São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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Um labirinto de interpretações críticas

Há quatro séculos os críticos travam um contínuo e aguerrido debate sobre a obra-prima de Cervantes, raramente interrompido por intervalos de concordância

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Em quatro séculos, a crítica do "Quixote" quase nunca divisou os mesmos moinhos, tampouco sentiu o sopro dos mesmos ventos. Da recepção contemporânea ao autor, que tomava a obra máxima de Cervantes como uma epopéia burlesca, em diálogo direto e satírico com os romances de cavalaria, ao fidalgo da triste figura, mitificada encarnação do Ideal, em combate derrotado, mas sublime e trágico, contra o prosaísmo da realidade, há um contínuo e aguerrido debate, raramente interrompido por intervalos de concordância. Sorte do leitor que, assim, redescobre a obra em sua sempre renovada complexidade (1).
Num ensaio especialmente preparado para a tradução espanhola de "Mimesis", Erich Auerbach detém-se na leitura do episódio em que, papéis trocados, Sancho tenta convencer o amo a enxergar numa rude lavradora de passagem, mais carne do que ossos, a divina Dulcinéia. O contraponto entre o discurso elevado do cavaleiro e a fala chã da mulher, a despencar de um burrinho, ao lado da pluralidade de pontos de vista na apresentação do encontro, confere à cena algo de jogo e divertimento. O autor aborta, desde logo, a possibilidade da crise e do desfecho trágico (um mergulho na demência completa ou uma volta indivisa à mediocridade cotidiana) e extrai efeitos cômicos do contraste entre a mania, que provoca o riso, mas preserva sua dignidade, e aspectos do real viva e luminosamente apanhados.
Ao contrário do que se passa com os loucos em Shakespeare, conclui Auerbach, a loucura e os hiatos de lucidez no Quixote não se confundem, nem levam a uma consideração problemática do mundo. Pois é o corte trágico e simbólico da dignidade idealista do cavaleiro manchego que apela à leitura de Harold Bloom, aproximando-o do núcleo de sentido recusado pelo autor de "Mimesis", sem mencionar sua evocação da "licença para falar" livremente, conferida pela insanidade no universo shakespeareano, mas insistentemente descartada por Auerbach, no caso do autor espanhol.
Sobre o cômico em Cervantes, tampouco precisamos recuar aos românticos para relativizá-lo: em suas "Lições sobre Dom Quixote", no estilo incisivo e direto que o particulariza, Vladimir Nabokov sustenta que o livro é de uma crueldade lúgubre, muito distante da hilaridade humanista comumente entrevista pela crítica. A leitura que localiza no livro um rico panorama dos tipos humanos, do dia-a-dia e paisagens espanhóis tira o autor de "Lolita" do sério: seu interesse está nas personagens, arquetípicas, que transcendem o livro, e nos problemas de estrutura que o primeiro (anti) romance coloca e, à sua maneira inovadora, resolve.
Essa "mescla de poesia e ironia, de sublime e grotesco, de divindade e monomania", atraiu também o jovem Lukács, que faz das aventuras solitárias do Quixote, e de seu "coração maior que o mundo", o paradigma da queda do herói épico num mundo desprovido de sentido imanente.
Neste pêndulo interpretativo, uma virada importante está nas leituras romântico-alemãs. Livro de cabeceira dos expoentes da literatura e do pensamento estético teutônicos, passou a ser lido como encarnação simbólica do embate entre a esfera da idealidade e a matéria bruta e hostil do mundo. Ao lado do Fausto, de Don Juan e de Robinson Crusoe, Quixote converte-se num dos mitos fundadores do individualismo moderno, de que fala Ian Watt.
Em seu "Dom Quixote ou Hamlet", Turguéniev contrasta o entusiasmo, a fé num princípio transcendente e o desprendimento com que o primeiro se volta para os outros (oferecendo-se em sacrifício tão inútil quanto trágico) com a ironia, o ceticismo auto-centrado e auto-comiserativo, a incapacidade para a ação hamletianos, na qual, no entanto, nos reconhecemos mais facilmente.
Se a figura do herói da Mancha desencadeia a pergunta pela especificidade do caráter eslavo no autor de "Pais e Filhos", ecoada, em chave alemã e moderna, por Thomas Mann, em "Viagem Marítima com Dom Quixote", não poderia ser diferente com os próprios espanhóis. Preocupados em conferir atualidade crítica à definição da identidade espanhola, as leituras dos intelectuais da chamada "geração de 1898" -entre eles, Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset- contribuíram decisivamente para restabelecer os vínculos entre a obra e sua peculiaridade ibérica.
Entre nós, Santiago Dantas, ministro de Jango, inteligência que não se restringia ao desatar os nós da política partidária, publicou um pequeno livro em que ensaia, com clareza notável, as razões pelas quais o herói se converte em arquétipo (2). Sintetizados num heroísmo fracassado, moralmente exemplar e isento de todo êxito, "mas que recolhe ao tesouro comum o valor aparentemente perdido das boas ações", a fé, o dom gratuito de si mesmo e a pureza são os pilares da leitura cristã de Santiago Dantas, largamente apoiada em Ortega: "Herói é o que quer ser quem é" (3).
Neste labirinto de interpretações, a que se soma uma plêiade de importantes estudos calcados na estilística (como os de Leo Spitzer), o mérito maior continua de Cervantes: ter fabricado, em cada leitor futuro, um duplo em potencial do Pierre Menard, borgeano, sonhando-se, ele próprio, autor do Quixote.


1. Para as disputas na fortuna crítica do Quixote, ver Maria Augusta da C. Vieira, "O Dito pelo não Dito: Paradoxos de Dom Quixote" (Edusp/Fapesp), boa introdução ao universo de Cervantes.
2. Santiago Dantas, "D. Quixote: Um Apólogo da Alma Ocidental" (Agir).
3. Ortega y Gasset, "Meditaciones del Quijote" (Alianza).


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