São Paulo, Segunda-feira, 08 de Março de 1999
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Na obra de Stanley Kubrick, o homem é anomalia da natureza

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Um grande entre os grandes -assim era Stanley Kubrick.
Uma prova de seu imenso talento -senão de sua genialidade- era a admiração que despertava entre os colegas de ofício.
Para Roman Polanski, Kubrick era simplesmente o maior cineasta em atividade. Martin Scorsese invejava sua criatividade no campo da técnica e a soberania com que explorava "o território da complexidade da psique humana".
Entre os grandes do cinema contemporâneo, só Godard o desprezava, talvez porque a arte de Kubrick, por mais inteligente e sutil que seja sua construção, aponte sempre para o espetáculo, o prazer da imagem, o envolvimento sensorial da platéia. Algo imperdoável aos olhos calvinistas de Godard.
Vista em conjunto, a filmografia de Kubrick dá a impressão enganosa de um caprichoso ecletismo.
Do drama de guerra ("Glória Feita de Sangue", "Nascido para Matar") ao thriller de horror ("O Iluminado"), da ficção futurista ("2001", "Laranja Mecânica") à sátira antimilitarista ("Doutor Fantástico"), do policial ("O Grande Golpe") ao épico histórico ("Spartacus"), praticamente não houve gênero que ele não explorasse, parodiasse ou reinventasse.
Por trás dessa atordoante diversidade, entretanto, é possível encontrar uma inquietação comum: o lugar do homem na ordem (ou desordem) do universo.
Uma imagem poderosa dessa busca estético-filosófica é a célebre cena de "2001" em que um primata, aparentemente sob o influxo de um misterioso monolito, transforma um osso numa arma.
Nesse gesto fundante, em que o animal torna-se homem e inventa ao mesmo tempo a tecnologia e a destruição, está embutida toda a visão pessimista e irônica de Kubrick sobre a espécie humana.
Na obra do cineasta, ainda que aqui e ali os indivíduos sejam fugazmente banhados por lampejos de elevação espiritual (como no comovente final de "Glória Feita de Sangue"), o que prevalece é a imagem do homem como uma anomalia, um parafuso solto na engrenagem do universo.

Pessimismo e isolamento
O pedófilo Humbert Humbert de "Lolita", o delinquente Alex de "Laranja Mecânica", o sargento fascista de "Nascido para Matar", o escritor psicopata de "O Iluminado", o general genocida de "Doutor Fantástico" -são todos filhos do macaco de "2001".
O personagem kubrickiano por excelência é um ser em desequilíbrio, pronto para matar e destruir.
Com uma visão assim sombria, alheia aos finais felizes e às catarses confortadoras do cinema industrial, Kubrick acabou por tornar-se ele próprio uma figura anômala e incômoda em Hollywood.
Seu auto-exílio na Inglaterra, a partir de 1960, foi uma consequência lógica desse desajuste.
Ironicamente, Kubrick enriqueceria a indústria do cinema com suas célebres inovações técnicas. Em "O Iluminado", por exemplo, foi o primeiro cineasta a utilizar a "steadycam" -câmera com contrapeso que, amarrada ao corpo do operador, permite um movimento ágil e sem oscilações.
Desenvolveu lentes especiais para poder filmar só com luz natural em "Barry Lyndon". Revolucionou a ficção científica com os efeitos baratos de "2001".
Foi também um experimentador das infinitas possibilidades de diálogo entre som e imagem.
Destacou-se particularmente no uso inventivo da música. A dança dos astros e naves espaciais ao som de Strauss em "2001" tornou-se uma das marcas dos anos 60.
Em "Lolita", ousou utilizar um tema infantilóide e repetitivo de Nelson Riddle como contraponto musical da obsessão sexual do protagonista. Em "Laranja Mecânica", fez de "Singin" in the Rain" a trilha inesperada do balé macabro de Alex e seus comparsas.
Misantropo, perfeccionista, orgulhoso de sua independência, Kubrick filmou cada vez menos para se manter fiel a si mesmo.
De seu canto, deu ao cinema meia-dúzia de obras-primas e contribuiu para alargar o espectro de suas possibilidades de expressão. Se o papel do artista é enriquecer nossa sensibilidade, Stanley Kubrick pode partir em paz.


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