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Com Dom Quixote, morre sonho espanhol
Dom Quixote acredita ter como missão resgatar um passado de glória divina, como a dos séculos 15 e 16, quando parecia não haver limite
para a expansão da Espanha
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
O herói morre no final, mas não
é isso o que torna "Dom Quixote"
uma obra trágica: nela, Cervantes
descreve como o sonho espanhol
de grandeza imperial, o mais promissor da Era Moderna, se desfez
em meio a tormenta econômica,
cegueira política, loucura religiosa e caos social.
A crônica desse desastre é narrada por um certo Cide Hamete
Benengeli, e aqui começam as ironias que Cervantes usa para retratar a Espanha dos paradoxos nos
séculos 16 e 17. Benengeli é um
historiador árabe, como árabes
eram os que, ao lado dos judeus,
haviam sido expulsos pelo absolutismo espanhol -em 1609, entre o primeiro e o segundo livro
da obra, a Espanha mandou embora o que restava dos muçulmanos convertidos à força ao cristianismo e responsabilizados por
malfeitorias em geral. Para os ultracatólicos Felipe 2º (1556-1598)
e Felipe 3º (1598-1621), os reis do
tempo de Cervantes, a "limpeza
étnica" da península coincidia
com um projeto de purificação religiosa longamente acalentado.
Benengeli aproveita a chance da
vingança histórica: o relato das
aventuras do Quixote é uma refinadíssima esculhambação, cuja
principal marca é o desvario do
herói. Ele cria uma identidade, inventa uma linhagem à qual pertencer, elabora um amor e uma
amada e, não contente em viver
sua loucura, exige que os outros a
vivam também. Lá pelas tantas,
ele espera que certos mercadores
confessem "que não há no mundo donzela mais formosa que a
imperatriz da Mancha, a sem-par
Dulcinéia del Toboso". Quando
eles respondem que precisam conhecê-la primeiro para dar alguma opinião, Dom Quixote fica furioso: "Se a vísseis, que avaria fora
confessardes evidência tão notória? O que importa é que, sem a
ver, o acrediteis, confesseis, afirmeis, jureis e defendais; quando
não, entrareis comigo em batalha". Dom Quixote vive assim deliberadamente fora do mundo
real e não aceita que a história o
desminta, assim como a Espanha
cervantina.
O herói é onde sobrevivem as
estruturas anacrônicas de seu
país. Ao prometer o governo de
uma ilha a Sancho Pança para dele obter a lealdade de escudeiro, o
cavaleiro recorre à tradição do
feudo; ao dizer que dispõe de um
bálsamo que cura todos os males,
Dom Quixote remete a uma das
obsessões da ciência medieval; ao
afirmar que se considera o braço
pelo qual se executa no mundo a
justiça de Deus, ele se inclui entre
os cruzados e os imperadores católicos, cuja missão era reafirmar
o caráter religioso do poder.
Desse modo, Dom Quixote
acredita ter como missão resgatar
um passado de glória divina, como a dos séculos 15 e 16, quando
parecia não haver limite para a expansão da Espanha.
Mas o fluxo de riquezas extraídas das possessões ultramarinas,
ao mesmo tempo em que transformou o país num gigante sem
igual, lançado-o em caríssimas
guerras religiosas, foi um fator determinante de seu subseqüente
colapso econômico.
A abundância de prata catapultou a inflação, desestimulou a
produção e acelerou as importações. Com isso, os recursos que
antes circulavam à vontade, por
parecerem inesgotáveis, foram
canalizados para pagar aquilo que
se comprava do exterior, empobrecendo um Estado que, além
disso, existia para sustentar uma
crescente rede parasitária.
Assim, a Espanha tornava-se
"as Índias da Europa": os europeus serviram-se da riqueza extraída da América pelos espanhóis para encorpar as forças
produtivas de uma burguesia
com pretensões mundiais, enquanto a Espanha, ela própria,
entrava no século 17, o século do
Quixote, em meio à destruição do
sistema feudal, que tão bem simbolizava sua aristocracia, sem que
nada houvesse para substituí-lo.
O Quixote resume o desastre
por meio da nostalgia de um lugar
ainda não infectado pela riqueza
vil: "Sancho amigo", ele diz, "hás
de saber que eu nasci, por determinação do céu, nesta idade de
ferro, para nela ressuscitar a de
ouro". Naquela época idílica, diz
ele, "se ignoravam as palavras teu
e meu" e "tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia".
Agora, porém, triunfa a "indústria ociosa", que estimula as mulheres da corte a andar "tão garridas", enquanto "os cavaleiros hoje na moda antes se molestam
com os damascos, brocados e outras ricas telas de que se vestem do
que com a malha com que os armam", isto é, os nobres preferem
ornar-se a guerrear. E arremata:
"Triunfam agora, por pecado das
gentes, a preguiça, a ociosidade, a
gula e os regalos".
A preocupação do Quixote com
a parcimônia é a resposta de Cervantes ao fausto irresponsável da
aristocracia espanhola. A inflação
não deixava alternativa senão
gastar tudo o mais rapidamente
possível, e então, em festas intermináveis, comia-se até o limite
das possibilidades humanas. Não
é por outro motivo que o "governador" Sancho tem um médico à
mesa para lhe dizer o quanto deve
comer. Para a maioria miserável
dos espanhóis, porém, isso era
desnecessário. A rica Espanha se
empanturra e morre de fome.
É essa espantosa contradição
que empurra os espanhóis para a
dimensão do onírico. O Quixote
torna-se "espelho da nação espanhola", como ironiza Sansão Carrasco, bacharel que luta para fazê-lo acordar. Confrontado com a
realidade, o Cavaleiro da Triste
Figura atribui seus enganos a
uma "caterva de encantadores"
-que, em linguagem cervantina,
são os escritores e poetas que infestam uma Espanha com tempo
de sobra para a fantasia literária.
Por outro lado, há quem defenda os sonhos quixotescos, como
Dom Antonio, um aristocrata
que cria farsas para impedir que a
realidade toque Dom Quixote. E
ele diz ao estraga-prazeres Sansão
Carrasco: "Ó senhor, Deus vos
perdoe o agravo que fizestes a todo mundo, querendo pôr em seu
juízo o doido mais engraçado que
existe. Não vedes, senhor, que
não pode chegar o proveito do siso de Dom Quixote ao gosto que
dão seus desvarios?". É um elogio
à bondade do maluco da Mancha.
Mas Dom Antonio perde a parada. Dom Quixote afinal torna à
razão e vitupera contra o saudosismo que por tanto tempo sustentou sua loucura. Tarde demais
-a sobriedade vem quando ele
está às portas da morte. O diagnóstico quem dá é o fiel companheiro, Sancho Pança: "Melancolia". É disso que morre essa formidável Espanha.
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