
letras, arte. A história da nossa vida nunca é uma autobiografia, é
sempre um romance -este é o
primeiro erro que as pessoas cometem. As nossas memórias são
apenas um outro artifício: ande,
admita isso. E o segundo erro é
supor que uma trabalhosa recuperação de um detalhe anteriormente festejado, por mais que ele
pudesse ser estimulador num bar,
constitui uma narrativa capaz de
atrair o por vezes necessariamente cruel leitor, em cujos lábios habita com razão a eterna pergunta:
por que você está me contando isso? Se for por uma questão de terapia do autor, não espere que o
leitor pague a conta do psiquiatra.
O que é uma maneira educada de
dizer que o romance da vida de
Stuart é, francamente, impublicável. Eu fiz o teste do primeiro capítulo, o que é bastante normal.
Às vezes eu dou uma olhadinha
também na última página, só para
confirmar, mas, neste caso, eu
simplesmente não tive coragem.
Não me considere severo. Ou, se o
fizer, reconheça que sou severo,
mas verdadeiro.
Vamos direto ao ponto. Toda
história de amor começa com um
crime. Concorda? Quantas "grandes passions" nascem entre corações inocentes e sem envolvimentos outros? Só em romances medievais ou na imaginação infantilóide. Mas entre adultos? E como
Stuart, a enciclopédia de bolso,
decidiu lembrar, nós estávamos
todos na casa dos 30 na época. Todo mundo tem alguém, ou um pedaço de alguém, ou a expectativa
de alguém, ou a lembrança de alguém, que ou quem descarta ou
trai quando conhece o Sr., a Srta.
ou, neste caso, a Sra. Certa. O que
eu estou dizendo não é verdade? É
claro que nós apagamos a nossa
traição, justificamos a nossa perfídia e oferecemos em retrospecto
uma tábula rasa do coração no
qual a grande história de amor é
então inscrita; mas tudo isso é
uma palhaçada, não acha?
E se, portanto, somos todos criminosos, qual de nós vai condenar o outro? O meu caso é mais
notório do que o seu? Eu estava
envolvido, na época em que conheci Gillian, com uma "señorita"
da terra de Lope, chamada Rosa.
Insatisfatoriamente envolvido,
mas é claro que eu diria isso, não
é? Stuart, sem dúvida, estava envolvido com uma classe de balé de
fantasias e uma coleção de revistas pornográficas de desapontamentos na época em que conheceu Gillian. Gillian estava inequivocamente, na verdade legalmente, envolvida com o dito Stuart na
época em que eu e ela nos conhecemos. Você vai dizer que tudo isso é uma questão de grau, e eu responderei: não, é uma questão de
absolutos.
E se, no seu jeito urgentemente
legalista, você insistir em fazer
acusações, então o que posso dizer além de "mea culpa", "mea
culpa", "mea culpa", só que não
fui eu que joguei gás asfixiante
nos curdos, fui? Adicionalmente e
alternativamente, como os advogados com os quais você convive
dizem "bifurcativamente", eu argumentaria que a substituição de
Stuart por Oliver no coração de
Gillian -como vocês, bípedes
embecados, emperucados, falastrões tendem a não admitir- não
foi uma coisa má. Ela estava, como se costuma dizer, especulando.
De qualquer jeito, isso tudo
aconteceu há muitos anos, há um
quarto de nossas vidas. Isso não
faz lembrar o termo "fait accompli"? (Eu não vou me arriscar com
"droit de seigneur" ou "jus primae noctis".) Ninguém ouviu falar na lei da prescrição? Sete anos
para diversos crimes e delitos, pelo que sei. Não existe uma lei da
prescrição para roubo de mulher?
Gillian O que as pessoas
querem saber, quer perguntem
diretamente ou não, é como eu
me apaixonei por Stuart e me casei com ele, e depois me apaixonei
por Oliver e me casei com ele, tudo no menor espaço de tempo legalmente possível. Bem, a resposta é que eu fiz exatamente isso.
Não recomendo que você faça o
mesmo, mas garanto que é possível. Tanto emocionalmente quanto legalmente.
Eu amava o Stuart de verdade.
Apaixonei-me por ele de uma
maneira simples, direta. Nós nos
demos bem, o sexo funcionou, eu
amava o fato de ele me amar e
pronto. E então, depois de nos casarmos, eu me apaixonei por Oliver, de uma maneira nada simples, mas sim muito complicada,
inteiramente contra os meus instintos e a minha razão. Eu resisti,
neguei, me senti imensamente
culpada. Também me senti intensamente excitada, intensamente
viva, intensamente sensual. Não,
na verdade, nós não "tivemos um
caso", como dizem. Só porque eu
sou metade francesa, as pessoas
falam em "ménage à trois". Não
foi nada disso. Foi algo muito
mais primitivo, para começar. E,
além disso, Oliver e eu só dormimos juntos depois de Stuart e eu
termos nos separado. Por que as
pessoas se acham especialistas naquilo que não entendem? Todo
mundo "sabe" que se tratava apenas de sexo, que Stuart não era
muito bom na cama, enquanto
Oliver era fantástico, e que, embora eu pareça muito equilibrada,
sou na verdade uma namoradeira, uma rameira, e provavelmente
uma piranha. Então, se você quer
mesmo saber, a primeira vez que
Oliver e eu fomos para a cama, ele
teve um ataque de nervos "da primeira noite" e não aconteceu absolutamente nada. A segunda
noite não foi muito melhor. Depois nós nos ajeitamos. Curiosamente, ele é muito mais inseguro
nessa área do que Stuart.
A questão é que você pode amar
duas pessoas, uma depois da outra, uma interrompendo a outra,
como eu fiz. Você pode amá-las
de formas diferentes. E isto não
significa que um amor é verdadeiro e o outro é falso. Eu gostaria de
ter conseguido convencer Stuart
disso. Eu amava cada um deles
sinceramente. Você não acredita
em mim? Bom, não importa, eu
não quero mais discutir o assunto. Só tenho a dizer o seguinte: isso não aconteceu com você, não
é? Aconteceu comigo.
E, olhando para trás, eu fico surpresa de não acontecer com mais
frequência. Muito tempo depois,
a minha mãe disse, a propósito de
alguma outra situação emocional,
não me lembro bem, alguma coisa a dois ou a três, ela disse: "O coração ficou sensível, e isso é perigoso". Eu entendi o que ela estava
querendo dizer. Estar apaixonada
deixa você vulnerável para se
apaixonar. Não é um paradoxo
terrível? Não é uma verdade terrível?
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