São Paulo, segunda-feira, 08 de julho de 2002

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GENOINO

"O PT me mudou e eu mudei o PT", afirma Genoino, que foi coroinha no Ceará, guerrilheiro no Araguaia e precursor da versão "light" do partido, pelo qual disputa pela primeira vez um cargo majoritário

Deputado vai da guerrilha à vanguarda do PT moderado

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Ninguém deu mais trabalho para os que tentaram evitar a metamorfose petista, partido que nasceu, há 22 anos, ainda à sombra das barbas de Karl Marx e da sua luta de classes, do que o ex-guerrilheiro José Genoino Neto, o mais famoso filho de Quixeramobim, no Ceará -depois de Antônio Conselheiro, claro, o beato sebastianista que fez a guerra contra a República nos sertões de Canudos, Bahia.
No embalo da dialética, sua corrente de fé depois que largou as vestes de coroinha na igreja de Senador Pompeu (CE), um Genoino reformado arquivava as imagens do "coração das trevas" -a guerrilha dos anos 70 na região do Araguaia (sul do Pará) organizada pelo PC do B- para se transformar em um dos principais agentes da virada de um partido radical para a legenda "light" e institucional que chega à disputa das eleições deste ano.
"O PT me mudou e eu mudei o PT", resume. Depois de cinco mandatos como deputado federal, Genoino troca a certeza do "hexa" da reeleição ao parlamento pela arriscada tarefa de enfrentar os favoritos Paulo Maluf (PPB) e Geraldo Alckmin (PSDB) na disputa pelo governo.
Dirigente do clandestino PRC (Partido Revolucionário Comunista), então abrigado no generoso guarda-chuva esquerdista do PT, José Genoino iniciou as atividades da Constituinte de 1988 com uma bandeira: não dar trégua aos companheiros petistas e defender de forma intransigente a não-assinatura da Constituição que sairia do Congresso.
Sob a liderança do então deputado Luiz Inácio Lula da Silva, que comandava a bancada petista, o sectário Genoino começa a ser tomado pelos poderes da metamorfose, processo capaz de fazer o cidadão utópico amanhecer na pele de homem pragmático.
Os representantes do partido deixariam a sua rubrica na Constituição com o aplauso de Genoino à festa cívica dirigida pelo deputado Ulysses Guimarães (PMDB). "Seria uma bobagem não reconhecer todo o trabalho da Constituinte", diz o candidato petista, hoje a mais perfeita tradução do que se toma por "PT light".

Sertão, Carandiru
O cearense chegara à Câmara em 82, com os votos de 58.650 eleitores de São Paulo. Havia deixado a prisão em 1977, onde passou cinco anos depois de ser capturado pelo Exército no Araguaia. No inferno do Carandiru, relata, fez das demoradas rodas de conversas com os colegas uma espécie de psicanálise para livrar-se das assombrações da guerrilha.
As aulas de história em cursinhos de pré-vestibular da capital paulistana, emprego que encontrou depois da temporada no cárcere, também ajudaram a aliviar o ex-guerrilheiro da carga passada.
"Como havia deixado os cursos de direito e de filosofia pela metade, ainda em Fortaleza, saí da prisão sem nenhuma profissão para retomar a vida normal", conta. "Ensinar foi um achado, graças à extrema generosidade do povo de São Paulo", faz o elogio bandeirante de olho no voto de outubro.
Para quem havia atuado nas frentes de trabalho durante a seca de 58, uma das mais bravas do sertão do Ceará, narra Genoino, dar aulas para a rapaziada de classe média era uma moleza.
O filho mais velho de um time de 11 posto no mundo por "seu" Sebastião e por "dona" Laís, carregara pedra, aos 13 anos, para a construção de uma barragem em Quixeramobim, onde ainda hoje vivem os pais, agricultores do Encantado, um vilarejo daquele município sertanejo.
Na peleja de Deus e do Diabo na terra do sol, Genoino foi salvo do trabalho duro pelas mãos do padre Salmito, da vizinha cidade de Senador Pompeu, que o levou ao altar. Tinha então 14 anos. Tornou-se coroinha, atividade infinitamente mais leve. "Tanto para a alma como para o corpo", relembra o candidato do PT.
O padre Salmito, mal-falado por alguns fiéis da região pelo seu suposto "comunismo", perderia o ajudante para a promessa do "cosmopolitismo" de Fortaleza.
O coroinha era arrastado dos braços de Jesus Cristo para o colo de Karl Marx. Embora os dois barbudos, lembra o protagonista dessa história, jamais travassem uma peleja na cabeça do adolescente de Quixeramobim.
"Antes, é bom que se diga, dei uma passadinha teórica pelo existencialismo de Jean-Paul Sartre", relembra José Genoino, 56. "Como o regime militar não guardava respeito pelo ser e por nada nesse mundo", recorda o petista, veio o Ato Institucional número 5, o AI-5, no final de 1968, para reduzir as liberdades políticas.
Com medo da prisão, era presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Universidade Federal do Ceará, componente da direção da UNE (União Nacional dos Estudantes), escapuliu para São Paulo. Aqui virou, no Estado onde disputa o cargo máximo na eleição deste ano, José Geraldo, migrante político para quem "pau-de-arara" ainda não representava instrumento de tortura.
O país do penta cantava, à época, o hino dos "noventa milhões em ação/ pra frente Brasil" quando Genoino, aos 26 anos, rumou para a estação Araguaia.
"Era uma euforia danada em São Paulo quando a minha cabeça estava voltada para a guerrilha e tomei o prumo da selva", recordou Genoino, dias antes do mesmo escrete canarinho levantar o caneco pela quinta vez.

Dormindo na fila
"Sempre usei a metáfora do carro. Você não pode dirigir só com o retrovisor, e ficar vendo só o passado. Também não pode mirar só o pára-brisa, pois carece olhar para a frente", diz Genoino.
Corta, então, para 1982. Fica no retrovisor uma biografia romântica (ex-carregador de pedra na seca de 58, ex-coroinha, ex-guerrilheiro, ex-professor de cursinho) e o pára-brisa aponta para uma carreira parlamentar de cinco mandatos seguidos.
Ao chegar ao Congresso, Genoino teimou contra o passado para reconstruir-se, lembra: "Não poderia ser apenas o ex-guerrilheiro e fazer parte do folclore da Casa".
Debruçou-se, então, sobre o regimento parlamentar, que desconhecia até poucos dias antes da posse, quando comprou o primeiro terno em uma loja do bairro de Pinheiros, em São Paulo.
Até aquele momento, havia usado sapato de couro em raras ocasiões, uma vez que o sertão, a igreja, o movimento estudantil, a prisão e o ambiente dos cursinhos pré-vestibular de São Paulo dispensavam tal etiqueta.
Dominar as regras da Casa, conhecimento restrito a poucos, era o caminho mais fácil para sair do "baixo clero", categoria a qual pertencem os deputados ausentes do debate, para alcançar a fama.
Para ter vez nos expedientes da Câmara, o deputado calouro chegava a dormir nas proximidades do plenário ou no próprio gabinete. "Durante a Constituinte, quem não fosse líder de partido só tinha uma chance de apresentar propostas de emendas: madrugando na fila", recorda o parlamentar.
Nos quatro mandatos seguintes, por causa do domínio do regimento e da influência que alcançou, depois de ser líder da bancada petista, transformou-se no rosto mais visível do partido na mídia. Entre os petistas que ficaram com o olho no retrovisor da esquerda, como avalia o candidato ao governo, as aparições em edições do "Jornal Nacional" (Rede Globo) sempre foram vistas como um passo no mosaico da direita.
A primeira grande peleja de Genoino dentro do PT ocorreu na campanha eleitoral de Lula em 1994, quando foi derrotado no primeiro turno pelo FHC embalado no fetiche da moeda real.
O deputado defendia alianças com representantes da chamada centro-esquerda, que iria até mesmo aos terreiros dos tucanos descontentes com o PSDB. Em vão.
Nessa época ocorreu, acredita, a primeira mancada do partido em eleições presidenciais: "Recusamos, e eu ajudei nessa burrice, o apoio de Ulysses Guimarães no segundo turno de 89. Vetei o velho Ulysses no nosso palanque".
Entre 1996 e 97, outro round do PT versus PT. Genoino largou o verbo na defesa das privatizações. Queria preservar sob o controle do Estado apenas setores considerados estratégicos, como Vale do Rio Doce, Petrobrás, Banco do Brasil e Embratel.
Admitia a venda das companhias estaduais de telefonia. Outras empresas poderiam ter privatizações negociadas.
Casado com uma nissei paulista, pai de três filhos, o corintiano Genoino abandonou o marxismo em 91, mas continua fiel à máxima preferida de Marx: "Nada do que é humano me é estranho".


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