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"Todos nós nascemos de Cervantes"
DA REDAÇÃO
Para o escritor argentino Tomás Eloy Martínez, autor de
"Santa Evita" e "O Romance de
Perón", os latino-americanos tiraram da obra do espanhol a
inspiração para o realismo mágico e a idéia de literatura como
felicidade. "Todos nascemos de
Cervantes", diz ele.
Diretor do programa de estudos latino-americanos da Rutgers University, de Nova Jersey,
Martínez falou à Folha, por telefone.
(SYLVIA COLOMBO)
Folha - Como Cervantes influencia a literatura latino-americana?
Tomás Eloy Martínez - Todos
nascemos de Cervantes. Assim
como Cervantes nasce das novelas de cavalaria, os latino-americanos nascemos de Cervantes e
das crônicas das Índias. O realismo mágico, o maravilhoso, já
estão ali. A mulher como figura
emblemática, sublime e inalcançável, e também
a mulher como
encarnação do
pecado, a prostituta. Os dois extremos da visão
da mulher na literatura masculina vêm de Cervantes. Também nele está
um elemento
importante para
a literatura latino-americana,
que é a escritura
como felicidade.
Isso se encontra
até em autores
infelizes ou desgraçados, como
Euclides da Cunha, ou em outros, como Rubem Fonseca,
Nélida Piñon ou
Chico Buarque.
Folha - Cervantes contribuiu
para criar a sensibilidade moderna?
Martínez - Por
um lado, Cervantes foi um
símbolo da Contra-reforma que
estava no apogeu na Espanha.
Por outro, "Dom Quixote" respira um ar de liberdade que é
moderno. Quase não há experiência, nem verbal nem estrutural, do romance moderno que
não esteja incluída em "Dom
Quixote". Todos as grandes descobertas do romance estão ali.
A crítica norte-americana se
surpreendeu com o fato de que,
em "A Noite do Oráculo", de
Paul Auster, há uma história que
se interrompe e nunca mais retoma. Isso foi visto como uma
descoberta experimental. Mas é
algo que já está em "Dom Quixote", no episódio do encontro
do cavaleiro com o biscainho.
Folha - Mas esse episódio depois volta a ser relatado, na versão de um outro narrador.
Martínez - Sim, mas nunca se
sabe exatamente o que aconteceu depois que o biscainho alçou a espada. A partir daí, é tudo
incerto. A história fica interrompida. Outra característica moderna do livro é o fato de se tratar de um romance dentro de
um romance, e de contar com a
presença do autor dentro do romance. E, ainda, temos os personagens discutindo entre si o
que haviam feito antes. Tudo isso é pura inovação, revestido de
uma enorme simplicidade. A
narração é feita com naturalidade, como se essas experimentações fossem parte do relato.
Uma das riquezas do romance é
justamente a de que tudo o que é
novo passa inadvertido.
Folha - Por que Cervantes, de
início, não foi reconhecido?
Martínez - Cervantes foi menosprezado em seu tempo. A figura da corte, o escritor por excelência, naquele momento, era
Lope de Vega (1562-1635). Acho
que a explicação está na trajetória turbulenta de sua vida.
Folha - Não teria relação com a
divisão entre arte popular e erudita?
Martinez - Cervantes era um
escritor popular da mesma maneira que o brasileiro Lima Barreto (1881-1922) pode ser chamado de popular em contraponto ao contemporâneo Machado de Assis (1839-1908).
Nesse sentido, Cervantes foi
popular, e tido como escritor
menor. Não integrava a "grande
arte" que a Espanha via em Lope
de Vega, Calderón ou Gôngora.
Perto deles, "Dom Quixote" era
entretenimento. Uma obra que
excitava a fantasia, mas de uma
maneira simples, por meio dos
sentidos dos camponeses. Há
uma confusão entre popularidade e pequenez. Os críticos ou os
intelectuais costumam supor
que o que é popular é pequeno,
carece de valor.
Folha - E esse é um debate bastante atual.
Martinez - Sim, é a discussão de
que sempre padeceu a literatura.
Acredito que, a partir de "Dom
Quixote", não há grande obra da
literatura que não tenha sido popular. "Ulysses", de Joyce, é uma
obra complicadíssima mas que
encontrou a popularidade. Machado, que é complexo, também
foi um escritor popular.
Como toda regra, essa deve ter
exceções. Mas Cervantes inaugura o momento em que uma
grande obra é popular. Logra a
aceitação de uma grande maioria. Assim como Shakespeare.
Folha - Pode-se compará-lo ao
contemporâneo Shakespeare?
Martinez - Sim, pela amplitude
e pela força. A literatura tem, e
isso o vê muito bem Harold
Bloom, vozes menores, pequenas, que nunca podem alcançar
a amplitude da grandeza literária. São importantes, mas trabalham em um tom menor. E há
obras de uma força enorme, como as de Shakespeare, Homero,
Cervantes, Dante, Borges, e que
alcançam um ímpeto sinfônico
de uma enorme amplitude. Por
meio desses autores podemos
ver os destinos individuais interatuando com os destinos coletivos. As paixões se movendo no
compasso da História.
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