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MILITARISMO
Decisões a favor da segurança nacional podem pôr em risco as conquistas das instituições democráticas e dos direitos civis
A liberdade sob os brucutus
O chauvinismo machista em estilo John Wayne, que nos levou a matar no Vietnã, continua em voga em Washington
RICHARD RORTY
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os Estados Unidos já
estão em guerra, embora não esteja claro
que tipo de guerra será. Nenhum país pode suportar o
tipo de golpe que sofremos sem
tomar ação retaliatória decisiva,
mesmo que, na realidade, não saibamos exatamente que ações empreender.
Alguns especialistas estão prevendo que o presidente Bush vá
dizer ao Taleban que, se não extraditar Osama bin Laden imediatamente, será declarada guerra ao
Afeganistão. Outros aventam palpites, alguns dos quais sobre a
possível retomada da guerra contra Saddam Hussein. É possível
que, quando estas palavras saírem
impressas, algumas decisões já tenham sido tomadas. Mas tudo o
que está certo no momento em
que escrevo é que a América está
prestes a tornar-se ainda mais fortemente militarizada do que já é
-que aquilo que o presidente Eisenhower descreveu como "o
complexo militar-industrial" terá
ainda mais poder do que já tem.
Podemos apenas esperar que
seja dada ao Congresso a chance
de discutir as ações que o país vai
empreender e que ele não se contente em fazer um pronunciamento vago, no estilo "carta-branca" -"o que o presidente
quiser"-, como a chamada "resolução do Golfo de Tonkin". Esta
última foi usada para justificar tudo o que os presidentes Johnson e
Nixon escolheram, posteriormente, fazer no Vietnã. Nossa
Constituição reserva ao Congresso o poder de declarar guerra,
mas a Guerra Fria foi pontilhada
de guerras não declaradas, desde
o apoio dado aos contras na Nicarágua até a invasão do Panamá,
passando pelas guerras da Coréia
e do Vietnã. Em todos esses casos,
o presidente agiu por iniciativa
própria, sem consulta prévia à
opinião pública.
É possível que o presidente
Bush, no caso atual, explique ao
Congresso e ao público o que pretende fazer antes de realmente fazê-lo. Mas também é possível que
não. O chauvinismo machista em
estilo John Wayne, que nos levou
a continuar a matar vietnamitas e
a sacrificar nossos próprios soldados muito depois de já sabermos
que a Guerra do Vietnã era impossível de ser vencida, continua
em voga em Washington, onde é
conhecido como "determinação
firme". A administração Bush
tem-se mostrado excepcionalmente arrogante ao anunciar importantes decisões políticas sem
fazer praticamente nenhum esforço para justificá-las perante o
público. São exemplos disso a absurda iniciativa do escudo antimísseis e a revogação de diversos
tratados e acordos internacionais.
Assim, é possível que nós, americanos, mais uma vez fiquemos sabendo das decisões tomadas por
nosso governo apenas depois que
elas já tiverem sido implementadas. A democracia não deveria
funcionar assim, mas a verdade é
que a Guerra Fria, apesar de ter sido necessária, causou prejuízos
duradouros a nossas instituições
democráticas.
Qualquer coisa que não chegue
a fazer a Bagdá ou a Cabul o que
foi feito a Roterdã, a Coventry, a
Dresden e a Hiroshima provavelmente será aceita pela população
americana como manifestação
necessária de determinação firme
-ou seja, uma reação apropriada
ao ataque de terça-feira. Eu mesmo provavelmente o aceitaria.
Mas, depois que os primeiros
bombardeios terminarem, haverá
muitos meses durante os quais o
governo tomará outras decisões
sobre políticas de longo prazo. Estas terão por objetivo nos proteger contra outras agressões (que
podem ser ainda mais devastadoras, com o uso de armas biológicas). A não ser que essas decisões
posteriores sejam tomadas pelo
Congresso, em lugar de ordem
executiva, e sejam extensamente
debatidas pelo público, a democracia americana será ainda mais
enfraquecida. O Estado de segurança nacional ganhará ainda
mais poder.
A administração Bush contém
muitos homens e mulheres
honrados, decentes e sensatos.
Não tem criptofascistas. Apesar
disso, os governos republicanos
são muito mais favoráveis do que
os democratas à presença de figuras sinistras como J. Edgar Hoover, Oliver North e Joseph
McCarthy. O Partido Republicano se especializa em chauvinismo. Ele vem-se esforçando abertamente para agradar aos loucos
por armas, que não vêm razão para proibir que particulares possuam suas automáticas, aos entusiastas da pena de morte e àqueles
para os quais conservar uma proporção enorme dos jovens negros
deste país na prisão é política nacional justa e correta.
Assim, não foi paranóia infundada o que levou democratas de
esquerda como eu a reagir ao noticiário, na manhã do dia 11, comentando "meu Deus, que consequências isso não terá para nossas
liberdades civis?". Voltamos a nos
fazer essa pergunta quando ouvimos o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, na entrevista coletiva que deu à imprensa no dia 12,
tecer críticas -desligadas de
qualquer contexto- a pessoas
que deixam vazar informações sigilosas. Desde que o "The New
York Times" publicou os chamados "Pentagon Papers" (Documentos do Pentágono), esses vazamentos de informações nos
vêm fazendo tomar consciência
da maneira, desavergonhada e
sem remorsos, como o governo
mente para nós. Podemos ouvir
muitas mentiras ainda nos próximos meses e, possivelmente, assistir a mais julgamentos daqueles
que tentarem expô-las.
Todas as vezes em que os Estados Unidos foram à guerra, as liberdades civis -ou seja, os direitos do cidadão que se sobrepõem
aos do Estado- saíram prejudicadas. Sindicalistas socialistas como Eugene Debs, que se opunha
ao serviço militar obrigatório, foram encarcerados durante a Primeira Guerra Mundial. Americanos de origem japonesa foram
confinados em campos fechados
durante a Segunda Guerra Mundial (como resultado de uma decisão executiva que, para a vergonha duradoura desta, foi ratificada pela Suprema Corte).
A organização privada União
Americana pelas Liberdades Civis
(American Civil Liberties Union,
ou Aclu -ver www.aclu.org) foi
criada em 1913 para defender os
direitos do cidadão individual. Ao
longo dos anos, ela acumulou um
histórico admirável, levando aos
tribunais a luta pela defesa desses
direitos -especialmente em tempos de guerra.
Amigos de meu país em outros
países devem-se manter atentos,
nos próximos anos, a artigos em
jornais que informem que a Aclu
está abrindo processos contra representantes do governo por violações de privacidade, por processos jurídicos injustos ou pela implementação de leis que ferem
nossa Constituição.
Se tivermos sorte, nossa opção
pela guerra não vai, desta vez, fazer aumentar a necessidade de a
Aclu se manter atenta. Mas a evocação da segurança nacional é
uma arma muito poderosa nas
mãos de autoridades que têm
pouco respeito pela opinião pública ou pelas liberdades dos cidadãos. Assim, nós, democratas, estaremos enviando à Aclu cheques
maiores do que no passado.
Apesar de os Estados Unidos
hoje lembrarem mais um império
do que uma república e apesar da
extraordinária arrogância manifestada recentemente por nosso
governo, meu país ainda tem
muitos amigos no exterior -pessoas que se sentem gratas pelo
modelo de democracia constitucional que os Estados Unidos ofereceram ao mundo no passado e
que querem bem ao país. Eu me vi
comovido até às lágrimas pelas
mensagens de solidariedade recebidas de amigos estrangeiros por
e-mail, que começaram a chegar
pouco após os ataques terroristas.
Espero que esses amigos não se
decepcionem com as decisões que
meu governo venha a tomar muito em breve -não apenas com as
que dizem respeito a medidas retaliatórias imediatas mas também
com as que afetarão o futuro da
democracia americana.
Tradução de Clara Allain
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