São Paulo, sábado, 13 de março de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Personagens eram livres de repressões

Pai de tipos como Geraldão e Casal Neuras, cartunista mostrou que não se pode fazer bom jornalismo sem humor

MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Geraldão, o Casal Neuras, a Rê Bordosa, entre outros, formavam uma turma estranha que passou a bater na porta dos leitores da Ilustrada todas as manhãs, a partir de 1983.
Até aquele momento, o leitor dos grandes jornais brasileiros estava acostumado com a tradição (genial) dos comics americanos do tipo Mutt e Jeff, Hagar, Garfield e Charlie Brown, e tinha no bom-mocismo dos quadrinhos de Mauricio de Sousa a referência do "traço" nacional.
Como, então, explicar o sucesso instantâneo obtido por uma garota em estado de ressaca permanente, por um cara que só pensava em transar com a mãe e por um casal em frequente exposição ao adultério recíproco?
De certa forma, eles eram os filhos de anti-heróis (a expressão era muito comum na época) de grande sucesso na década anterior, como o Fradinho, do Henfil, e o Sig, do Jaguar, publicados no "Pasquim". E sofriam, provavelmente, alguma influência do "udigrudi" internacional, cuja expressão mais conhecida no país eram os quadrinhos de Robert Crumb.
Mas o desenho detalhista de Angeli (que atingiria a sua extraordinária maturidade nas charges da página 2 da Folha) e o traço simples -próximo dos rabiscos infantis- de Glauco representavam um novo momento na longa história de relações entre grandes desenhistas e o jornalismo brasileiro. Ao mesmo tempo, os dois punham no papel, no formato seriado de histórias contadas em três partes (o primeiro de preparação, o segundo de tensão e o terceiro de resolução pelo nonsense) uma coleção das nossas pequenas impossibilidades, perversões e fraquezas cotidianas que estavam na contramão do resto do jornal, onde a sensação vigorosa de fazer a história -a construção da abertura política- era predominante.
Angeli e Glauco renovaram para a nova geração de jornalistas que chegava à Folha a lição de que é impossível se fazer bom jornalismo sem humor.
Naquele tempo, Glauco trabalhava (não se desenhava em computadores) na Redação e era o terror dos editores: em alguns dias, ele simplesmente não dava as caras -ou chegava em cima da hora do fechamento. Nos arquivos do departamento de recursos humanos da Folha, existe uma série de advertências feitas a ele por atrasos e faltas, mas todo mundo sabia que o jornal não poderia ficar sem o Geraldão.
Glauco gostava de dar apelidos para as pessoas. Ele me chamava de "eu". Cometo essa indiscrição só para mostrar o quanto o Glauco do dia a dia da Redação tinha a ver com os seus personagens mais insólitos. Ele se vai em uma época de renascimento dos quadrinhos.
Seu papel nesta história será o dos grandes, dos que realmente mudaram as coisas: ele se liberou do convencionalismo naturalista do traço e libertou seus personagens das repressões cotidianas. Nas páginas da Ilustrada, ele conseguiu enquadrar uma espantosa liberdade na sequência de três quadrinhos.


MATINAS SUZUKI JR. é ex-editor-executivo da Folha, editor da revista "Serrote" e coordenador da coleção Jornalismo Literário (Cia das Letras)


Texto Anterior: De Glauco
Próximo Texto: Glauco nas livrarias
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.