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'Meus amigos não têm cor'
da Redação
O texto abaixo, escrito na década
de 80 por Frank Sinatra para uma
liga antipreconceito, foi editado
por várias publicações norte-americanas. Nele, Sinatra lembra o
preconceito racial que sofreu por
ser descendente de italianos e o sofrido por amigos seus negros,
além de apontar meios de como o
cidadão comum pode lutar contra
a discriminação.
FRANK SINATRA
Meus amigos, que são muitos, vivem espalhados pelo
mundo. São de muitas cores e
religiões, ricos e pobres, intelectuais e analfabetos. Um
amigo, para mim, não tem raça nem classe social e não faz
parte de nenhuma minoria.
Minhas amizades são formadas a partir do afeto, do respeito e do sentimento de que temos algo marcante em comum.
São valores eternos, que não se
enquadram em nenhuma classificação racial.
Algumas de minhas amizades deram lugar a idéias distorcidas a meu respeito. Devido ao fato de alguns de meus
bons amigos serem negros, há
quem já tenha dito que eu teria uma preferência por negros.
A verdade é que eu não "gosto" de negros mais do que de
judeus, muçulmanos, italianos
ou outro grupo. Não "gosto"
segundo a cor da pele ou o lugar onde um homem faz as
orações. E nunca escolhi um
amigo em função de sua nacionalidade.
Em Hoboken, Nova Jersey,
onde fui criado, a comunidade
era dividida em compartimentos raciais e religiosos estanques. Havia ítalo-americanos,
americanos de origem irlandesa, judeus e negros. Cada grupo ocupava seu setor. Se alguém penetrasse em território
"estrangeiro", irrompiam atos
de violência. Havia brigas sangrentas entre meninos de diferentes quarteirões, com punhos e pedras. Minha principal
recordação dessa fase da vida é
de que foi amarga, violenta,
dura e carente de amor e segurança afetiva.
Mas sobrevivi e aprendi uma
lição: não é possível manter
ódio no coração e, ao mesmo
tempo, viver uma vida saudável. Preconceito não combina
com cidadania.
Tenho opiniões bem definidas sobre os problemas que hoje dividem as nações e frequentemente sinto necessidade de
falar sobre questões com as
quais os "entertainers" normalmente não se preocupam.
Quando um "entertainer" evita cumprir seu dever de cidadão numa crise, merece ser criticado tanto quanto qualquer
outra pessoa. E quando enfrenta uma questão que, devido à sua importância nacional, o afeta diretamente, merece ser aplaudido.
Louis Armstrong, que sempre
admirei como artista, resolveu
encarar um grande problema
nacional e expressou seu ponto
de vista de maneira inequívoca a um jornalista. Louis estava indignado com o fato de nove estudantes negros em Little
Rock não terem tido seus direitos respeitados. Muitas pessoas
apoiaram-no. Outras disseram
que ele se excedeu ao falar sobre assuntos que não a música.
Embora eu, na época, tenha
sentido que Pops poderia ter
deixado de fora algumas das
palavras ásperas sobre o presidente e o governo, sua indignação contra a injustiça era
correta e apropriada.
Quando Nat Cole foi agredido num palco de teatro por
vândalos preconceituosos em
Birmingham, Alabama, a classe dos artistas como um todo
reagiu. Fiquei furioso quando
soube do incidente e imediatamente tentei falar com Nat pelo telefone para lhe falar da
minha própria indignação. Finalmente consegui localizá-lo
num hotel de beira de estrada,
às 3h do dia seguinte, e lhe
transmiti minha preocupação
e solidariedade, dizendo que
estava chocado, triste e irado.
Além de um grande artista,
Nat era um cidadão de primeira categoria.
Sammy Davis Jr. é um dos
mais talentosos e bem-sucedidos "entertainers" do mundo.
Eu o conheço intimamente
desde que ele era criança,
quando se apresentava no circuito dos clubes e dos teatros
de variedades, com seu tio e
seu pai, vivendo com o pé na
estrada. O afeto que tenho por
Sammy e May Britt ultrapassa
o grande talento de Sammy e é
motivado por qualidades humanas que me comoveriam independentemente de quem as
possuísse.
Eu já disse e repito que eu
não me apresentaria depois
desse homem em qualquer clube ou teatro em parte alguma,
nem por todo o ouro de Las Vegas. Tenho orgulho de seu sucesso fabuloso. Aplaudo os artistas de grande talento que
apóiam boas causas, e Sammy
é exatamente esse tipo de homem.
Alguns anos atrás, ele fez
uma apresentação solo, de três
horas, na Chicago Civic Opera
House, em benefício da Liga
Urbana da cidade, uma organização que se dedica à promoção de oportunidades econômicas para negros americanos. O show rendeu US$ 20 mil
para a Liga Urbana, e, para
Sammy, a noite foi uma diversão.
Tenho outros amigos de longa data, como o grande Joe
Louis e o incomparável Sugar
Ray Robinson, cujos triunfos e
derrotas venho compartilhando há muitos anos. Minha paixão pelo boxe me aproximou
de pugilistas que viraram
meus ídolos e que, mais tarde,
aprendi a admirar como amigos.
Um deles é Jersey Joe Walcott. Grande e corajoso, fora
do ringue Walcott é gentil e
sensível. A doçura é uma qualidade raramente encontrada
hoje em dia, mas Joe a possui
de sobra. Eu não me atreveria
a identificar meu boxeador
predileto, pois já conheci e admirei muitos, mas Joe Louis
sempre será uma de minhas
pessoas favoritas.
Venho acompanhando os altos e baixos de sua carreira
desde a noite de 1938, em que
derrubou Max Schmeling no
primeiro round e recuperou
para os EUA o título dos pesos-pesados. Com ou sem título
de campeão, rico ou falido, Joe
sempre simbolizou a dignidade humana. Em sua presença,
sinto-me humilde. Joe Louis
tornou-se uma lenda ainda em
vida porque possuía o talento
de um verdadeiro artista, a
força de um demônio e o coração de um leão. Sempre amei
Jimmy Cannon por ter criado
aquela frase maravilhosa:
"Louis é motivo de honra para
a sua raça -a raça humana".
Em termos profissionais e
musicais, não posso nem começar a avaliar a tremenda
importância dos cantores e
músicos negros. A dívida com
eles é imensa demais para ser
paga. Venho recebendo inspiração de uma sucessão de
grandes cantores e jazzistas
negros, que vem desde Louis
Armstrong e Duke Ellington.
Em termos de meu canto, já
me perguntaram, algumas vezes, como tudo começou, e normalmente acho difícil apresentar a história em forma de narrativa contínua.
Desde minha infância, venho
ouvindo sons e cantores, negros e brancos, absorvendo um
pouquinho aqui e um pouquinho ali. Inúmeros músicos de
talento me ajudaram. Mas é
Billie Holliday, que eu ouvi pela primeira vez em clubes na
rua 52, no início dos anos 30,
que foi e continua sendo minha maior influência isolada.
Lady Day foi inquestionavelmente a mais importante influência do canto popular
americano dos últimos 20
anos. Com poucas exceções, todos os grandes cantores pop
americanos de sua geração foram influenciados pelo gênio
dela, de uma maneira ou outra. A profundidade do canto
de Lady Day sempre me comoveu profundamente. Quando
eu a ouvi pela primeira vez,
debaixo de um spot numa casa
de jazz da rua 52, movendo o
corpo para acompanhar o ritmo, fiquei maravilhado com
sua beleza suave, arrebatadora. Era o tipo de rosto que fazia
um homem sentir vontade de
acariciá-lo com ternura.
Quando eu era um cantor jovem, ouvia Ethel Waters com
frequência. Seus sentimentos
pelo blues e seu calor humano
me tocaram profundamente.
Nunca vou esquecê-la. A arte
de Ella Fitzgerald cresceu com
o passar dos anos -e me carregou junto. Na minha opinião, Ella é a maior das cantoras de jazz contemporâneas.
Minhas experiências na música me ensinaram que o talento é cego no tocante à cor da
pele. O jazz se tornou uma força internacional porque as habilidades e os talentos criativos
de músicos de muitas cores e
nações se reuniram para fazer
dele o que hoje é. Nossa América é um grande caldeirão que
mistura pessoas de todas as cores e crenças. Essa mistura vem
acontecendo desde o início dos
tempos e nada pode interrompê-la.
O casamento entre pessoas
de raças e religiões diferentes
nunca é um problema para seres humanos civilizados, e,
quando falo nisso, estou pensando não apenas em casamentos de brancos com negros,
mas também entre judeus e
não-judeus, entre católicos e
protestantes. Sempre me ensinaram que o matrimônio nasceu no céu e que essa união sagrada de dois corações possui
integridade própria.
Na minha própria profissão,
o show business, sempre nos
orgulhamos de nossa tradição
de avaliar e aceitar os artistas
com base em seu mérito e nada
mais. O entretenimento tem,
de modo geral, estado à frente
do resto do país no que diz respeito à democracia real.
Ainda restam algumas poucas áreas em que falta fazer
muita coisa. A música, por
exemplo: ainda é fato -trágico- que várias cidades têm
subsedes racialmente segregadas do sindicato dos músicos.
Mas bandas de rádio e de gravação estão ficando cada vez
mais racialmente integradas.
Na minha vida, já senti o
preconceito. Muitas pessoas
têm preconceito contra italianos. Não muito tempo atrás,
uma mulher levemente bêbada
sentou-se à minha mesa num
nightclub na Califórnia e me
disse: "Sabe como te chamamos na minha casa? Chamamos você de "o cantor wop"'.
Não foi a primeira vez que me
chamaram de "wop" (termo
pejorativo para designar um
italiano) e provavelmente não
será a última.
Uma maneira pela qual o cidadão médio pode ajudar é
manifestar-se contra o uso de
epítetos pejorativos de cunho
racial, sempre que os ouvir. Já
faz tempo que adotei o hábito
de interromper qualquer conversa na qual estou envolvido,
quando surgem termos como
"nigger" (crioulo), "wop", "kike" (judeu) ou "hunky" (imigrante do Leste Europeu).
Em 1945, quando alguns estudantes do colégio Froebel
High School, em Gary, Indiana, fizeram greve para impedir
a admissão de alunos negros,
sua iniciativa fez manchetes
no país inteiro e até no exterior. Fui até Gary para tentar
fazer alguma coisa e descobri
que agitadores de fora da cidade tinham incitado os alunos.
Fiz um discurso no auditório
da escola e cantei "The House I
Live in".
Algumas pessoas acharam
que eu estava me arriscando
ao me intrometer naquela situação explosiva, mas meu
único intuito era acalmar
aqueles adolescentes e derrubar os muros do ódio, erguidos
artificialmente. De certo modo, foi a apresentação mais
importante da minha vida.
Começou ao som de vaias.
Pouco a pouco, os alunos foram silenciando e começaram
a me ouvir. Acho que consegui
transmitir o que queria a muitos. Poucos dias depois, eles
voltaram às aulas.
Tenho fé ilimitada na decência e no bom senso da juventude e não acredito que ela vá se
deixar enganar por muito tempo por pais preconceituosos e
agitadores de inspiração política. O mais importante é unir
pessoas de todos os tipos, criar
um contato saudável entre
elas. Isso feito, o medo e a desconfiança vão desaparecer, e
as pessoas vão deixar de enxergar umas às outras como integrantes de minorias, começando a se ver e a se aceitar como
seres humanos.
Tradução
Clara Allain
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