São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003 |
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Natureza x cultura, a oposição inútil
ALBERTO TASSINARI
A oposição entre natureza e cultura não serve de muita coisa quando o conhecimento cultural de um domínio da natureza acaba por transformar a cultura. A física matemática revolucionou o conhecimento da natureza. Conhecimento, entretanto, que gerou tecnologias e consequências éticas. A biologia contemporânea não difere da física, nesse sentido. A própria física e a decisão de jogar uma bomba atômica são e não são a mesma coisa. Não são porque o conhecimento teórico não coincide inteiramente com a tecnologia, e, se coincide, fazer a bomba não é jogá-la. Mas uma criança pode sempre perguntar: se não é para jogar, por que fabricar? Para que um outro não jogue primeiro na minha cabeça -é a resposta de praxe. E a conclusão é que vivemos num mundo em que os bons fazem armas para se proteger, e os maus, bombas que se devem desarmar, pois, por serem maus, jogarão nos bons. Em último caso, os bons, para uma proteção maior, devem jogar primeiro. A física e a decisão de jogar a bomba tornam-se, se não a mesma coisa, dois lados de uma mesma questão: o domínio, o controle e a transformação da natureza física só andarão junto com valores éticos que nos parecem universais, mas que só possuem hoje vigências regionais, quando se abrir mão de fabricar armas. Daí a tentativa de um desarmamento mundial. Mas ele só é possível, e tem-se aí o outro lado da moeda, quando países e grupos sociais desistirem de dominar, controlar e transformar uns aos outros. Perspectiva difícil de imaginar. Alguém, cedo ou tarde, jogará a bomba. Já quais serão as bombas da engenharia genética, não sabemos bem. Serão produzidos pelo Primeiro Mundo, quem sabe, seres humanos transformados imunes às bombas atrasadas dos países periféricos. A imaginação política e a ficção científica começariam a traçar uma lúgubre aliança, em tudo plausível. Num debate sobre a sociedade humana ou, para evitar tomar partido, sobre a natureza humana, tanto as teses grosso modo culturalistas quanto as naturalistas deveriam participar. Mas o debate será inútil se uma posição não admitir que está, em certa medida, implicada na outra. Explicar a agressividade humana pelos genes parece bem ideológico, mas, já que ela sempre existiu, talvez o conhecimento genético tenha o que dizer. Ou talvez não, mas para saber é preciso ouvir. Por outro lado, o entendimento do homem como um ser biológico que teria evoluído até a compreensão de seus fundamentos biológicos é algo que não encontra fundamentação teórica. Seriam precisos genes ou assemelhados responsáveis pelo específico conhecimento biológico do homem sobre si mesmo. Ou, então, a biologia estará fundada na curiosidade humana. Mas a curiosidade, ou algo do tipo, é uma coisa muito vaga para uma ciência fundar-se a partir de si. A vitória da tese biológica só pode vingar através da gerência das espécies, se é que a noção de espécie ainda vale, e da própria espécie humana, através de experimentos de domínio, controle e transformação da natureza biológica. Desse modo, porém, nada se prova sobre os fundamentos biológicos que regeriam a vida humana. Prova-se, antes, a superioridade da engenharia genética sobre a engenhosidade dos humanistas. O que desloca a questão da oposição entre natureza e cultura para a oposição entre o poder dos biólogos e de suas estruturas técnicas, econômicas e administrativas e o poder dos humanistas e das instituições que os suportam. Se os dois lados não estiverem dispostos a se desarmar de seus preconceitos e a procurar um modo de controlar o controle em tudo descontrolado sobre a natureza e a natureza humana que a nova biologia almeja promover, estaremos entregues a uma proliferação de seitas. Nos sectarismos, o hábito comanda -ou, quem sabe, como ditariam os genes- que cada um explique o outro apenas a partir de si, o que não leva a lugar algum. A eficiência da engenharia genética se move num nível de conhecimento diferente de um conhecimento que funda a si próprio -se é que conhecimentos desse tipo ainda existem. E, não existindo, ninguém é senhor da palavra. Daí que seja em tudo obscurantista ignorar o recente enriquecimento da compreensão do humano e da natureza pelas ciências biológicas. As ciências da natureza mudam a cultura e a cultura, assim transformada, readapta socialmente a ciência. E os algoritmos dessa dupla mutação não estão escritos em lugar nenhum, nem no código genético, nem em leis sociais e históricas, mas no que resultará da frágil mas insistente capacidade de entendimento entre os homens. Alberto Tassinari, 49, crítico de arte e doutor em filosofia pela USP, é autor de "O Espaço Moderno" (editora Cosac & Naify, 2001) Texto Anterior: Outro homem, outro mundo Índice |