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Desvio para o concreto
NA DÉCADA DE 50, A CRIAÇÃO ARTÍSTICA SÓ SE COMPARA AO MODERNISMO DOS ANOS 20
DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A memória é a primeira-ministra da
atividade crítica
seletiva do Interpretante peirceano, a quem nem
sempre obedece, excetuando o
estranho processo em que ele
próprio a ela se acumplicia, mirando um prazer que ele tem por
verdade e uma verdade que ele
tem por prazer. Mas os juízos que
daí, conúbio, nascem, estão sujeitos ao crivo do julgamento externo, o que beneficia, se não for ele
próprio, o exercício da liberdade.
Porque haveria eu de reter na
retina aquele quadro enorme, um
mapa-mundi de manchas e escorrimentos, "Number One", de
Jackson Pollock, suspenso, como
um mural, logo à entrada do Trianon (onde hoje está o Masp, mas
só o subsolo), lugar da 1ª Bienal de
São Paulo, 1951, eu ainda estudante da chamada Academia do Largo de São Francisco e repórter de
uma estranha agência de notícias,
um antro da Agência Nacional getulista, acasalada com o governo
paulista de então.
Em termos jornalísticos, estava
eu em fase de pós-foquice, tendo
estreado em livro, poeticamente,
no ano anterior, jovem osasquence abrindo caminho na prazerosa
capital paulista do pós-guerra.
Nessa condição, pude entrevistar,
individual ou coletivamente,
Khatchaturian, Beniamini Gigli,
Tarsila e Ada Rogato, a aviadora
solitária brasileira que realizou
um "reide" de mais de 50 mil km
por 28 países, em 326 horas de
vôo.
A grande aventura ítalo-paulista desse período só se compara
aos anos de ouro do modernismo
da década de 20. Intelectualmente
ligado, de uns 20 anos para cá, na
visão histórica do Les Annales (os
grandes Braudel e Duby foram
professores na USP), visão obscurecida, para não dizer borrada,
pela pororoca semimarxista e
unistalinista que invadiu os estudos sócio-históricos e econômicos do país, vejo aquele período
como um grande momento do
processamento do republicanismo no Brasil.
A primeira idéia republicana
moderna foi civil e não militar e
maturou após a vitória ianque na
Guerra da Secessão, a Guerra do
Paraguai, a queda de Luís Napoleão 2º e o fuzilamento de Maximiliano, no México. Ela não era
simplesmente antiescravista, mas
a favor do capitalismo privado e
da imigração. Enquanto Pedro 2º
levava Mauá à falência, o boom
do café impulsionava o capitalismo paulista.
ESTADO NOVO
O republicanismo estatal, ancorado no Rio de Janeiro e em Augusto Comte, foi levado a cabo
por militares, não tinha bases
produtivas, industriais ou agrícolas, e sobrevivia da operação de
papéis e títulos. Esta situação, por
inépcia e tibieza do novel capitalismo paulista, após o crash da
Bolsa de Nova York em 1929, produziu o Estado Novo e Getúlio
Vargas, nosso Pedro 3º, após a
derrota de São Paulo, em 1932.
Com a vitória aliada, 1945, cai
Vargas e sobe Perón, que acaba
com a civilizada Argentina da carne, do trigo, do capital inglês e da
cultura francesa e de uma, digamos selecionada, imigração italiana. O pavor do comunismo foi algo assim como o terror ante uma
peste vermelha ideológica, evento
talvez único na história ou, quem
sabe, comparável à ameaça dos
bárbaros para o mundo clássico
greco-latino.
Muito mais seletiva foi a invasão
cultural italiana de São Paulo,
pois, na América Latina, depois
de Buenos Aires, a capital italiana
é São Paulo. O Estado de São Paulo começou a transformar-se na
Argentina do Brasil, com um novo coeficiente, o ianque.
A conjunção de fatores foi notavelmente favorável. São historicamente significativas certas coincidências de datas e isto nada tem a
ver com numerologia, mas com o
processo do pensamento sobre o
evolver histórico.
Em 1951, data da inauguração
da 1ª Bienal de São Paulo, morria
William Randolph Hearst, o modelo da sátira do "Cidadão Kane".
Mas o seu herdeiro e avatar já estava aqui, Assis Chateaubriand,
cuja intuição, em que pesem os
pseudofatores anedóticos que
tanto agradam aos jornalistas-historiógrafos, que nada entendem de métodos científicos de
pesquisa, escolheu São Paulo como quartel-general de suas operações.
O pró-fascista Matarazzo, o ex-fascista Bardi, o misterioso Franco Zampari e outros, montaram,
em pouquíssimos anos, a mais
impressionante estrutura artística
da América Latina: Museu de Arte
de São Paulo (Masp): Chateaubriand/Bardi; Museu de Arte Moderna (MAM): Ciccillo Matarazzo; Teatro Brasileiro de Comédia
(TBC); e Companhia Cinematográfica Vera Cruz: Franco Zampari.
A imprensa teve atuação decisiva: a Folha (então "Folha da Manhã", estava em fase estacionária); "O Estado de São Paulo", "O
Diário de São Paulo" e jornais de
curta duração, como "O Tempo",
e o "Jornal de São Paulo" ("A Gazeta", de grande penetração na
pequena burguesia, era antimoderno e reacionário, e "O Correio
Paulistano", outrora grande órgão do PRP - Partido Republicano
Paulista, principal responsável
pelo apodrecimento da idéia republicana em São Paulo, e que
apoiara a Semana de Arte Moderna, já estava na rampa do descrédito decadente).
O Rio de Janeiro, embora fiel à
sua tradição de assentar-se em finanças estatais, respondeu de
modo brilhante, com o Museu de
Arte Moderna, com o "Jornal do
Brasil" e com um teatro surpreendente, que pegou os paulistas de
surpresa, esses mesmos que haviam desprezado o teatro de Oswald de Andrade e que agora
aplaudiam Nelson Rodrigues,
surgido mais de uma década depois.
O discurso inaugural de Ciccillo
Matarazzo, ao abrir a 1ª Bienal de
São Paulo, foi um estranho evento
de derrisão e desprezo: a inteligentsia paulista, drincando no salão, rindo e conversando, sequer o
ouviu. Ele se vingaria, longa e metodicamente. Para começar, fez
com que se desse o primeiro prêmio de pintura nacional a um
quadro medíocre intitulado "Limões", de um quase desconhecido ilustrador de folhinhas, chamado Danilo di Prete.
INTEGRIDADE
Na 2ª Bienal, houve um lance de
registro obrigatório. O júri de premiação era um corpo mesclado
de brasileiros e estrangeiros. Estes, na primeira mostra, preocuparam-se com a premiação internacional, mal tomando conhecimento da representação nacional:
os brasileiros que repartissem a
seu gosto a sua parte do bolo. Na
2ª Bienal, em assim sendo, o grande prêmio já estava prometido
para Di Cavalcanti. Só que a banda brasileira não contava com a
integridade ética de Herbert
Read, grande nome da crítica artística e literária da Inglaterra
(além de poeta), que teria dito:
"Se há alguém aqui que deva ser
premiado, este se chama Alfredo
Volpi". Pasmo nacional. Read se
dispunha a ir aos jornais para denunciar a tramóia. No fim, concedeu uma premiação ex-aequo,
mas fez questão de que o nome de
Alfredo Volpi viesse em primeiro
lugar.
Foi a partir daí que o grupo de
artistas concretos de São Paulo
(ao qual eu me integrara), sob a
batuta do ítalo-brasileiro Waldemar Cordeiro, se tomou de apaixonada admiração por Volpi, que
eu qualifiquei e qualifico, temerária e polemicamente, como "o
primeiro e último grande pintor
brasileiro" e que os ignorantes, à
moda americana, chamam de "o
pintor das bandeirinhas".
Tais incidentes, no entanto,
mais aclaram do que obscurecem
o formidável ímpeto organizacional internacional da Bienal de São
Paulo, principal responsável por
haver elevado e mantido em alto
nível a arte visual e plástica brasileira, diferentemente do que vem
ocorrendo com todos os demais
setores artísticos, da literatura à
arquitetura, passando por cinema, teatro, música, videoarte, etc.
E foi naquele clima e chão que
nasceram Brasília, Pelé, a bossa
nova e, após o biênio de minha
odisséia européia (1954-56), a
poesia concreta.
Décio Pignatari é poeta, escritor, ensaísta e tradutor. É autor de, entre outros,
"Poesia, Pois É, Poesia" (Ed. Brasiliense) e
"Panteros" (Ed. 34).
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