São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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As aventuras perigosas de Cervantes

Envolta em mistério, a vida do escritor tem momentos dignos de sua própria ficção; em busca de pistas sobre o autor espanhol, biógrafos rastreiam páginas de "Dom Quixote"

DA REDAÇÃO

Só seis dentes. Mal colocados e sem correspondência uns com os outros. Fora as poucas dicas que o próprio Miguel de Cervantes Saavedra deixou, sabe-se pouco sobre como era o autor de "Dom Quixote". Mesmo sucinta, porém, a descrição expõe as marcas de uma vida cheia de aventuras.
Adversidades não faltam na biografia do escritor. Sua história mistura momentos de aventura dignos de sua própria ficção a grandes espaços de tempo envoltos em mistério. Períodos em que nem seu paradeiro nem suas atividades são conhecidos.
Tal combinação de ação e segredo exerce imenso fascínio nos biógrafos, que, na falta de documentos, rastreiam "Dom Quixote" atrás de pistas. "Buscar Cervantes por trás do Quixote é uma aventura perigosa. Cervantes não combateu moinhos de vento, e sim perigos autênticos", diz à Folha Jean Canavaggio, da Universidade de Paris 10 - Nanterre.
Para Maria Augusta da Costa Vieira, da USP, "faltam muitos dados acerca da vida de Cervantes. A impressão que se tem é que ele teve o cuidado de não deixar marcas biográficas que pudessem orientar a leitura dos textos".
Cervantes nasceu em Alcalá de Henares (ao norte de Madri), provavelmente no dia 29 de novembro de 1547. O pai era cirurgião, quando isso significava ser pouco menos que um médico. Em geral, era um sujeito que realizava sangrias e fazia curativos. O irmão, Rodrigo, foi soldado, e as irmãs ganhavam o pão com o que os biógrafos definem com o eufemismo "destrezas de mulher".
Pouco se sabe sobre sua educação. Era, isso sim, um fanático por livros, como ele mesmo diz, numa das dicas autobiográficas que espalhou ao longo do romance, quando fala em primeira pessoa ("yo soy aficionado a leer, aunque sean los papeles rotos de la calle").

Mão inválida
Em 1569, o escritor viajou à Itália e juntou-se às tropas espanholas em Nápoles. Numa batalha contra os turcos, em Lepanto (Grécia), perdeu a mão esquerda com um tiro de arcabuz. Ela não foi arrancada, mas ficou inválida para sempre.
Em 1575, Cervantes decidiu regressar à Espanha. Mas o navio em que viajava foi abatido, e ele, com o irmão, levado como escravo para a Argélia. Quatro tentativas de fuga e mais de cinco anos depois, foi enfim libertado.
Já na Espanha, teve dificuldades financeiras, um romance com uma mulher casada e uma filha. Em 1585, publicou seu primeiro livro, "La Galatea", e começou a escrever para teatro. Seus primeiros escritos, porém, não têm repercussão e ele não consegue encenar suas peças. "Cervantes queria ser um homem de teatro, mas a aparição de Lope de Vega o impediu, pois esse era o grande nome da época", conta Canavaggio.
Para sobreviver, Cervantes empregou-se na "invencível" Armada espanhola, que se preparava para atacar a Inglaterra. Sua função era arrecadar mantimentos como azeite e óleo. Com a Armada derrotada em 1588, seguiu viajando atrás de oportunidades.

Nasce o Quixote
Em 1597, Cervantes foi preso em Sevilha por ter manejado mal as contas da Armada. Ficou atrás das grades por um ano, e há indícios de que teria dado início, ali, a "Dom Quixote". "Ele disse que concebeu o romance na prisão. Mas não sabemos se se referia a uma prisão concreta ou se era uma metáfora", diz Canavaggio.
Não se conhece bem o que Cervantes fez nos anos seguintes. Teria trabalhado em atividades diplomáticas, há quem diga que também agiu como espião.
Quando "Dom Quixote" veio a público, em 1605, Cervantes tinha já 58 anos. Um episódio sinistro, então, teve lugar na frente de sua casa, em Valladolid. Um homem foi morto, e Cervantes, preso como suspeito. O crime havia sido uma "questão de saias", pois descobriu-se que o morto tinha um caso com a mulher de um funcionário real. Como o juiz quis salvar o tal funcionário, criou contradições e prendeu várias pessoas. Cervantes passou uns dias atrás das grades, mas foi solto depois.
Para Canavaggio, a passagem ilustra que o escritor rodeava-se de pessoas que viviam nos limites da marginalidade. "Sua filha e suas irmãs se dedicavam ao galanteio para ganhar a vida. A confusão estava sempre por perto."

O fim
Depois do sucesso de "D. Quixote", Cervantes não teve mais dificuldade para publicar seus livros. Assim, a fase mais produtiva de sua vida foi, curiosamente, quando tinha entre 66 e 68 anos, idade avançada para a época.
Em 1615, concluiu a segunda parte de "Dom Quixote". Em 1616, sofrendo de diabetes, previu o fim e descreveu a própria morte na dedicatória de "Los Trabajos de Persiles y Sigismunda", ao duque de Lemos: "Puesto ya el pie en el estribo, com las ansias de la muerte, señor, esta te escribo". Em 23 de abril daquele ano, Cervantes morreu. (SYLVIA COLOMBO)

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