São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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MISÉRIAS E GLÓRIAS DO BRASIL NOS TEMPOS DO REAL
A razão cínica e o erotismo reprimido do "homo tucanus'

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

A cabeça tucana é paulistocêntrica na versão acadêmica pós-64, todavia sua gênese psíquica e ideológica encontra-se na criação da Faculdade de Filosofia e Letras da USP em 1934, que deve ser analisada como um projeto recolonizador de hegemonia internacional para todo o país, com as honrosas exceções de Roger Bastide a Alfredo Bosi.
Em que pese o relativo condicionante da história das idéias, o que prolifera na nata jeca-grã-fina do tucanismo é um profundo desdém pelas questões culturais e artísticas, desde os corredores da inesquecível Faculdade Maria Antônia: "Cultura é perfumaria, superestrutura, porralouquice".
Para o Homo tucanus, tão cioso da relação custo-benefício, o que importa acima de tudo é o pragmatismo da grana e seus dividendos espúrios na política, cujo reflexo é a linguagem da "forma mercadoria": o último estágio cínico da reificação se espraiando por todos níveis da existência.
Sociologicamente, o tucanato amulatado é um estamento conspícuo da feitoria Brasil durante a transição do capitão de indústria para o oligarca financeiro. Disso, a consequência desagradável na esfera cultural é a desapropriação de tudo aquilo que não é "mercado" ou valor de troca.
O Príncipe é moeda por antonomásia, regido pela lógica do "papel pintado", o que revela a leitura de Karl Marx nas ciências sociais: o marxismo vulgar e economicista com ênfase implacável sobre o fator-econômico-em-última-instância.
A Realpolitik do vil metal é o princípio que manda em tudo, a fonte suprema do carisma e da legitimidade, por conseguinte o processo de reificação atinge tal magnitude (Cristo é substituído pela moeda) que não sobra espaço para o mínimo de tesão cultural autônomo. Daí o convívio com este curioso paradoxo: a sociologia chega ao poder, mas o governo iluminado por ela é o mais antiintelectual da história do Brasil.
O "realismo" das pesquisas eleitorais exige que se mantenha sob controle e vigilância a abstrusa "consciência feliz" da cesta básica. O simulacro da comida para o povo, o preço congelado da dieta da ralé, eis "la promesse de bonheur".
A isso, acrescente-se a identificação do progresso com "estabilidade monetária". Trata-se de uma estabilidade milagrosa, posto que não se tem nenhum controle endógeno da moeda. Assim, acoplado a uma operação marota, ressurge o neomazombismo por meio do adeus ao "ethos" nacional, em que a perda do território físico se confunde com a propriedade estrangeira dos nossos recursos naturais -enfim, a subalternidade neocolonial da sociedade brasileira é celebrada como destino inevitável.
Além de justificadora do imobilismo da economia dependente, a algaravia tucana quer nos convencer a jogar no lixo qualquer veleidade de soberania nacional. Assim, torna-se dispensável apresentar um projeto original de desenvolvimento para a sociedade brasileira, preferindo-se o alinhamento automático aos EUA, país que saiu vencedor na batalha ideológica travada contra a URSS.
A queda do Muro de Berlim e a crise da URSS fornecem aos tecnocratas tucanos o cardápio colonizado do conformismo. A retórica de um homem globalizado, imbuído da pretensão pseudouniversalizante, tem como esperança (a tal "utopia viável") sermos um dia a colônia mimada de Bill Clinton, glosando fórmulas e idéias estrangeiras requentadas, ou seja, ideologias de terceira mão: cópia sem nenhuma originalidade. Nesse sentido o Plano Real é, culturalmente, uma distopia: o centro de decisão da vida brasileira localiza-se alhures.

A delícia de viver da aliança São Paulo-Bahia
Nascido na Faculdade de Ciências Sociais da USP, temperado com o molho cosmopolita do Cebrap (o dinheiro é cosmopolita, dizia Hegel), sincronizado com alguns notáveis do Largo São Francisco e dissidentes do PMDB, o tucanismo paulista firmará um pacto mefistofélico com o PFL high-tech do coronelismo nordestino, em cuja prosápia oligárquica encontra-se a afirmação bufona da regionalidade e a doação do patrimônio bioenergético do país. Essa parceria de São Paulo com a Bahia é a aliança "sampaba", que se delicia em viver sem inflação e com democracia estável.
Ampliando o circuito USP-Cebrap-ABC-Autolatina, a essência da cultura sob a égide tucana é a "Kulturfrixópi", da qual está banido o elemento particular: o capital estrangeiro, volátil e delinquente, é apresentado como a tábua de salvação do país. Assim, quimera ou aventura quixotesca seria o propósito de construir uma civilização com luz própria. Esse desiderato de autonomia econômica e cultural é tido como expressão masoquista da "fracassomania". Coisa de caipira. Alternativa sentimental.
A subjetividade reprimida do Homo tucanus se expressa por meio de uma linguagem contábil sem a menor preocupação com a beleza, a exemplo desse horroroso ruído, a expressão "custo Brasil", que é, sem dúvida alguma, a repercussão linguística do racionalismo antierótico das ciências sociais. Linguagem instrumentalizada, diria o filósofo Theodor Adorno, que, diga-se de passagem, alertara para o fato de que o liberalismo engendrou o fascismo na Alemanha.
Hoje, se o ângulo de análise for a sensibilidade cultural, não há dúvida sobre o perigo de um "fascismo virtual" seguido da alquimia do câmbio sobrevalorizado.
A frívola razão da sociologia antierótica se distancia cada vez mais da relação homem e natureza brasileira. Os sociólogos no poder consideram a arte desprovida de gnose. O tucanismo, do ponto de vista psicológico, é refratário ao gozo estético. Impossível caracterizá-lo como um animal fantasioso que preza a faculdade imaginativa. Não existe Orfeu tucano.
Os intelectuais orgânicos do "way of life" tucano se declaram "brasileiros", porém não se identificam como representantes de uma cultura nacional, nem com ela se identificam, o que não deixa de ser uma atitude esquizofrênica responsável pela vacuidade retórica em torno do Brasil como uma prosopopéia abstrata: "O Brasil quer", "o Brasil deseja, ama, esperneia" etc. Resulta daí a ressurgência da "doença do nabuquismo", atualizada em novas bases, nas quais o Banco é a razão; e o sentimento, a telenovela.
Afora isso, avulta a "síndrome Caramuru", que é o gesto acrítico de babar na gravata diante dos medalhões intelectuais estrangeiros. A idolatria por tudo quanto vem de fora. No que se refere à prata da casa, a tendência objetiva é despolitizar o intelectual e, simultaneamente, desintelectualizar o político.
Um dos efeitos culturais perniciosos da estabilidade neocolonial da moeda é a aceitação, como fato normal, da coexistência de subalternidade externa do país e legalidade democrática baseada no sistema representativo. Era isso o que dizia a "teoria da dependência" de 1967, o imperialismo não precisa de ditadura para realizar seus ganhos internacionais e continuar a exploração da mais-valia neocolonial.
A arrogância paulista dos tucanos, os quais se comportam como "mendigos fartos", para usar a expressão de Euclides da Cunha, é achar que só eles detêm o segredo da administração "racional" da dependência holística do país.
O espírito sociológico do capital associado torna dispensável a questão da particularidade do processo cultural brasileiro, sendo nesse aspecto coerente com a perversão televisiva internacional: a impossibilidade de o Brasil trilhar um caminho institucional próprio. Culturalmente, o máximo que se consegue atingir é a propaganda marqueteira em torno de um simulacro de Primeiro Mundo, tal qual a "modernidade" mistificada pelo governo Collor.
Esse "jargão da tucanidade", às vezes oportunisticamente refere-se à inserção do país na trama das relações internacionais, porém não almeja alterar em nada o modo pelo qual a economia brasileira se conecta aos núcleos centrais do capitalismo mundial, mesmo porque os tucanos, coveiros não apenas de Getúlio Vargas como também do Iseb, supõem que para os Estados Unidos nos levam as lições da história.



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