São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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Com Dom Quixote, morre sonho espanhol

Dom Quixote acredita ter como missão resgatar um passado de glória divina, como a dos séculos 15 e 16, quando parecia não haver limite para a expansão da Espanha

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

O herói morre no final, mas não é isso o que torna "Dom Quixote" uma obra trágica: nela, Cervantes descreve como o sonho espanhol de grandeza imperial, o mais promissor da Era Moderna, se desfez em meio a tormenta econômica, cegueira política, loucura religiosa e caos social.
A crônica desse desastre é narrada por um certo Cide Hamete Benengeli, e aqui começam as ironias que Cervantes usa para retratar a Espanha dos paradoxos nos séculos 16 e 17. Benengeli é um historiador árabe, como árabes eram os que, ao lado dos judeus, haviam sido expulsos pelo absolutismo espanhol -em 1609, entre o primeiro e o segundo livro da obra, a Espanha mandou embora o que restava dos muçulmanos convertidos à força ao cristianismo e responsabilizados por malfeitorias em geral. Para os ultracatólicos Felipe 2º (1556-1598) e Felipe 3º (1598-1621), os reis do tempo de Cervantes, a "limpeza étnica" da península coincidia com um projeto de purificação religiosa longamente acalentado.
Benengeli aproveita a chance da vingança histórica: o relato das aventuras do Quixote é uma refinadíssima esculhambação, cuja principal marca é o desvario do herói. Ele cria uma identidade, inventa uma linhagem à qual pertencer, elabora um amor e uma amada e, não contente em viver sua loucura, exige que os outros a vivam também. Lá pelas tantas, ele espera que certos mercadores confessem "que não há no mundo donzela mais formosa que a imperatriz da Mancha, a sem-par Dulcinéia del Toboso". Quando eles respondem que precisam conhecê-la primeiro para dar alguma opinião, Dom Quixote fica furioso: "Se a vísseis, que avaria fora confessardes evidência tão notória? O que importa é que, sem a ver, o acrediteis, confesseis, afirmeis, jureis e defendais; quando não, entrareis comigo em batalha". Dom Quixote vive assim deliberadamente fora do mundo real e não aceita que a história o desminta, assim como a Espanha cervantina.
O herói é onde sobrevivem as estruturas anacrônicas de seu país. Ao prometer o governo de uma ilha a Sancho Pança para dele obter a lealdade de escudeiro, o cavaleiro recorre à tradição do feudo; ao dizer que dispõe de um bálsamo que cura todos os males, Dom Quixote remete a uma das obsessões da ciência medieval; ao afirmar que se considera o braço pelo qual se executa no mundo a justiça de Deus, ele se inclui entre os cruzados e os imperadores católicos, cuja missão era reafirmar o caráter religioso do poder.
Desse modo, Dom Quixote acredita ter como missão resgatar um passado de glória divina, como a dos séculos 15 e 16, quando parecia não haver limite para a expansão da Espanha.
Mas o fluxo de riquezas extraídas das possessões ultramarinas, ao mesmo tempo em que transformou o país num gigante sem igual, lançado-o em caríssimas guerras religiosas, foi um fator determinante de seu subseqüente colapso econômico.
A abundância de prata catapultou a inflação, desestimulou a produção e acelerou as importações. Com isso, os recursos que antes circulavam à vontade, por parecerem inesgotáveis, foram canalizados para pagar aquilo que se comprava do exterior, empobrecendo um Estado que, além disso, existia para sustentar uma crescente rede parasitária.
Assim, a Espanha tornava-se "as Índias da Europa": os europeus serviram-se da riqueza extraída da América pelos espanhóis para encorpar as forças produtivas de uma burguesia com pretensões mundiais, enquanto a Espanha, ela própria, entrava no século 17, o século do Quixote, em meio à destruição do sistema feudal, que tão bem simbolizava sua aristocracia, sem que nada houvesse para substituí-lo.
O Quixote resume o desastre por meio da nostalgia de um lugar ainda não infectado pela riqueza vil: "Sancho amigo", ele diz, "hás de saber que eu nasci, por determinação do céu, nesta idade de ferro, para nela ressuscitar a de ouro". Naquela época idílica, diz ele, "se ignoravam as palavras teu e meu" e "tudo então era paz, tudo amizade, tudo concórdia". Agora, porém, triunfa a "indústria ociosa", que estimula as mulheres da corte a andar "tão garridas", enquanto "os cavaleiros hoje na moda antes se molestam com os damascos, brocados e outras ricas telas de que se vestem do que com a malha com que os armam", isto é, os nobres preferem ornar-se a guerrear. E arremata: "Triunfam agora, por pecado das gentes, a preguiça, a ociosidade, a gula e os regalos".
A preocupação do Quixote com a parcimônia é a resposta de Cervantes ao fausto irresponsável da aristocracia espanhola. A inflação não deixava alternativa senão gastar tudo o mais rapidamente possível, e então, em festas intermináveis, comia-se até o limite das possibilidades humanas. Não é por outro motivo que o "governador" Sancho tem um médico à mesa para lhe dizer o quanto deve comer. Para a maioria miserável dos espanhóis, porém, isso era desnecessário. A rica Espanha se empanturra e morre de fome.
É essa espantosa contradição que empurra os espanhóis para a dimensão do onírico. O Quixote torna-se "espelho da nação espanhola", como ironiza Sansão Carrasco, bacharel que luta para fazê-lo acordar. Confrontado com a realidade, o Cavaleiro da Triste Figura atribui seus enganos a uma "caterva de encantadores" -que, em linguagem cervantina, são os escritores e poetas que infestam uma Espanha com tempo de sobra para a fantasia literária.
Por outro lado, há quem defenda os sonhos quixotescos, como Dom Antonio, um aristocrata que cria farsas para impedir que a realidade toque Dom Quixote. E ele diz ao estraga-prazeres Sansão Carrasco: "Ó senhor, Deus vos perdoe o agravo que fizestes a todo mundo, querendo pôr em seu juízo o doido mais engraçado que existe. Não vedes, senhor, que não pode chegar o proveito do siso de Dom Quixote ao gosto que dão seus desvarios?". É um elogio à bondade do maluco da Mancha.
Mas Dom Antonio perde a parada. Dom Quixote afinal torna à razão e vitupera contra o saudosismo que por tanto tempo sustentou sua loucura. Tarde demais -a sobriedade vem quando ele está às portas da morte. O diagnóstico quem dá é o fiel companheiro, Sancho Pança: "Melancolia". É disso que morre essa formidável Espanha.


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