São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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GERAÇÃO 70

MARCELO COELHO
Sou do tempo em que...


O alarme em torno da mulher desquitada converteu-se hoje em naturalidade total


Conforme a gente vai envelhecendo, certas lembranças parecem não mais ser nossas; surgem na mente como ETs num disco voador. Reconhecemos mal o mundo em que vivemos, e não reconhecemos o mundo em que vivíamos.
Ocorrem-me cenas que parecem vindas de outro planeta. Já entrei numa fase em que a pessoa volta e meia começa uma frase dizendo: "Sou do tempo em que..."
Sou do tempo em que grávida não usava biquíni. Sou do tempo em que ninguém usava biquíni. Havia pais que não deixavam as filhas usarem biquíni. "Biquíni" já parece, atualmente, uma palavra meio ultrapassada. Lembro-me que o "duas peças" era permitido.
Foi um grande choque para mim, aos nove ou dez anos, a foto de Leila Diniz grávida, de biquíni, em Búzios. No meu tempo, as grávidas usavam o maiô com uma espécie de franzido, de cortina cobrindo a barriga. Eu temia que as ondas do mar fizessem mal ao bebê. Hoje, dizem, o perigo está no sol.
Sou do tempo em que mulheres e jornais não diziam palavrão. "O Pasquim", que comecei a comprar quando tinha nove anos, terminou sendo desaconselhado pela minha família.
Havia também uma entidade estranha, respeitável mas mantida à distância -a mulher desquitada. Pouco a pouco, desquites e separações se tornaram coisa rotineira. Quando o divórcio foi aprovado, em 1977, nenhuma pessoa de bom senso discutia ainda a questão.
Mas foi uma passagem rápida: em menos de dez anos, o mudo alarme que cercava a mulher desquitada transformou-se em naturalidade total.
No meu tempo, havia homossexuais do tipo Clóvis Bornay. Foi com o show de Lennie Dale e dos Dzi Croquettes -anos 70- que o homossexualismo deixou a fantasia para virar realidade -uma certa realidade.
Enquanto ocorria esse movimento, o governo censurava "O Último Tango em Paris." A revista Playboy apareceu. As pornochanchadas. Minha adolescência procurava resistir a tais impactos.
Pela via do sexo, a ditadura estava caindo. Lembro-me de uma frase de Fernando Henrique Cardoso em aula na USP: "A classe dominante queria pornografia contra a ditadura".
Falo do ponto de vista de um filho da burguesia paulistana liberal. Eram os tempos do padre Charbonneau. Sua mensagem era tida como "avançada". O discurso, as palavras, sempre estão em avanço em comparação com as atitudes reais.
Sendo criança, eu absorvia o discurso, sem precisar aplicá-lo à experiência real. Um pouco como o Fabrice del Dongo, o personagem de Stendhal em "A Cartuxa de Parma", eu estava assistindo à batalha de Waterloo sem saber do que se tratava.


MARCELO COELHO, do conselho editorial e colunista da Folha, nasceu 1959 e fez 16 anos em 1975



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