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DEPOIMENTO
O adeus do editor
Amigo pessoal do autor português, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, relata histórias dele no Brasil e conta que o viu morto pelo Skype
A EFUSÃO DE BEIJOS E ABRAÇOS FIZERAM-NO EXCLAMAR, "LUIZ, ESTA GENTE QUER ME MATAR DE AMOR". ESSE AMOR DOS BRASILEIROS POR SARAMAGO SÓ CRESCEU
COMPREI COM PILAR O PRIMEIRO COMPUTADOR DE JOSÉ. ANTES DISSO, ELE DATILOGRAFAVA TRÊS VEZES CADA LIVRO PARA ENTREGÁ-LO LIMPO AOS EDITORES
LUIZ SCHWARCZ
Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando
a notícia apareceu na internet, liguei pelo Skype para
Pilar, que sem que eu pedisse
me mostrou José deitado na
cama, morto. Tenho falado
com Pilar quase todos os
dias. Sabia que não havia
chance de recuperação, o
destino de José já estava traçado, os médicos não acreditavam mais na possibilidade
de um novo milagre, como o
do ano passado, quando venceu, contra todas as expectativas, os problemas pulmonares que o acometiam.
Posso dizer que José Saramago era um grande amigo
meu e da minha família.
Quando vinha ao Brasil
hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia,
minha filha. Detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa
em Lanzarote logo que se
mudou com Pilar, abandonando Portugal.
Assisti emocionado à cerimônia do Nobel em Estocolmo - pouco antes, no hotel,
aprovamos, Lili e eu, o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando
ele recebeu a notícia do prêmio; celebramos juntos.
A obra de Saramago veio
para a Companhia das Letras
por acaso. No fim da Feira de
Frankfurt de 1987, ao me despedir de Ray-Gude Mertin,
uma amiga pessoal e agente
literária de muitos autores
brasileiros, comentei que José era dos meus autores favoritos. Conversa à toa, de fim
de feira. Não fazia ideia de
que ela representava o escritor português, junto com a
editora Caminho, e que estava para mudar Saramago de
editora no Brasil.
Atrasei minha partida e
voltei, com a bagagem no
porta-malas do táxi, para falar com Zeferino Coelho sobre a Companhia das Letras.
Foi tudo muito rápido,
"Jangada de Pedra" foi o primeiro livro, lançado em abril
de 1988 com a presença do
autor no Brasil, junto com Pilar, jornalista que conhecera
em 1986 e que mudou tanto a
sua vida. A empatia foi imediata, apesar da minha gafe
inicial -perguntei-lhe em
plena praia de Copacabana
se era verdade que, em Portugal, "Psicose", de Hitchcock,
fora intitulado "O Filho que
Era Mãe", e "Vertigo", "A
Mulher que Morreu Duas Vezes".
Em seguida fui a Lisboa. Já
éramos bem amigos, ele queria me mostrar o novo livro
que escrevia. Em sua casa, na
rua dos Ferreiros à Estrela,
José leu trechos de "A História do Cerco de Lisboa", e me
levou para jantar no seu restaurante favorito, o Farta
Brutos. Pilar foi minha guia
de Lisboa na ocasião, reservou o hotel num velho convento na rua das Janelas Verdes, e mostrou os locais que
aparecem no meu livro favorito de Saramago, "O Ano da
Morte de Ricardo Reis".
Comprei com Pilar o primeiro computador de José.
Antes disso, ele datilografava três vezes cada livro para
entregá-lo completamente
limpo a seus editores.
No Brasil, o lançamento de
"Jangada de Pedra" foi uma
festa interminável. Filas
enormes na livraria Timbre e
a efusão de beijos e abraços
no escritor fizeram-no exclamar, "Luiz, esta gente quer
me matar de amor". Daí para
frente, esse amor dos brasileiros por José Saramago só
cresceu, suas visitas se tornaram mais frequentes, e vários
dos últimos livros lhe ocorreram em viagens pelo país,
nas quais estávamos juntos.
Lembro-me ao menos de
três ocasiões em que isso
aconteceu. A mais recente
delas foi em sua última estada no Brasil, quando da publicação de "A Viagem do
Elefante", livro que José resolveu lançar mundialmente
aqui, em novembro de 2008,
como presente ao carinho e
aos amigos brasileiros.
Ele já estava muito fraco, e
a viagem era uma ousadia.
Ao chegar em minha casa,
numa das nossas primeiras
conversas, me disse que não
escreveria mais, estava se
sentindo velho e cansado.
Depois do evento de lançamento no Sesc Pinheiros,
vencida uma fila enorme de
autógrafos -Saramago nunca recusava autografar, nem
mesmo doente-, fomos ao
Rio, para a continuidade dos
eventos. Ao pousarmos na cidade, enquanto eu recolhia
as bagagens, José anunciou,
para Lili, Pilar e eu, que decidira voltar a um velho projeto
e que no voo achara a solução que faltava para "Caim",
que virou seu último livro.
Eu poderia contar outras
tantas histórias aqui. Poderia
até falar das nossas discordâncias, de uma discussão
amigável que tivemos, sentados no alto do Bauzinho, em
São Bento do Sapucaí, olhando para o horizonte da Serra
da Mantiqueira, que nós dois
adorávamos. Mas o espaço é
curto: um blog, mídia que Saramago curtiu antes que eu.
Em outro momento, quem
sabe. Agora só quero me despedir mais uma vez de José.
Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas
saudade não tem remédio,
não é, José?
LUIZ SCHWARCZ é editor da Companhia
das Letras, que publica livros de José
Saramago no Brasil
Este texto foi publicado no blog da editora
(www.blogdacia.com.br)
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