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Conhecimento tradicional em colisão com acordos globais
ANA VALÉRIA ARAÚJO
NURIT BENSUSAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Celebrada no âmbito da
Eco-92, a Convenção
sobre Diversidade Biológica (CDB) equiparou
a condição dos países possuidores
de biodiversidade à dos países detentores de tecnologia, criando
mecanismos de repartição equitativa de benefícios do uso sustentável dos recursos biológicos.
A CDB trouxe importantes inovações para a proteção da biodiversidade do planeta, reconhecendo que a sua conservação se
deve, em grande parte, aos conhecimentos de povos indígenas e comunidades locais.
A convenção já conta com 181
assinaturas e 168 ratificações.
Quase todos os países do mundo
são hoje membros da convenção,
sendo a mais expressiva exceção
os Estados Unidos, que, embora a
tenham assinado, até hoje não ratificaram o instrumento. Ainda
assim, participam como observadores, influenciando ativamente
as negociações da convenção, em
especial nas suas interfaces com
os direitos de propriedade intelectual, expressos sobretudo no
acordo Trips (abreviação em inglês para Aspectos Relacionados
ao Comércio de Direitos de Propriedade Intelectual).
O Trips foi formulado em 1993.
Para sua confecção, os países
membros do Gatt (Acordo Geral
de Tarifas e Comércio) concordaram em adaptar suas legislações
nacionais sobre patentes de seres
vivos, entre outras coisas. Os dispositivos do Trips também abarcam produtos farmacêuticos, sendo todas as suas discussões fixadas sob a perspectiva do aproveitamento comercial da biodiversidade. Todos os países membros
da OMC são membros do Trips.
Muito se tem argumentado sobre as incompatibilidades entre
os dois instrumentos internacionais, concentradas principalmente na implementação do dispositivo do Trips que trata do patenteamento de seres vivos e dos artigos
da convenção que tratam do conhecimento tradicional e do acesso a recursos genéticos.
Em 1996, por exemplo, a Índia
apresentou documento no Comitê de Ambiente e Comércio da
OMC assinalando que esses acordos são conflituosos e irreconciliáveis. O grupo de países africanos tem enfatizado que direitos
de propriedade intelectual são
contrários a práticas tradicionais.
A União Européia, embora tenha
ratificado a CDB, não abre mão de
defender o interesse de seus países na área de biotecnologia.
O Brasil, que partilha da posição
da União Européia, ao adotar a
sua lei de patentes dificultou, na
prática, o reconhecimento das
vantagens que lhe garante o seu
potencial de biodiversidade. Isso
na medida em que o amplo reconhecimento de patentes não se
harmoniza com a transferência de
tecnologia e a proteção aos conhecimentos tradicionais.
Os EUA defendem a idéia de
que os acordos tratam de temas
diferentes e que, portanto, não há
conflito, nem necessidade de
compatibilização, principalmente
porque não são membros da
CDB. As posições dentro do Trips
dão uma dimensão da diferença
de peso entre os dois acordos, o
que pode ser agravado durante o
processo atualmente em curso de
revisão do Trips.
Há posições diversas com relação à revisão do Trips, sendo certo que os países industrializados
tendem a pressionar pela manutenção do texto ou por meras alterações de linguagem. O Brasil,
nesse contexto, tem defendido a
inclusão, no artigo que trata do
patenteamento dos seres vivos, de
mecanismos de reconhecimento
do conhecimento tradicional e de
repartição efetiva de benefícios,
entre outras coisas. Essa é uma
tentativa que, somada à posição
de outros países, poderia evitar
que a CDB, nesse processo, seja
relegada a um segundo plano.
Ana Valéria Araújo é advogada e Nurit
Bensusan é bióloga, ambas do Instituto
Socioambiental (ISA)
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