|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESUMINDO
Incerteza é o centro
de "Dom Casmurro"
FRANCISCO ACHCAR
especial para a Folha
Em "Dom Casmurro"
(1900), de Machado de Assis,
um velho escreve um livro
para contar sua vida e, assim,
tentar recuperar, de alguma
maneira, o passado perdido
-perdido não só porque
passou, mas por ele achar que
o perdeu ao vivê-lo, enganou-se, não entendeu bem o
que se passava.
Sua tentativa é de, como ele
diz, "atar as duas pontas da
vida" e ver se consegue, agora que é o Dr. Bento Santiago,
apelidado de Dom Casmurro
(no sentido de "homem calado e metido consigo"), reencontrar o Bentinho que namorou Capitu, casou com
ela, separou-se dela sob suspeita de adultério com seu
melhor amigo e se afastou do
filho que acreditava não ser
seu.
Portanto, o romance é
apresentado como memórias
do narrador, o livro com que
ele, depois de muitos anos,
vivendo solitário e em parte
retirado, tenta recompor a figura incerta de sua vida frustrada.
É um livro "avançado" para o Realismo, moderno, tanto por sua história quanto por
sua escrita e estrutura. A história, no fundo, é a história de
um livro -um livro frustrado, que não cumpriu sua finalidade em relação à vida,
pois não pôde contê-la, representá-la.
E esse livro é o que o leitor
tem em mãos, incerto até
quanto a seu título: já no primeiro capítulo, "Do título",
ele é deixado em dúvida sobre
se Bentinho, agora Dr. Bento,
é mesmo casmurro, pois
muita coisa indica que não
seja. No jogo de incertezas da
trama, quase nada fica definido.
"Dom Casmurro" é um
exemplo extraordinário de
"obra aberta", obra organizada de forma a admitir sentidos diversos e mesmo incompatíveis entre si.
Mário de Andrade conta de
um entusiasta de Machado
que, ao reler o romance, espantou-se com o que considerou sua "imoralidade"
(seria uma defesa cínica do
adultério): em inúmeras leituras anteriores, sempre
acreditara tratar-se de uma
história "moralizante".
Trata-se de um dos maiores
livros escritos em língua portuguesa, um dos grandes romances do século 19, em âmbito internacional.
Ele pode ser lido em vários
planos: há o plano da história, envolvente, até divertida,
mas intrigante porque não é
conclusiva quanto ao seu nó
central (Capitu traiu ou não
traiu Bentinho?); há o plano
da análise das personagens e
das relações sociais, em que
Machado revela sua penetração extraordinária, psicológica e sociológica, sempre
destilando seu veneno discreto, mas corrosivo; há também o plano da grande estrutura da narrativa, em que o
centro não é o adultério ou
qualquer evento particular da
história, mas a incerteza -a
incerteza da vida e a incerteza
do livro.
Francisco Achcar é professor de língua
e literatura latina na Unicamp e autor de
"Lírica e Lugar-comum" (Edusp).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|