São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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Pobreza é fundamental para explicar tragédia


Países do Índico não tinham meios para alertar as populações da orla

Grau de sobrevivência à catástrofe acompanha as variações da renda



DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA

Quantos centímetros de jornal, ou segundos de televisão, vale a vida de um cingalês? E a de um inglês? Há um século, quando as mentes funcionavam no compasso das teorias racistas, as catástrofes que vitimavam os "nativos" virtualmente não geravam comoção, ou mesmo interesse, na opinião pública "branca".
Isso mudou, como atesta a indignação mundial face à sovina oferta inicial de ajuda financeira de George W. Bush aos países atingidos pelo tsunami. Mesmo assim, os centímetros e segundos dedicados às centenas de vítimas "brancas" superam de longe os consagrados às dezenas de milhares de "nativos" que perderam a vida na Indonésia, no Sri Lanka, na Índia, na Tailândia e nos outros países da bacia do Índico.
As ondas da morte não discriminam as pessoas segundo critérios de classe ou condição social. Na orla continental e nos arquipélagos do Índico, morreram turistas, funcionários humildes de resorts, pescadores, camponeses pobres. Nas ilhas Andaman e Nicobar, provavelmente desapareceram pequenas tribos que viviam em completo isolamento. Mas não é possível compreender as dimensões da catástrofe sem ajustar o foco no tema da pobreza. Há, antes de tudo, a pobreza nacional. Muitos observaram que transcorreram 90 a 150 minutos entre o terremoto e o momento do impacto das ondas do tsunami nas áreas mais severamente atingidas, um intervalo suficiente para a transmissão de alertas por meio de TV e rádio. Se a detecção de terremotos é rotineira e o abalo no norte de Sumatra foi registrado instantaneamente por estações em todo o globo, por que os governos não emitiram alertas que salvariam dezenas de milhares de pessoas?

Previsão
Detectar um maremoto não equivale a prever um tsunami. O primeiro nem sempre gera o segundo e, além disso, não é banal antecipar a velocidade e a direção das ondas devastadoras. No Pacífico, há mais de 50 anos existe um sistema de monitoramento de tsunamis baseado em uma rede de sete detectores de pressão no leito oceânico conectados a centros de análise e difusão de alertas. Esse sistema é produto da colaboração entre os Estados Unidos e o Japão, duas grandes potências econômicas, que partilham suas informações com os demais países da bacia do Pacífico. Trágica ironia: a costa leste da Tailândia recebe alertas emanados do sistema nipo-americano, mas o desastre ocorreu na costa oeste.
No Índico, não existe nada similar. Na ausência de filtros de análise e um sistema de disseminação organizada de alertas, a notícia de ocorrência de um maremoto é um fragmento virtualmente inútil de informação. Ninguém está tecnologicamente equipado para processá-la e examinar as potenciais repercussões do evento. Pior: mesmo na hipótese improvável de um prognóstico de tsunami, ninguém dedica-se à função de difundir avisos oficiais de evacuação de áreas sob risco.

Pobreza
Há, também, a pobreza social. Os assentamentos de populações de alta renda, de modo geral, apresentam baixas densidades demográficas, enquanto os assentamentos de populações pobres tendem a apresentar elevadas densidades demográficas. Esse contraste verifica-se, na maioria dos casos, tanto no meio urbano quanto no meio rural e decorre das desigualdades na dimensão da propriedade imobiliária e no acesso ao transporte automobilístico. Como regra, catástrofes de origem natural fazem muito mais vítimas quando se abatem sobre áreas povoadas por populações pobres.
Pobreza e desamparo andam de mãos dadas. Nas horas que se seguiram ao tsunami, muitos salvaram-se porque conseguiram auxílio médico e hospitalar, cuja disponibilidade depende, quase diretamente, do nível de renda. Nos dias seguintes, as ameaças eram a contaminação da água, a falta de abrigo, alimentos e remédios e a carência de informações sobre a prevenção de doenças. Nada disso atinge quem tem dinheiro, cartão de crédito, seguro de saúde, automóvel e passagem aérea.
"Brancos" e "nativos" habitam universos paralelos, na vida como na morte. A contagem dos mortos começou no 26 de dezembro, horas depois da catástrofe, e avançou aos saltos, adicionando dezenas de milhares de novas vítimas todos os dias. Nunca saberemos o total exato e a margem de erro ficará, possivelmente, na casa dos milhares. Só uma coisa é certa: cada um dos mortos "brancos" será contabilizado.


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