São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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SANCHO PANÇA

Realista com relação ao presente, o fiel companheiro de Quixote é, porém, sonhador quanto ao futuro

O sonho do escudeiro

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Em certo momento da narrativa de Cervantes, já na segunda parte do livro, Sancho e Dom Quixote se separam. É noite; o fidalgo está num castelo, acaba de cear, e deverá recolher-se sozinho ao quarto. Sente saudades de Sancho. "Fechou a porta atrás de si e, à luz de duas velas de cera, despiu-se, e ao descalçar-se, ó desgraça indigna de uma pessoa como esta! soltaram-se, não suspiros, nem outra coisa que desacreditasse a limpeza de seus costumes, mas sim duas dúzias de pontos de uma meia, que ficou parecendo uma treliça. Afligiu-se muito o bom senhor, e seria capaz de dar uma onça de prata para ter ali um pouquinho de seda verde, e digo de seda verde, porque as meias eram verdes" (parte 2, cap. 44).
A cena, prosaica e íntima, nada tem em comum com as célebres alucinações de Dom Quixote. A meia furada, depois da menção às duas velas de cera, parece simbolizar tanto a pobreza material do cavaleiro quanto a solidão em que se encontra. Sem ter ninguém para ouvir os seus delírios, Quixote retorna a uma realidade comezinha, de privações precisas e necessidades pouco elevadas. Numa palavra, é o mundo de Sancho; e é como se Dom Quixote o reencontrasse em si mesmo, e à sua volta, uma vez ausente o escudeiro.
O relato continua. Quixote se consola em seguida, "notando que Sancho lhe deixara umas botas de caminhada, que tencionou calçar no outro dia. Finalmente, recostou-se pensativo e pesaroso, tanto pela falta que Sancho lhe fazia, como pela irreparável desgraça das suas meias, às quais remendaria mesmo com seda de outra cor, o que é dos maiores sinais de miséria que um fidalgo pode dar em suas prolixas aperturas".
Dom Quixote usando as botas de Sancho Pança? Por mais que consideremos incompatíveis as duas personagens, no famoso contraste que estabelecem entre o ideal e o pedestre, entre o nobre e o vulgar, não estamos diante de uma circunstância tão estranha assim. Ao longo do livro, acontece de Sancho e Quixote trocarem de papéis, ou pelo menos de argumentos.
Desde o início do relato, Sancho Pança dá mostras tanto de credulidade quanto de realismo: insiste em dizer a Dom Quixote que os moinhos são simples moinhos, e não gigantes, mas ao mesmo tempo acredita que, acompanhando o cavaleiro, será recompensado com a posse de uma ilha. Quixote vai mais longe, e promete a Sancho, quem sabe, até mesmo um reino. Simplório e astuto, o camponês acompanha o raciocínio.
"Desse modo, respondeu Sancho Pança, se eu fosse rei por algum milagre dos que Vossa Mercê diz, pelo menos Joana Gutierres, meu conchego, chegaria a ser rainha, e os meus filhos infantes. -Quem o duvida? -respondeu Dom Quixote. -Duvido eu, replicou Sancho Pança, porque tenho para mim que, mesmo se Deus chovesse reinos sobre a Terra, nenhum assentaria bem na cabeça da Maria Gutierres. Saiba, senhor meu, que ela para rainha não vale dois maravedis; de condessa muito melhor acertaria, e assim mesmo com a ajuda de Deus."
Sancho muda de convicção com a mesma rapidez com que troca o nome da mulher, mas a esperança de governar uma ilha haverá de acompanhá-lo o tempo todo. A ilha, disse um crítico, é sua Dulcinéia. Realista com relação ao presente, Sancho é sonhador quanto ao futuro. A ponto de ser D. Quixote quem o chama à realidade, depois de uma primeira refrega pela estrada: "Advirto-lhe, Sancho amigo, que esta aventura, e outras semelhantes a esta, não são aventuras de ilhas, senão só de encruzilhadas, em que não se ganha outra coisa que não cabeça quebrada, ou orelha de menos".
Mas aonde fora Sancho, deixando sozinho seu amo, às voltas com a meia furada de que falávamos no começo? Tinha ido tomar posse de sua ilha. De fato, para debochar-se do fidalgo e do escudeiro, um duque nomeara Sancho "governador" de uma aldeia. Sancho se revela um administrador justo e sagaz, seguindo os conselhos -muito sensatos- que lhe dera Dom Quixote ao partir.
O embuste é desfeito com rapidez; tanto melhor. Sancho e Quixote se reencontram, e, como os fios de cores disparatadas que haveriam de compor a meia do fidalgo, a grande e pura amizade se reata.


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