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Na obra de Stanley Kubrick, o homem é anomalia da natureza
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
Um grande entre os grandes
-assim era Stanley Kubrick.
Uma prova de seu imenso talento
-senão de sua genialidade- era a
admiração que despertava entre os
colegas de ofício.
Para Roman Polanski, Kubrick
era simplesmente o maior cineasta
em atividade. Martin Scorsese invejava sua criatividade no campo
da técnica e a soberania com que
explorava "o território da complexidade da psique humana".
Entre os grandes do cinema contemporâneo, só Godard o desprezava, talvez porque a arte de Kubrick, por mais inteligente e sutil
que seja sua construção, aponte
sempre para o espetáculo, o prazer
da imagem, o envolvimento sensorial da platéia. Algo imperdoável
aos olhos calvinistas de Godard.
Vista em conjunto, a filmografia
de Kubrick dá a impressão enganosa de um caprichoso ecletismo.
Do drama de guerra ("Glória Feita de Sangue", "Nascido para Matar") ao thriller de horror ("O Iluminado"), da ficção futurista
("2001", "Laranja Mecânica") à sátira antimilitarista ("Doutor Fantástico"), do policial ("O Grande
Golpe") ao épico histórico ("Spartacus"), praticamente não houve
gênero que ele não explorasse, parodiasse ou reinventasse.
Por trás dessa atordoante diversidade, entretanto, é possível encontrar uma inquietação comum:
o lugar do homem na ordem (ou
desordem) do universo.
Uma imagem poderosa dessa
busca estético-filosófica é a célebre
cena de "2001" em que um primata, aparentemente sob o influxo de
um misterioso monolito, transforma um osso numa arma.
Nesse gesto fundante, em que o
animal torna-se homem e inventa
ao mesmo tempo a tecnologia e a
destruição, está embutida toda a
visão pessimista e irônica de Kubrick sobre a espécie humana.
Na obra do cineasta, ainda que
aqui e ali os indivíduos sejam fugazmente banhados por lampejos
de elevação espiritual (como no
comovente final de "Glória Feita
de Sangue"), o que prevalece é a
imagem do homem como uma
anomalia, um parafuso solto na
engrenagem do universo.
Pessimismo e isolamento
O pedófilo Humbert Humbert de
"Lolita", o delinquente Alex de
"Laranja Mecânica", o sargento
fascista de "Nascido para Matar",
o escritor psicopata de "O Iluminado", o general genocida de
"Doutor Fantástico" -são todos
filhos do macaco de "2001".
O personagem kubrickiano por
excelência é um ser em desequilíbrio, pronto para matar e destruir.
Com uma visão assim sombria,
alheia aos finais felizes e às catarses
confortadoras do cinema industrial, Kubrick acabou por tornar-se
ele próprio uma figura anômala e
incômoda em Hollywood.
Seu auto-exílio na Inglaterra, a
partir de 1960, foi uma consequência lógica desse desajuste.
Ironicamente, Kubrick enriqueceria a indústria do cinema com
suas célebres inovações técnicas.
Em "O Iluminado", por exemplo,
foi o primeiro cineasta a utilizar a
"steadycam" -câmera com contrapeso que, amarrada ao corpo do
operador, permite um movimento
ágil e sem oscilações.
Desenvolveu lentes especiais para poder filmar só com luz natural
em "Barry Lyndon". Revolucionou a ficção científica com os efeitos baratos de "2001".
Foi também um experimentador
das infinitas possibilidades de diálogo entre som e imagem.
Destacou-se particularmente no
uso inventivo da música. A dança
dos astros e naves espaciais ao som
de Strauss em "2001" tornou-se
uma das marcas dos anos 60.
Em "Lolita", ousou utilizar um
tema infantilóide e repetitivo de
Nelson Riddle como contraponto
musical da obsessão sexual do protagonista. Em "Laranja Mecânica",
fez de "Singin" in the Rain" a trilha
inesperada do balé macabro de
Alex e seus comparsas.
Misantropo, perfeccionista, orgulhoso de sua independência,
Kubrick filmou cada vez menos
para se manter fiel a si mesmo.
De seu canto, deu ao cinema
meia-dúzia de obras-primas e contribuiu para alargar o espectro de
suas possibilidades de expressão.
Se o papel do artista é enriquecer
nossa sensibilidade, Stanley Kubrick pode partir em paz.
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