São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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PERDA

Quando ruiu a primeira torre do World Trade Center, o pai de Ivan Kyrillos Fairbanks Barbosa, que via tudo pela TV, imaginou que o filho de 30 anos, "metido", pudesse estar por perto e se ferir com os escombros. Não: Ivan estava no 105º andar. Até tomar conhecimento da morte do rapaz, a família passou por momentos desesperadores, contou o médico Barbosa à Folha. "Fiquei como um louco vendo qualquer coisa que aparecesse na TV para tentar achar um rosto"

Brasileiro narra perda do filho no WTC

LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Ivan Kyrillos Fairbanks Barbosa gostava de situações perigosas. Segundo seu pai, Ivan Fairbanks Barbosa, 61, diretor da clínica de otorrinolaringologia do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, sempre foi assim: "Ele montou em boi, pulou de pára-quedas, correu de automóvel..."
Tanto que, quando ruiu a primeira torre do World Trade Center, seu pai, que a tudo assistia por uma TV no consultório, imaginou que o filho, "metido", pudesse estar ali por baixo e corresse o risco de ser atingido pelos destroços. Não, Ivan, 30, encontrava-se no 105º andar. Administrador de empresas, ele trabalhava como corretor no mercado de ações de Nova York havia dois anos.
Ivan Barbosa mantém, ao falar do assunto, a atitude que se imagina em um cientista: raciocínio claro e domínio das emoções.
Afinal, ele está acostumado a lidar com a lógica e as relações de causa e efeito. Mas nem a lógica nem essas relações permitem que entenda que o lugar mais seguro do mundo -ele chegou a achar isso- tenha desabado diante de seus olhos com o filho dentro. "Não dá para explicar", disse.

Folha - Seu filho teve apoio da família quando foi para os EUA?
Ivan Fairbanks Barbosa -
Por incrível que pareça, ninguém apoiou porque faltou tempo para isso. Ele era um rapaz muito agressivo no trabalho, cutucava aqui e ali para subir. Ele desapareceu um fim de semana, reapareceu aqui na quarta-feira, me trouxe este presente [segura uma miniatura das Torres Gêmeas] e me disse: "Vou trabalhar aqui". Eu achei ótimo. Se viesse hoje outra vez eu o aconselharia a ir mesmo.

Folha - Em qual das duas torres ele trabalhava?
Barbosa -
Naquela que foi atingida primeiro. Eu estive lá, fomos tomar aquele aperitivo de fim de tarde no alto. Lá, eu pensei: este deve ter lugar mais seguro no mundo...

Folha - Pensou isso lá no alto?
Barbosa -
Claro!

Folha - O que o sr. estava fazendo no momento do atentado?
Barbosa -
Eu estava atendendo aqui no consultório e passei a ver desde o começo nesta TV [mostra um monitor de 14 polegadas normalmente utilizado para realização de exames]. Primeiro eu tive um choque, mas liguei para a mãe dele, e ela me disse para eu me acalmar, porque alguém tinha encontrado com ele em baixo. Eu fiquei vendo horrorizado, mas achando que o menino estivesse fora daquilo. Fiquei muito preocupado quando o prédio caiu, porque, como ele tinha espírito aventureiro, gostava de perigo, pensei: o metido está lá e pode ser atingido por destroços. Depois disso ficamos ligando para a casa dele. No dia seguinte, ainda sem notícia, pensei: alguma coisa realmente séria aconteceu.

Folha - O que o sr. fez então?
Barbosa -
Parei de trabalhar e fiquei como um louco vendo qualquer coisa que aparecesse na televisão para tentar encontrar um rosto ou alguma outra coisa.

Folha - Como foi esse momento?
Barbosa -
Desesperador. Eu não conseguia sair da frente da televisão o dia inteirinho.

Folha - Quando o sr. teve a certeza de que havia ocorrido o pior?
Barbosa -
Não sei exatamente quantos dias depois veio a seguinte informação: ele estava no telefone negociando ações e falou que tinha acontecido alguma coisa no prédio e que teria de descer. Ele estava no andar 105. O avião entrou abaixo. Se você pensar friamente, não há hipótese. O andar inteiro foi cortado, e a temperatura foi calculada em 800, 900 graus. Ninguém desceu. Não existe possibilidade de corpo, de pó, de pedaço, de nada disso. Demorou para essa ficha cair...

Folha - Quantos dias?
Barbosa -
Foi preciso tempo para raciocinar com a cabeça. Além disso, tem as pessoas que não são legais. Aí começa: "Olha, eu vi ontem seu filho na televisão, eu soube que tem um brasileiro andando desmemoriado no Central Park...". É igual a bruxa, você não acredita, mas se preocupa.

Folha - Isso tornou o processo mais difícil?
Barbosa -
Isso deixa a gente incomodado, porque, por um absurdo qualquer, ele poderia mesmo estar mesmo por lá.

Folha - O sr. recebeu algum tipo de apoio não material do governo norte-americano?
Barbosa -
A mãe dele foi para lá e recebeu tratamento excepcional. Acho que, por causa dessa história de viver em guerra, o americano cultua essas homenagens.

Folha - E no aspecto material, está sendo cumprido aquilo que foi acordado?
Barbosa -
Não existe nenhum acordo com as famílias. Ele trabalhava numa firma grande e muito idônea, a corretora Cantor Fitzgerald, que tem um advogado acompanhando esses processos.

Folha - O processo está andando?
Barbosa -
Deve andar, porque é um processo legal. Recentemente, veio da Prefeitura de Nova York um pedido de material meu para exame de DNA.

Folha - O exame é para tentar fazer algum tipo de identificação?
Barbosa -
Eu acho que é mais para fechar um processo. Porque não existe possibilidade de você pegar o DNA de quem estava lá em cima. Já me falaram que talvez tenha indenização, mas ninguém da família está ligado nisso.

Folha - Quando o sr. falou com o seu filho pela última vez?
Barbosa -
Não lembro se ele ligou na sexta ou na segunda [7 ou 10 de setembro] preocupado com uma proposta que recebeu que ia ser boa para a carreira dele. Ligou muito animado.

Folha - O sr. nunca mais voltou a Nova York?
Barbosa -
Não tenho mais vontade. Eu soube até que a Cruz Vermelha estava oferecendo viagens aos parentes das vítimas. Se fosse uma viagem de homenagem eu iria, mas só para ver ou passear, não existe hipótese.

Folha - O sr. não tem ao menos curiosidade de ver como ficou o local das torres?
Barbosa -
Não, não.

Folha - Como o sr. avalia as investigações e ações realizadas pelo governo dos EUA?
Barbosa -
A religião do nosso país, a católica, tende a abafar tudo que você tem de agressividade, coisas normais do ser humano. Então, o que vem dessa sua pergunta é o seguinte: perdoa-se esse cara ou não se perdoa?

Folha - Quem, Bin Laden?
Barbosa -
Sim, ao que tudo indica só pode ser o Bin Laden, não existe dúvida de que aquela Al Qaeda tenha responsabilidade. Mas se perdoa um cara desse ou não? A tendência do brasileiro é passar por cima, uma atitude tida hoje como politicamente correta. Mas eu acho que atrás dela vem uma irresponsabilidade brutal. Esse cara tem de ser caçado, só que estão acontecendo coisas com as quais ninguém pode concordar. Pegue o sujeito e o torture. Eu mesmo gostaria de torturar. Só que bombardear aldeia com inocentes não tem relação nenhuma. Uma coisa não justifica a outra.

Folha - O que o sr. pretende fazer neste dia 11 de setembro?
Barbosa -
Deve haver uma missa pequena, para a família. E eu estou fazendo minha cabeça para saber se assisto ou não ao especial da televisão. Eu peguei todas as revistas e jornais [da época do atentado] para um dia ver. Eu tenho dificuldades de olhar as fotos. Vou ver se crio coragem agora.

Folha - Falar a respeito do assunto ajuda?
Barbosa -
Não é para mim, é para ele. Uma homenagem, uma recordação. Não é uma terapia, mesmo porque eu ainda não peguei meu prumo. Eu não tenho experiência nisso. Deve melhorar um dia...


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