São Paulo, quinta, 3 de dezembro de 1998

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REFUGIADOS

Guerras produzem deserdados

CLÁUDIA TREVISAN
da Reportagem Local

Em julho de 1994, cerca de 1 milhão de pessoas cruzou a fronteira de Ruanda em direção ao Zaire para fugir da guerra civil entre as etnias hutu e tutsi que devastava o país. Deixaram para trás casa, bens, escola, trabalho, parentes e amigos. Algumas levavam apenas documentos. A maioria, nem isso.
Tragédias semelhantes a essa são protagonizadas hoje por cerca de 18 milhões de pessoas em todo o mundo. São fugitivos da perseguição ou da violência de natureza étnica, política ou religiosa.
Dos 18 milhões, quase 12 milhões buscaram abrigo em outros países e são classificados como "refugiados" pela ONU (Organização das Nações Unidas). Os 6 milhões restantes deixaram suas casas, mas fugiram para outras regiões de seus próprios países. Para a ONU, eles são "deslocados internos".
O drama dessas pessoas representa um dos maiores desafios para as entidades de defesa dos direitos humanos. O número de refugiados e de "deslocados internos" mais que dobrou nos últimos 18 anos: eram 8,2 milhões em 1980 e chegaram a 18 milhões em 1998. E não entram nessa conta os que fogem da fome ou da pobreza.
Muitas vezes, os refugiados acabam encontrando nos locais em que se abrigam condições tão humilhantes quanto as que enfrentavam em seus países. Não contam com a proteção de um Estado, estão fora de sua comunidade e sujeitos à discriminação e a diferentes formas de abuso e violência.
O caráter maciço desses deslocamentos dificulta a solução do problema. Não é possível encontrar asilo definitivo para milhões de pessoas. O único caminho é resolver o conflito que os expulsou e permitir que eles voltem para casa. Só que isso pode demorar anos -ou nunca vir a acontecer.
À espera de um desfecho positivo para seu drama, a maioria dessas pessoas vive de forma precária nos países que as abrigam. Há centenas de campos de refugiados, especialmente na África e na Ásia.
Muitos afegãos vivem como refugiados há mais de uma década. Cerca de 4 milhões voltaram ao Afeganistão nos últimos oito anos.
Ainda assim, os afegãos continuam a ser o maior grupo de refugiados do mundo. São 2,6 milhões de pessoas que fugiram de seu país em razão da guerra civil iniciada em 1978 e se instalaram principalmente no Irã e no Paquistão.

CONFLITOS INTERNOS. O aumento do número de refugiados se acentuou nos últimos dez anos em razão do fim da Guerra Fria e da desintegração da União Soviética, que contribuíram para o surgimento de guerras civis motivadas por disputas nacionalistas.
O conflito na Bósnia gerou milhares de mortes e o terceiro maior número de refugiados do mundo: 620 mil pessoas.
Kris Janowski, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Refugiados, diz que o caráter dos conflitos que estão na origem da fuga de refugiados mudou nas últimas duas décadas. "Nos anos 50, 60 e 70, eles fugiam de ditaduras." A partir dos anos 80, a maioria dos refugiados passou a fugir de conflitos internos em seus países, diz.
Cerca de 500 mil pessoas abandonaram países da América Latina sob regimes militares nos anos 60 e 70, avalia Guilherme Cunha, representante nessa região do Alto Comissariado para Refugiados.
Hoje o movimento inverteu- se, e alguns países do Sul da América Latina dão abrigo a refugiados. No Brasil, por exemplo, há 2.200, vindos principalmente da África.
A vulnerabilidade dos refugiados é ainda maior quando se considera a sua composição. A ONU calcula que 75% deles são crianças, mulheres e idosos. Cunha afirma que são "cotidianos" os casos de violência física e sexual contra mulheres nos campos de refugiados.
Apesar de seus esforços, a ONU não encontra soluções definitivas para o drama dos refugiados. Sua ação se concentra na ajuda humanitária e na fiscalização, com o objetivo de evitar abusos e violência.
Uma minoria dos refugiados é beneficiada pelo "reassentamento" -espécie de asilo definitivo negociado pela ONU com vários países. É uma solução para casos isolados, adotada geralmente em relação a pessoas mais expostas ao risco de vida. No ano passado, a ONU conseguiu "reassentar" 25 mil pessoas, o equivalente a 0,21% dos 12 milhões de refugiados.
Cunha afirma que a solução do "reassentamento" está cada vez mais difícil. "Há uma tendência de fechamento das fronteiras, principalmente na Europa Ocidental e em outros países desenvolvidos."
E não há sanção -a não ser moral- para o país que se recusa a receber refugiados, mesmo que ele seja signatário da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, aprovada em 1951. Essa convenção e um protocolo de 1967 são os principais documentos internacionais sobre o tema. Seus textos definem o que é um refugiado e estabelecem as obrigações dos Estados em relação a eles.
A solução definitiva só virá com o fim dos conflitos que provocam a fuga dos refugiados. E as perspectivas para o século 21 não são animadoras. Tanto Cunha quanto Janowski criticam a falta de empenho da comunidade internacional na resolução das inúmeras guerras internas existentes hoje.
Quando foi criado, em 1951, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados tinha a missão específica de repatriar ou "reassentar" 1,2 milhão de refugiados da Segunda Guerra Mundial. Hoje, a entidade se vê às voltas com um número dez vezes maior de refugiados, sem que um novo conflito mundial tenha ocorrido nos últimos 47 anos.



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