São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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A farmácia no fundo do mar


Cura da dengue pode estar num animal que vive no fundo do mar; cientistas extraem substâncias antiinflamatórias de uma esponja; enzimas de bactérias marinhas possuem muitas aplicações


CÉLIA ALMUDENA
da Reportagem Local

RODRIGO AMARAL
de Paris

Os oceanos podem ser a farmácia do futuro. Neste momento, cientistas de várias partes do mundo estão extraindo substâncias dos seres marinhos que podem dar origem a novos remédios.
A cura da dengue, que atinge milhões de brasileiros todos os anos, pode estar num pequeno animal que vive no fundo do mar.
Trata-se de um cirenóide (animal da família dos equinodermos, como a estrela-do-mar), de nome Gymnocrinus richeri, que vive nas regiões abissais do Pacífico.
Segundo relatório do Orstom, centro de pesquisa ligado ao governo francês, esse cirenóide pode ser considerado um fóssil vivo: seu organismo não mudou significativamente desde o período Jurássico, há mais de 200 milhões de anos.
Era um animal considerado extinto até ser encontrado pelos pesquisadores do centro nas proximidades da Nova Caledônia, em coletas realizadas em 1994 e 1995.
Em 1997, o Orstom, em trabalho conjunto com o Instituto Pasteur da Nova Caledônia, encontrou nesse animal três substâncias que podem combater o vírus da dengue. Em testes, essas substâncias foram confrontadas ao vírus e conseguiram neutralizar sua ação.
As três substâncias "se mostraram capazes de inibir, com uma concentração muito pequena, a multiplicação do vírus da dengue", diz o relatório dos trabalhos. "A atividade antiviral é ainda mais interessante porque, "in vitro', essas substâncias não se mostraram tóxicas para as células."
O relatório adverte que será necessário um bom tempo para que as substâncias encontradas possam originar medicamentos eficazes no combate à dengue.
Segundo a pesquisadora Cécile Debitus, do Orstom e da Faculdade de Farmácia da Universidade de Nantes, ainda é preciso comprovar que as substâncias realmente não exercem uma ação nociva sobre as células humanas.
"Ainda que numerosas e difíceis etapas devam ser ultrapassadas antes que as moléculas originem um medicamento, a descoberta dessas propriedades antivirais abre desde já interessantes perspectivas", diz o texto: "Esses metabolismos oferecem o primeiro modelo químico conhecido de substâncias ativas contra o vírus da dengue e deverão permitir estreitar os métodos de pesquisa de novos agentes quimioterapêuticos".

Defesas

O interesse científico nos organismos oceânicos está baseado em duas premissas. Primeiro, alguns animais marinhos desenvolveram, basicamente, dois mecanismos de sobrevivência: defesas físicas, como espinhos e conchas, e/ou defesas químicas. Segundo, eles constituem uma grande parte dos recursos biológicos da Terra.
Apesar de possuir a proteção de sua bela concha, um molusco do gênero conus está sendo pesquisado por cientistas de várias áreas. Escondido em seu corpo macio há um potente veneno que a criatura carnívora utiliza na captura de suas presas. Quando estão perto o suficiente de suas presas, alguns desses animais lançam um pequeno "arpão", que paralisa imediatamente a vítima com seu veneno.
Há cerca de 500 variedades desses moluscos. Dos cerca de 60 conus carnívoros, que têm o veneno mais poderoso, pelo menos dois têm uma "ferroada" que pode ser fatal para os humanos.
Esse veneno atraiu a atenção dos hematologistas (estudiosos do sangue) Bruce e Barbara Furie, da Escola de Medicina de Harvard. "Um aminoácido essencial para uma coagulação sanguínea nos humanos aparece no veneno desses moluscos", diz Bruce Furie.
Para manter a coagulação funcionando bem, precisamos de vitamina K. Essa vitamina é necessária para a síntese de um aminoácido -ácido gamma-carboxyglutamic (Gla)- encontrado em certas proteínas responsáveis pela coagulação e que permite que estas interajam com as membranas celulares, abrindo caminho para a reparação dos tecidos danificados.
Sem a vitamina K, o Gla não pode ser produzido. Sem o Gla, as proteínas responsáveis pela coagulação sanguínea não podem interagir com a superfície das células.
"Estamos estudando a ação da vitamina K na bioquímica da coagulação sanguínea e a forma como ela é utilizada por esse moluscos para sintetizar o Gla", diz Bruce Furie. Segundo ele, algumas empresas já estão trabalhando no uso dessas conotoxinas no tratamento de doenças em humanos.
Proteção química
"Organismos que, à primeira vista, se defendem quimicamente e não por meio de conchas, de espinhos ou da capacidade de correr e se esconder têm um grande interesse. Então, quando mergulhamos em um recife e vemos algo que parece um enorme pedaço de alimento e nada o está comendo, assumimos que possui proteção química", diz John Faulkner, pesquisador da Universidade da Califórnia, em San Diego, pertencente ao Programa Nacional Sea Grant.
Para o pesquisador, "a hipótese consequente é que alguns produtos químicos que ajudam a proteger organismos marinhos também podem proteger humanos".
Faulkner e sua equipe da Universidade da Califórnia, em San Diego, descobriram uma nova molécula inibidora, derivada de uma esponja do Pacífico chamada haliclona. A molécula, chamada adociasulfate-2 (AS-2), é a primeira a inibir uma família de proteínas que tem um importante papel no transporte intracelular e na divisão das células.
Além de ajudar os biólogos a entender melhor como as células se dividem e transportam materiais, o AS-2 também pode levar ao desenvolvimento de novos medicamentos contra o câncer. "Há cerca de 20 produtos em fase de testes clínicos", diz José Darías, doutor em ciências químicas da Universidade de La Laguna (Espanha).
O espanhol salienta que, dos 15 produtos naturais candidatos a remédios anticancerígenos, aprovados para testes clínicos pelo Instituto Nacional do Câncer dos EUA, 7 são de origem marinha, 4 são derivados de micróbios e outros 4 de plantas. Exemplos: bryostatin, derivada do briozoário Bugula neritina, e dolasstatin, da "sea hare" Dolabella auricularia.
Antiinflamatórios
Mas o câncer não é o único alvo. Outra pesquisa do Programa Nacional Sea Grant visa o tratamento da artrite, doença que atinge um em sete norte-americanos. Robert S. Jacobs, da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, descobriu recentemente dois compostos marinhos naturais raros que bloqueiam totalmente inflamações neurogênicas, o que pode aliviar a dor de milhões de pessoas.
Na busca por novas maneiras de aliviar a dor de artrite, Jacobs concentrou suas pesquisas na vida marinha, particularmente em esponjas, corais macios e algas. Ele está explorando e descrevendo produtos químicos exóticos até então desconhecidos, derivados desses organismos, que atraíram a atenção por suas superfícies praticamente esterilizadas.
O composto monoalide, derivado de uma esponja, produziu mais de 300 produtos químicos, com um significativo número desses passando por testes clínicos como agentes antiinflamatórios.
Para Darías, nos próximos anos, a farmacopéia marinha irá ampliar o arsenal terapêutico. Hoje, os únicos produtos marinhos de uso clínico no mercado (criados a partir da estrutura química de uma esponja caribenha), são usados usados na terapêutica viral.
Na opinião de Darías, a procura por novos fármacos nos oceanos é natural: "Como nossas fontes genéticas estão no mar, nossas reservas genéticas também estão ali". Além disso, essas pesquisas são comparativamente mais vantajosas por seu custo reduzido, já que "é mais fácil e barato estudar geneticamente microorganismos marinhos do que mamíferos".
Enzimas produzidas por bactérias marinhas também estão atraindo a atenção por suas propriedades incomuns (resistentes ao sal ou a temperaturas extremas). Apenas uma bactéria marinha pesquisada (Vibrio alginolytti cus) produz seis proteases, entre elas a collagenase uma enzima com uma enorme variedade de aplicações médicas e industriais.



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