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As aventuras perigosas de Cervantes
Envolta em mistério, a vida do escritor
tem momentos dignos de sua própria
ficção; em busca de pistas sobre
o autor espanhol, biógrafos
rastreiam páginas de "Dom Quixote"
DA REDAÇÃO
Só seis dentes. Mal colocados e
sem correspondência uns com os
outros. Fora as poucas dicas que o
próprio Miguel de Cervantes Saavedra deixou, sabe-se pouco sobre como era o autor de "Dom
Quixote". Mesmo sucinta, porém,
a descrição expõe as marcas de
uma vida cheia de aventuras.
Adversidades não faltam na
biografia do escritor. Sua história
mistura momentos de aventura
dignos de sua própria ficção a
grandes espaços de tempo envoltos em mistério. Períodos em que
nem seu paradeiro nem suas atividades são conhecidos.
Tal combinação de ação e segredo exerce imenso fascínio nos
biógrafos, que, na falta de documentos, rastreiam "Dom Quixote" atrás de pistas. "Buscar Cervantes por trás do Quixote é uma
aventura perigosa. Cervantes não
combateu moinhos de vento, e
sim perigos autênticos", diz à Folha Jean Canavaggio, da Universidade de Paris 10 - Nanterre.
Para Maria Augusta da Costa
Vieira, da USP, "faltam muitos
dados acerca da vida de Cervantes. A impressão que se tem é que
ele teve o cuidado de não deixar
marcas biográficas que pudessem
orientar a leitura dos textos".
Cervantes nasceu em Alcalá de
Henares (ao norte de Madri), provavelmente no dia 29 de novembro de 1547. O pai era cirurgião,
quando isso significava ser pouco
menos que um médico. Em geral,
era um sujeito que realizava sangrias e fazia curativos. O irmão,
Rodrigo, foi soldado, e as irmãs
ganhavam o pão com o que os
biógrafos definem com o eufemismo "destrezas de mulher".
Pouco se sabe sobre sua educação. Era, isso sim, um fanático por
livros, como ele mesmo diz, numa
das dicas autobiográficas que espalhou ao longo do romance,
quando fala em primeira pessoa
("yo soy aficionado a leer, aunque
sean los papeles rotos de la calle").
Mão inválida
Em 1569, o escritor viajou à Itália e juntou-se às tropas espanholas em Nápoles. Numa batalha
contra os turcos, em Lepanto
(Grécia), perdeu a mão esquerda
com um tiro de arcabuz. Ela não
foi arrancada, mas ficou inválida
para sempre.
Em 1575, Cervantes decidiu regressar à Espanha. Mas o navio
em que viajava foi abatido, e ele,
com o irmão, levado como escravo para a Argélia. Quatro tentativas de fuga e mais de cinco anos
depois, foi enfim libertado.
Já na Espanha, teve dificuldades
financeiras, um romance com
uma mulher casada e uma filha.
Em 1585, publicou seu primeiro
livro, "La Galatea", e começou a
escrever para teatro. Seus primeiros escritos, porém, não têm repercussão e ele não consegue encenar suas peças. "Cervantes queria ser um homem de teatro, mas
a aparição de Lope de Vega o impediu, pois esse era o grande nome da época", conta Canavaggio.
Para sobreviver, Cervantes empregou-se na "invencível" Armada espanhola, que se preparava
para atacar a Inglaterra. Sua função era arrecadar mantimentos
como azeite e óleo. Com a Armada derrotada em 1588, seguiu viajando atrás de oportunidades.
Nasce o Quixote
Em 1597, Cervantes foi preso
em Sevilha por ter manejado mal
as contas da Armada. Ficou atrás
das grades por um ano, e há indícios de que teria dado início, ali, a
"Dom Quixote". "Ele disse que
concebeu o romance na prisão.
Mas não sabemos se se referia a
uma prisão concreta ou se era
uma metáfora", diz Canavaggio.
Não se conhece bem o que Cervantes fez nos anos seguintes. Teria trabalhado em atividades diplomáticas, há quem diga que
também agiu como espião.
Quando "Dom Quixote" veio a
público, em 1605, Cervantes tinha
já 58 anos. Um episódio sinistro,
então, teve lugar na frente de sua
casa, em Valladolid. Um homem
foi morto, e Cervantes, preso como suspeito. O crime havia sido
uma "questão de saias", pois descobriu-se que o morto tinha um
caso com a mulher de um funcionário real. Como o juiz quis salvar
o tal funcionário, criou contradições e prendeu várias pessoas.
Cervantes passou uns dias atrás
das grades, mas foi solto depois.
Para Canavaggio, a passagem
ilustra que o escritor rodeava-se
de pessoas que viviam nos limites
da marginalidade. "Sua filha e
suas irmãs se dedicavam ao galanteio para ganhar a vida. A confusão estava sempre por perto."
O fim
Depois do sucesso de "D. Quixote", Cervantes não teve mais dificuldade para publicar seus livros. Assim, a fase mais produtiva
de sua vida foi, curiosamente,
quando tinha entre 66 e 68 anos,
idade avançada para a época.
Em 1615, concluiu a segunda
parte de "Dom Quixote". Em
1616, sofrendo de diabetes, previu
o fim e descreveu a própria morte
na dedicatória de "Los Trabajos
de Persiles y Sigismunda", ao duque de Lemos: "Puesto ya el pie en
el estribo, com las ansias de la
muerte, señor, esta te escribo".
Em 23 de abril daquele ano, Cervantes morreu.
(SYLVIA COLOMBO)
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