|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Um labirinto de interpretações críticas
Há quatro séculos os críticos travam um contínuo e aguerrido debate sobre a obra-prima de Cervantes, raramente interrompido por intervalos de concordância
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Em quatro séculos, a crítica do
"Quixote" quase nunca divisou os
mesmos moinhos, tampouco
sentiu o sopro dos mesmos ventos. Da recepção contemporânea
ao autor, que tomava a obra máxima de Cervantes como uma
epopéia burlesca, em diálogo direto e satírico com os romances
de cavalaria, ao fidalgo da triste figura, mitificada encarnação do
Ideal, em combate derrotado,
mas sublime e trágico, contra o
prosaísmo da realidade, há um
contínuo e aguerrido debate, raramente interrompido por intervalos de concordância. Sorte do
leitor que, assim, redescobre a
obra em sua sempre renovada
complexidade (1).
Num ensaio especialmente preparado para a tradução espanhola
de "Mimesis", Erich Auerbach
detém-se na leitura do episódio
em que, papéis trocados, Sancho
tenta convencer o amo a enxergar
numa rude lavradora de passagem, mais carne do que ossos, a
divina Dulcinéia. O contraponto
entre o discurso elevado do cavaleiro e a fala chã da mulher, a despencar de um burrinho, ao lado
da pluralidade de pontos de vista
na apresentação do encontro,
confere à cena algo de jogo e divertimento. O autor aborta, desde
logo, a possibilidade da crise e do
desfecho trágico (um mergulho
na demência completa ou uma
volta indivisa à mediocridade cotidiana) e extrai efeitos cômicos
do contraste entre a mania, que
provoca o riso, mas preserva sua
dignidade, e aspectos do real viva
e luminosamente apanhados.
Ao contrário do que se passa
com os loucos em Shakespeare,
conclui Auerbach, a loucura e os
hiatos de lucidez no Quixote não
se confundem, nem levam a uma
consideração problemática do
mundo. Pois é o corte trágico e
simbólico da dignidade idealista
do cavaleiro manchego que apela
à leitura de Harold Bloom, aproximando-o do núcleo de sentido
recusado pelo autor de "Mimesis", sem mencionar sua evocação
da "licença para falar" livremente,
conferida pela insanidade no universo shakespeareano, mas insistentemente descartada por Auerbach, no caso do autor espanhol.
Sobre o cômico em Cervantes,
tampouco precisamos recuar aos
românticos para relativizá-lo: em
suas "Lições sobre Dom Quixote", no estilo incisivo e direto que
o particulariza, Vladimir Nabokov sustenta que o livro é de uma
crueldade lúgubre, muito distante
da hilaridade humanista comumente entrevista pela crítica. A
leitura que localiza no livro um rico panorama dos tipos humanos,
do dia-a-dia e paisagens espanhóis tira o autor de "Lolita" do
sério: seu interesse está nas personagens, arquetípicas, que transcendem o livro, e nos problemas
de estrutura que o primeiro (anti)
romance coloca e, à sua maneira
inovadora, resolve.
Essa "mescla de poesia e ironia,
de sublime e grotesco, de divindade e monomania", atraiu também
o jovem Lukács, que faz das aventuras solitárias do Quixote, e de
seu "coração maior que o mundo", o paradigma da queda do herói épico num mundo desprovido
de sentido imanente.
Neste pêndulo interpretativo,
uma virada importante está nas
leituras romântico-alemãs. Livro
de cabeceira dos expoentes da literatura e do pensamento estético
teutônicos, passou a ser lido como encarnação simbólica do embate entre a esfera da idealidade e
a matéria bruta e hostil do mundo. Ao lado do Fausto, de Don
Juan e de Robinson Crusoe, Quixote converte-se num dos mitos
fundadores do individualismo
moderno, de que fala Ian Watt.
Em seu "Dom Quixote ou Hamlet", Turguéniev contrasta o entusiasmo, a fé num princípio transcendente e o desprendimento
com que o primeiro se volta para
os outros (oferecendo-se em sacrifício tão inútil quanto trágico)
com a ironia, o ceticismo auto-centrado e auto-comiserativo, a
incapacidade para a ação hamletianos, na qual, no entanto, nos
reconhecemos mais facilmente.
Se a figura do herói da Mancha
desencadeia a pergunta pela especificidade do caráter eslavo no autor de "Pais e Filhos", ecoada, em
chave alemã e moderna, por Thomas Mann, em "Viagem Marítima com Dom Quixote", não poderia ser diferente com os próprios espanhóis. Preocupados em
conferir atualidade crítica à definição da identidade espanhola, as
leituras dos intelectuais da chamada "geração de 1898" -entre
eles, Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset- contribuíram decisivamente para restabelecer os
vínculos entre a obra e sua peculiaridade ibérica.
Entre nós, Santiago Dantas, ministro de Jango, inteligência que
não se restringia ao desatar os nós
da política partidária, publicou
um pequeno livro em que ensaia,
com clareza notável, as razões pelas quais o herói se converte em
arquétipo (2). Sintetizados num
heroísmo fracassado, moralmente exemplar e isento de todo êxito,
"mas que recolhe ao tesouro comum o valor aparentemente perdido das boas ações", a fé, o dom
gratuito de si mesmo e a pureza
são os pilares da leitura cristã de
Santiago Dantas, largamente
apoiada em Ortega: "Herói é o
que quer ser quem é" (3).
Neste labirinto de interpretações, a que se soma uma plêiade
de importantes estudos calcados
na estilística (como os de Leo
Spitzer), o mérito maior continua
de Cervantes: ter fabricado, em
cada leitor futuro, um duplo em
potencial do Pierre Menard, borgeano, sonhando-se, ele próprio,
autor do Quixote.
1. Para as disputas na fortuna crítica do
Quixote, ver Maria Augusta da C. Vieira,
"O Dito pelo não Dito: Paradoxos de
Dom Quixote" (Edusp/Fapesp), boa introdução ao universo de Cervantes.
2. Santiago Dantas, "D. Quixote: Um
Apólogo da Alma Ocidental" (Agir).
3. Ortega y Gasset, "Meditaciones del
Quijote" (Alianza).
Texto Anterior: Na trilha de D. Quixote 7: Indo à forra contra o falso "Quixote" Próximo Texto: Dom Quixote nas artes plásticas: A graça, o arquétipo e a loucura Índice
|