São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2008

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BOSSA NOVA

Brigas, nunca mais

Fica combinado que a bossa nova nasceu a 10 de julho de 1958 com "Chega de Saudade", por João Gilberto, a não ser que se queira recuar a data para 10, 30 ou 100 anos antes

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

Não, a bossa nova não nasceu no apartamento de Nara Leão. A própria Nara nunca se cansou de dizer isso. E estava certa.
Imagine uma expressão musical tão complexa e sofisticada (que há 50 anos intriga e encanta estudiosos e leigos de cinco continentes) sendo criada por meia dúzia de aprendizes no apartamento de uma adolescente. Nara tinha 14 anos em 1956, quando eles começaram a se reunir no apartamento em que ela morava com seus pais, em Copacabana.
Nem Byron e Shelley podiam ser tão precoces. Por mais bronzeados, bonitos e talentosos, garotos como os violonistas Roberto Menescal, Oscar Castro Neves e Chico Feitosa, o letrista Ronaldo Bôscoli, o pianista Luiz Carlos Vinhas, o cantor Normando Santos, o flautista Bebeto Castilho e outros ainda teriam de esperar para produzir suas primeiras criações expressivas. Ou, como diz Carlos Lyra, que também fazia parte da turma, mas já tivera uma canção gravada por ninguém menos que Sylvinha Telles, "nem a Nara nasceu no apartamento da Nara".
Vamos raciocinar. Se fosse possível identificar o endereço natal da bossa nova, seria possível também determinar quando ela veio ao mundo. Talvez por isso, as pessoas vivam querendo saber: "Mas, afinal, quando começou a bossa nova?". Ninguém pergunta isso sobre o maxixe, o xaxado ou o chachachá. Da bossa nova, no entanto, exige-se o dia e a hora exatos do seu nascimento, com certidão passada em cartório.
Essas pessoas ficam surpresas ao ouvir que, provavelmente, a bossa nova não teve um começo e que a data de 10 de julho de 1958, quando João Gilberto gravou o single "Chega de Saudade", no estúdio da Odeon, na Cinelândia, é, de certa forma, uma convenção, e o mais certo seria responder que, dependendo do ponto de vista, foram vários começos. Um deles teria sido o LP "Canção do Amor Demais", de março daquele mesmo ano, em que Elizeth Cardoso cantava as canções de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, mas apenas pelo violão de João Gilberto em duas faixas, uma delas a mesma "Chega de Saudade". O violão era bossa nova, a cantora não era nem precisava.

Por que não antes?
Outro começo poderia ter sido em 1956, quando Tom e Vinicius formalizaram sua parceria numa mesa do bar Vilarino, na Esplanada do Castelo, e partiram para as canções do musical "Orfeu da Conceição". Recuando um pouco, chegaríamos a 1953, quando Johnny Alf compôs "Rapaz de Bem" e começou a mostrá-la nas boates em que se apresentava no Leme. Ou a 1946, quando Dick Farney aplicou sua "voz de travesseiro" ao samba-canção "Copacabana", de Braguinha e Alberto Ribeiro. E poder-se-ia voltar ainda mais no passado, a quase cem anos antes, porque boa parte da música popular no Brasil, desde Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga, Patápio Silva, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth, Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô e seus seguidores, sempre foi "de bossa".
Assim como não teve um começo, sua paternidade também não pode ser reduzida a um músico João Gilberto ou a uma parceria Tom e Vinicius, por mais seminais que tenham sido na sua gestação. Seria até uma injustiça para com dezenas ou centenas de profissionais, homens e mulheres que, nos pelo menos dez ou 12 anos anteriores a 1958, buscaram a modernização da música brasileira e chegaram a ela parcialmente, contribuindo com novos caminhos, estilos e achados ao mesmo tempo em que davam duro nas boates, rádios e gravadoras, trabalhando com os ritmos e gêneros mais "quadrados" para pagar o aluguel.

Os antecessores
Alguns desses foram os cantores Dick Farney, Lúcio Alves, Nora Ney, Dora Lopes, Gilberto Milfont, Mary Gonçalves, Doris Monteiro, Dolores Duran, Tito Madi, Geny Martins, Sylvinha Telles, Luiz Claudio, Maysa, Agostinho dos Santos e Miltinho; os conjuntos vocais Anjos do Inferno, Namorados da Lua, Os Cariocas, Garotos da Lua, os Quatro Ases e um Coringa, Os Namorados e o Trio Irakitan; os compositores e letristas José Maria de Abreu, Oscar Belandi, Janet de Almeida, Geraldo Jacques, Denis Brean, Valzinho, Newton Mendonça, Billy Blanco, Ismael Netto, Luiz Antonio, Antonio Maria e o próprio Jobim; os maestros e arranjadores Radamés Gnattali, Guerra Peixe, Lyrio Panicalli, Leo Peracchi, Lindolpho Gaya, Carlos Monteiro de Souza e Moacir Santos; e instrumentistas como os violonistas Garoto, Luiz Bonfá, Candinho, Neco, Waltel Branco e Nanai; os pianistas Vadico, Johnny Alf e Luizinho Eça; os saxofonistas Zé Bodega, Cipó, K-Ximbinho, Juarez Araújo, Jorginho, Casé e Paulo Moura; os trombonistas Astor, Nelsinho e Norato; os acordeonistas Donato (sim, só depois ele passaria para o piano) e Chiquinho; o contrabaixista (futuro organista) Ed Lincoln; o violinista Fafá Lemos; etc. Muitos outros poderiam ser citados em todas essas categorias, todos "bossa nova" à sua maneira, assim como, segundo Ronaldo Bôscoli, "Ary Barroso, Noel Rosa e Custodio Mesquita também foram "bossa nova" em sua época".
Se hoje parece estabelecido que a bossa nova foi uma síntese elaborada por João Gilberto a partir de inúmeros pequenos avanços da música brasileira propostos por todos aqueles pioneiros, podemos concluir que, sem eles, não teria havido a bossa nova. Ou não teria havido a bossa nova como a conhecemos. Porque, com a efervescência musical, mesmo clandestina, do período 1945-1955, a bossa nova era inevitável. Aconteceria de qualquer maneira, com João Gilberto ou com qualquer um deles. E sempre seria uma "bossa nova", embora não necessariamente a bossa nova de João Gilberto.
Nesse caso, ela se pareceria com o músico por meio de quem viesse. Se fosse por Johnny Alf, seria talvez mais jazzística; por João Donato, teria um acento caribenho; por Newton Mendonça, tenderia ao experimentalismo; por Jobim, ficaria mais próxima do samba-canção; e sabe-se lá como seria se tivesse vindo por um letrista, um conjunto vocal ou algum instrumentista que não de violão ou piano.

Na cadência do samba
Para mim, foi uma sorte que tenha vindo por João Gilberto, cuja formação se deu pelo samba. Donde, ao ouvir a "sua" bossa nova na batida do violão, entendida imediatamente por Jobim, que passou a compor em função dela, e por Milton Banana, que lhe seguiu a receita na bateria, ouvem-se também os ecos de Mario Reis, Carmen Miranda, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Leo Vilar, Bororó, Assis Valente, Zé da Zilda, Haroldo Barbosa, Antonio Almeida, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Dorival Caymmi, Lauro Maia, Marino Pinto, Herivelto Martins e outros cantores e compositores que ele admira, assim como toda uma ilustre linhagem de conjuntos vocais e músicos brasileiros "de bossa", de qualquer época.
Então, ficamos combinados, e brigas, nunca mais: a bossa nova nasceu no dia 10 de julho de 1958, quando João Gilberto gravou "Chega de Saudade". A não ser que se considere que o samba-choro "Chega de Saudade", que Tom e Vinicius haviam composto um ano antes, estava destinado a ser um clássico da música brasileira, com ou sem a bossa nova. E que a primeira canção estritamente "bossa nova" revolucionária, mas talvez sem futuro comercial se não viesse na crista da nova música, foi "Desafinado", de Tom e Newton Mendonça, que João Gilberto gravaria quatro meses depois, a 10 de novembro.
Mas não faria diferença: 2008 marcaria, de qualquer maneira, os "50 anos da bossa nova".


RUY CASTRO é autor de "Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova" (Companhia das Letras, 1990), "A Onda que se Ergueu no Mar - Novos Mergulhos na Bossa Nova" (Companhia das Letras, 1999) e "Rio Bossa Nova - Um Roteiro Lítero-Musical" (Casa da Palavra, 2006).



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