São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desvio para o concreto

NA DÉCADA DE 50, A CRIAÇÃO ARTÍSTICA SÓ SE COMPARA AO MODERNISMO DOS ANOS 20

DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A memória é a primeira-ministra da atividade crítica seletiva do Interpretante peirceano, a quem nem sempre obedece, excetuando o estranho processo em que ele próprio a ela se acumplicia, mirando um prazer que ele tem por verdade e uma verdade que ele tem por prazer. Mas os juízos que daí, conúbio, nascem, estão sujeitos ao crivo do julgamento externo, o que beneficia, se não for ele próprio, o exercício da liberdade.
Porque haveria eu de reter na retina aquele quadro enorme, um mapa-mundi de manchas e escorrimentos, "Number One", de Jackson Pollock, suspenso, como um mural, logo à entrada do Trianon (onde hoje está o Masp, mas só o subsolo), lugar da 1ª Bienal de São Paulo, 1951, eu ainda estudante da chamada Academia do Largo de São Francisco e repórter de uma estranha agência de notícias, um antro da Agência Nacional getulista, acasalada com o governo paulista de então.
Em termos jornalísticos, estava eu em fase de pós-foquice, tendo estreado em livro, poeticamente, no ano anterior, jovem osasquence abrindo caminho na prazerosa capital paulista do pós-guerra. Nessa condição, pude entrevistar, individual ou coletivamente, Khatchaturian, Beniamini Gigli, Tarsila e Ada Rogato, a aviadora solitária brasileira que realizou um "reide" de mais de 50 mil km por 28 países, em 326 horas de vôo.
A grande aventura ítalo-paulista desse período só se compara aos anos de ouro do modernismo da década de 20. Intelectualmente ligado, de uns 20 anos para cá, na visão histórica do Les Annales (os grandes Braudel e Duby foram professores na USP), visão obscurecida, para não dizer borrada, pela pororoca semimarxista e unistalinista que invadiu os estudos sócio-históricos e econômicos do país, vejo aquele período como um grande momento do processamento do republicanismo no Brasil.
A primeira idéia republicana moderna foi civil e não militar e maturou após a vitória ianque na Guerra da Secessão, a Guerra do Paraguai, a queda de Luís Napoleão 2º e o fuzilamento de Maximiliano, no México. Ela não era simplesmente antiescravista, mas a favor do capitalismo privado e da imigração. Enquanto Pedro 2º levava Mauá à falência, o boom do café impulsionava o capitalismo paulista.

ESTADO NOVO
O republicanismo estatal, ancorado no Rio de Janeiro e em Augusto Comte, foi levado a cabo por militares, não tinha bases produtivas, industriais ou agrícolas, e sobrevivia da operação de papéis e títulos. Esta situação, por inépcia e tibieza do novel capitalismo paulista, após o crash da Bolsa de Nova York em 1929, produziu o Estado Novo e Getúlio Vargas, nosso Pedro 3º, após a derrota de São Paulo, em 1932.
Com a vitória aliada, 1945, cai Vargas e sobe Perón, que acaba com a civilizada Argentina da carne, do trigo, do capital inglês e da cultura francesa e de uma, digamos selecionada, imigração italiana. O pavor do comunismo foi algo assim como o terror ante uma peste vermelha ideológica, evento talvez único na história ou, quem sabe, comparável à ameaça dos bárbaros para o mundo clássico greco-latino.
Muito mais seletiva foi a invasão cultural italiana de São Paulo, pois, na América Latina, depois de Buenos Aires, a capital italiana é São Paulo. O Estado de São Paulo começou a transformar-se na Argentina do Brasil, com um novo coeficiente, o ianque.
A conjunção de fatores foi notavelmente favorável. São historicamente significativas certas coincidências de datas e isto nada tem a ver com numerologia, mas com o processo do pensamento sobre o evolver histórico.
Em 1951, data da inauguração da 1ª Bienal de São Paulo, morria William Randolph Hearst, o modelo da sátira do "Cidadão Kane". Mas o seu herdeiro e avatar já estava aqui, Assis Chateaubriand, cuja intuição, em que pesem os pseudofatores anedóticos que tanto agradam aos jornalistas-historiógrafos, que nada entendem de métodos científicos de pesquisa, escolheu São Paulo como quartel-general de suas operações.
O pró-fascista Matarazzo, o ex-fascista Bardi, o misterioso Franco Zampari e outros, montaram, em pouquíssimos anos, a mais impressionante estrutura artística da América Latina: Museu de Arte de São Paulo (Masp): Chateaubriand/Bardi; Museu de Arte Moderna (MAM): Ciccillo Matarazzo; Teatro Brasileiro de Comédia (TBC); e Companhia Cinematográfica Vera Cruz: Franco Zampari.
A imprensa teve atuação decisiva: a Folha (então "Folha da Manhã", estava em fase estacionária); "O Estado de São Paulo", "O Diário de São Paulo" e jornais de curta duração, como "O Tempo", e o "Jornal de São Paulo" ("A Gazeta", de grande penetração na pequena burguesia, era antimoderno e reacionário, e "O Correio Paulistano", outrora grande órgão do PRP - Partido Republicano Paulista, principal responsável pelo apodrecimento da idéia republicana em São Paulo, e que apoiara a Semana de Arte Moderna, já estava na rampa do descrédito decadente).
O Rio de Janeiro, embora fiel à sua tradição de assentar-se em finanças estatais, respondeu de modo brilhante, com o Museu de Arte Moderna, com o "Jornal do Brasil" e com um teatro surpreendente, que pegou os paulistas de surpresa, esses mesmos que haviam desprezado o teatro de Oswald de Andrade e que agora aplaudiam Nelson Rodrigues, surgido mais de uma década depois.
O discurso inaugural de Ciccillo Matarazzo, ao abrir a 1ª Bienal de São Paulo, foi um estranho evento de derrisão e desprezo: a inteligentsia paulista, drincando no salão, rindo e conversando, sequer o ouviu. Ele se vingaria, longa e metodicamente. Para começar, fez com que se desse o primeiro prêmio de pintura nacional a um quadro medíocre intitulado "Limões", de um quase desconhecido ilustrador de folhinhas, chamado Danilo di Prete.

INTEGRIDADE
Na 2ª Bienal, houve um lance de registro obrigatório. O júri de premiação era um corpo mesclado de brasileiros e estrangeiros. Estes, na primeira mostra, preocuparam-se com a premiação internacional, mal tomando conhecimento da representação nacional: os brasileiros que repartissem a seu gosto a sua parte do bolo. Na 2ª Bienal, em assim sendo, o grande prêmio já estava prometido para Di Cavalcanti. Só que a banda brasileira não contava com a integridade ética de Herbert Read, grande nome da crítica artística e literária da Inglaterra (além de poeta), que teria dito: "Se há alguém aqui que deva ser premiado, este se chama Alfredo Volpi". Pasmo nacional. Read se dispunha a ir aos jornais para denunciar a tramóia. No fim, concedeu uma premiação ex-aequo, mas fez questão de que o nome de Alfredo Volpi viesse em primeiro lugar.
Foi a partir daí que o grupo de artistas concretos de São Paulo (ao qual eu me integrara), sob a batuta do ítalo-brasileiro Waldemar Cordeiro, se tomou de apaixonada admiração por Volpi, que eu qualifiquei e qualifico, temerária e polemicamente, como "o primeiro e último grande pintor brasileiro" e que os ignorantes, à moda americana, chamam de "o pintor das bandeirinhas".
Tais incidentes, no entanto, mais aclaram do que obscurecem o formidável ímpeto organizacional internacional da Bienal de São Paulo, principal responsável por haver elevado e mantido em alto nível a arte visual e plástica brasileira, diferentemente do que vem ocorrendo com todos os demais setores artísticos, da literatura à arquitetura, passando por cinema, teatro, música, videoarte, etc. E foi naquele clima e chão que nasceram Brasília, Pelé, a bossa nova e, após o biênio de minha odisséia européia (1954-56), a poesia concreta.


Décio Pignatari é poeta, escritor, ensaísta e tradutor. É autor de, entre outros, "Poesia, Pois É, Poesia" (Ed. Brasiliense) e "Panteros" (Ed. 34).


Texto Anterior: Polêmicas na era dos megaeventos
Próximo Texto: As novas feiras
Índice


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.