São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice GERAÇÃO 90 GUSTAVO IOSCHPE Por um pouco de trauma
Não está na minha certidão de nascimento porque não ia pegar bem, mas na verdade sou filho de uma grande suruba. Freud, Gloria Steinem, Dr. Spock e os jovens do maio de 68 se reuniram em algum momento e o resultado está aí. Se biologicamente sou fruto de papai ter plantado uma sementinha na mamãe (os adultos e seus eufemismos), em termos comportamentais nossa família englobava todos esses citados acima e sua geração, bicho. A impressão que me dá é que a geração dos meus pais, egressa da contracultura, do paz e amor, finalmente pôde deixar de representar. Não precisaram imbuir-se do vestal sagrado e da máscara que parecem descender sobre todos os jovens sadios no momento em que se tornam progenitores e os fazem se comportar como se nunca tivessem sido filhos: não pode isso, não pode aquilo, respeito, disciplina, por quê? Porque sim ou porque não. Lá em casa não tinha nada disso. Nunca apanhamos, minha irmã e eu. Não ajoelhamos no milho, não ficamos dias de castigo. Nunca fomos proibidos de nada arbitrariamente: tudo tinha uma razão, fazia sentido. Claro que éramos forçados a alguns rituais inexplicáveis: comer carne de fígado, usar gola alta, ir ao teatro infantil (que porre!) e, retribuir os beijos, digamos, açucarados das amigas das avós eram a dose de sofrimento a que éramos submetidos. Sobrevivemos. A idéia era sempre conversar, falar sobre tudo. Não de maneira forçada aquele sóbrio "precisamos ter uma conversa" mas sim espontânea, porque a abertura sempre existira. Se tinha um problema com mulheres, por exemplo, falava logo com meu pai só depois eu descobri que ele manjava as mulheres dos anos 60 e que, enfim, andar de bicicleta de mão dada não preenchia os atuais requisitos de um namoro. Minha mãe também sempre gostou dessas conversas, apesar de até hoje achar que "ficar" precisa de camisinha. Gostava também de falar sobre drogas, porque imaginava ser o fliperama um ponto avançado do cartel de Medellín. (Era de Cali, mãe, não te preocupa). Toda essa atmosfera de família acabou nos preparando para, paradoxalmente, não sermos família. Chegou um ponto em que, como reza a cartilha moderna, meus pais se separaram. Pensei que pelo menos aí ia voar uma cadeira, me dar algum material pras conversas de bar, mas também foi tudo conversado, analisado e resolvido. Noto agora que há um ressurgimento do tradicionalismo nas relações familiares, depois de os pais já não aguentarem mais ter de falar com os filhos sobre sua vida sexual e se fumaram maconha na juventude. Compreendo. Aliás, apóio. Nessa época midiatizada, de talk-shows e superexposições, precisamos criar dramas pra repartir. Se for verdade que o sofrimento constrói caráter, afinal, estamos perdidos. GUSTAVO IOSCHPE, colunista da Folha, nasceu em 1977 e fez 16 anos em 1993 Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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