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SANCHO PANÇA
Realista com relação ao presente, o fiel companheiro
de Quixote é, porém, sonhador quanto ao futuro
O sonho do escudeiro
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Em certo momento da narrativa
de Cervantes, já na segunda parte
do livro, Sancho e Dom Quixote
se separam. É noite; o fidalgo está
num castelo, acaba de cear, e deverá recolher-se sozinho ao quarto. Sente saudades de Sancho.
"Fechou a porta atrás de si e, à luz
de duas velas de cera, despiu-se, e
ao descalçar-se, ó desgraça indigna de uma pessoa como esta! soltaram-se, não suspiros, nem outra coisa que desacreditasse a limpeza de seus costumes, mas sim
duas dúzias de pontos de uma
meia, que ficou parecendo uma
treliça. Afligiu-se muito o bom senhor, e seria capaz de dar uma onça de prata para ter ali um pouquinho de seda verde, e digo de
seda verde, porque as meias eram
verdes" (parte 2, cap. 44).
A cena, prosaica e íntima, nada
tem em comum com as célebres
alucinações de Dom Quixote. A
meia furada, depois da menção às
duas velas de cera, parece simbolizar tanto a pobreza material do
cavaleiro quanto a solidão em que
se encontra. Sem ter ninguém para ouvir os seus delírios, Quixote
retorna a uma realidade comezinha, de privações precisas e necessidades pouco elevadas. Numa
palavra, é o mundo de Sancho; e é
como se Dom Quixote o reencontrasse em si mesmo, e à sua volta,
uma vez ausente o escudeiro.
O relato continua. Quixote se
consola em seguida, "notando
que Sancho lhe deixara umas botas de caminhada, que tencionou
calçar no outro dia. Finalmente,
recostou-se pensativo e pesaroso,
tanto pela falta que Sancho lhe fazia, como pela irreparável desgraça das suas meias, às quais remendaria mesmo com seda de outra
cor, o que é dos maiores sinais de
miséria que um fidalgo pode dar
em suas prolixas aperturas".
Dom Quixote usando as botas
de Sancho Pança? Por mais que
consideremos incompatíveis as
duas personagens, no famoso
contraste que estabelecem entre o
ideal e o pedestre, entre o nobre e
o vulgar, não estamos diante de
uma circunstância tão estranha
assim. Ao longo do livro, acontece
de Sancho e Quixote trocarem de
papéis, ou pelo menos de argumentos.
Desde o início do relato, Sancho
Pança dá mostras tanto de credulidade quanto de realismo: insiste
em dizer a Dom Quixote que os
moinhos são simples moinhos, e
não gigantes, mas ao mesmo tempo acredita que, acompanhando
o cavaleiro, será recompensado
com a posse de uma ilha. Quixote
vai mais longe, e promete a Sancho, quem sabe, até mesmo um
reino. Simplório e astuto, o camponês acompanha o raciocínio.
"Desse modo, respondeu Sancho Pança, se eu fosse rei por algum milagre dos que Vossa Mercê diz, pelo menos Joana Gutierres, meu conchego, chegaria a ser
rainha, e os meus filhos infantes.
-Quem o duvida? -respondeu
Dom Quixote. -Duvido eu, replicou Sancho Pança, porque tenho para mim que, mesmo se
Deus chovesse reinos sobre a Terra, nenhum assentaria bem na cabeça da Maria Gutierres. Saiba,
senhor meu, que ela para rainha
não vale dois maravedis; de condessa muito melhor acertaria, e
assim mesmo com a ajuda de
Deus."
Sancho muda de convicção com
a mesma rapidez com que troca o
nome da mulher, mas a esperança
de governar uma ilha haverá de
acompanhá-lo o tempo todo. A
ilha, disse um crítico, é sua Dulcinéia. Realista com relação ao presente, Sancho é sonhador quanto
ao futuro. A ponto de ser D. Quixote quem o chama à realidade,
depois de uma primeira refrega
pela estrada: "Advirto-lhe, Sancho amigo, que esta aventura, e
outras semelhantes a esta, não são
aventuras de ilhas, senão só de encruzilhadas, em que não se ganha
outra coisa que não cabeça quebrada, ou orelha de menos".
Mas aonde fora Sancho, deixando sozinho seu amo, às voltas
com a meia furada de que falávamos no começo? Tinha ido tomar
posse de sua ilha. De fato, para debochar-se do fidalgo e do escudeiro, um duque nomeara Sancho
"governador" de uma aldeia. Sancho se revela um administrador
justo e sagaz, seguindo os conselhos -muito sensatos- que lhe
dera Dom Quixote ao partir.
O embuste é desfeito com rapidez; tanto melhor. Sancho e Quixote se reencontram, e, como os
fios de cores disparatadas que haveriam de compor a meia do fidalgo, a grande e pura amizade se
reata.
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