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A palavra do arquiteto
Oscar Niemeyer, criador dos
prédios da capital, acredita que a
desigualdade social tornou-se
o principal problema da cidade
por MARIO CESAR CARVALHO
da Reportagem Local
Brasília dos sonhos de Oscar
Niemeyer não tem nada a ver
com a cidade que você conhece.
Ela acabou justamente quando
começou a ser habitada por políticos, técnicos e funcionários
públicos, a partir de 21 de abril
de 1960. Ele prefere os tempos
da construção da cidade, como
conta em entrevista à Folha
feita por e-mail.
"Vivíamos naquela época como uma grande família, sem
preconceitos e desigualdades.
Uma vez inaugurada Brasília,
vieram os homens do dinheiro,
e tudo se modificou: a vaidade e
o individualismo mais detestáveis se fizeram presentes".
Aos 102 anos, Niemeyer
mantém algumas crenças comunistas da adolescência, mas
já não endossa um dos maiores
dogmas da arquitetura modernista, movimento do início do
século 20 do qual ele é um dos
maiores representantes: o de
que é possível mudar o mundo
por meio de projetos.
Niemeyer começou a trabalhar como arquiteto no início
dos anos 30, como estagiário
do escritório de Lucio Costa,
apontado por historiadores como o fundador da arquitetura
moderna brasileira. A parceria
entre os dois durou até 1939,
quando fizeram um projeto
conjunto para a feira de Nova
York, e seria retomada em Brasília em outros termos: Niemeyer foi escolhido pelo presidente Juscelino Kubitschek para
projetar os prédios, enquanto
Costa venceu um concurso do
projeto urbanístico.
Em 1936, conviveu com Le
Corbusier, francês que criou as
bases do modernismo, na construção do Ministério da Educação, no Rio. O estilo que o projetaria como inventor nasceu
na Pampulha, conjunto arquitetônico inaugurado em 1943
em Belo Horizonte, segundo o
próprio Niemeyer.
Ganhador do prêmio mais
importante de arquitetura em
1988, o Pritzker, Niemeyer não
desistiu do projeto mais polêmico que criou para Brasília,
uma praça que, segundo os críticos, desfigura o urbanismo de
Lucio Costa. É o que falta, segundo Niemeyer, para a cidade
ser como ele a imaginou.
FOLHA - O sr. dizia há cinco anos
que Brasília era uma cidade incompleta, que faltavam prédios que estavam previstos no projeto. Ainda
falta algo para a cidade?
OSCAR NIEMEYER - Acredito que
naquela época eu tinha em
mente a execução de duas
obras que a nova capital hoje
pode exibir: um museu de
maior porte e a biblioteca. É
claro que eu teria enorme satisfação em ver construída uma
grande praça capaz de congregar os brasilienses e os visitantes, como aquela que desenhei
há cerca de um ano e que provocou tanta celeuma.
FOLHA - O sr. criou algumas das
imagens mais fortes do Brasil moderno. O sr. tinha a intenção de criar
símbolos, de inventar uma marca?
NIEMEYER - Confesso que nunca
me passou pela cabeça essa
pretensão. É evidente que os
edifícios a que se refere foram
projetados com extremo cuidado e marcaram um prolongamento e uma busca renovada
daquela arquitetura mais livre
e criativa que adoto desde os
meus trabalhos realizados para
a Pampulha.
FOLHA - O sr. sofreu um acidente
grave de carro ao voltar de Brasília
durante a construção. Qual foi o momento mais difícil?
NIEMEYER - Talvez a morte de
amigos tão queridos ocorrida
no transcurso das obras, como
a do Eça [Walter Garcia Lopes]
ou a de Bernardo Sayão.
FOLHA - As avenidas muito largas e
o isolamento das superquadras das
regiões comerciais obrigam os brasilienses a usar automóvel para quase
tudo. O que o sr. mudaria para que
Brasília fosse melhor para ser desfrutada pelos pedestres, como ocorre no Rio de Janeiro?
NIEMEYER - Penso que um dos
problemas mais graves atestados nas cidades modernas reside na situação, a meu ver intolerável, em que os seus moradores se tornam reféns dos automóveis.
FOLHA - Muitos urbanistas criticam a divisão de Brasília em setores,
como o comercial e o de mansões.
Os críticos dizem que as melhores cidades para viver têm essas funções
misturadas. O que o sr. acha?
NIEMEYER - Sinceramente, acho
que essa separação fixada pelo
Plano Piloto do Lucio [Costa]
não é ruim.
FOLHA - Brasília foi planejada para
ser uma cidade mais igualitária, mas
acabou se tornando uma das mais
desiguais do Brasil. O sr., como um
comunista histórico, fica desapontado quando vê esse tipo de evolução?
NIEMEYER - É claro que essa
evolução me entristece. Brasília mudou bastante em relação
àquele clima de união e solidariedade que reinava em seus
tempos originais, quando da
construção dos seus primeiros
edifícios públicos. Vivíamos
naquela época como uma grande família, sem preconceitos e
desigualdades. Unia-nos um
ambiente de confraternização
proveniente de idênticos desconfortos. Uma vez inaugurada
Brasília, vieram os homens do
dinheiro, e tudo se modificou: a
vaidade e o individualismo
mais detestáveis se fizeram
presentes. Nós mesmos terminamos por voltar, gradativamente, aos hábitos e preconceitos da burguesia que reprovávamos.
FOLHA - É possível integrar as cidades-satélites ao Plano Piloto? Como
o sr. consertaria a divisão e a distância entre ricos e pobres na cidade?
NIEMEYER - É obvio que me desagrada profundamente esse tipo de segregação social e espacial. Mas acho que cabe aos especialistas em urbanismo, e
não a mim, encontrar as soluções para reduzir ou superar os
efeitos perversos da expansão.
FOLHA - O sr. acha que a arquitetura é capaz de promover transformações sociais, como se acreditava até
os anos 50 e 60?
NIEMEYER - Tenho hoje as minhas dúvidas. Penso, sim, que a
transformação de nosso mundo social num universo mais
justo e solidário é que poderá
mudar a arquitetura. E, se um
dia isso ocorrer, nós, arquitetos, seremos convocados para
realizar grandes obras públicas.
FOLHA - Qual foi a crítica mais injusta que o sr. ouviu sobre Brasília?
NIEMEYER - Talvez aquela construída por pessoas que teimam
em afirmar que o sonho de Juscelino teria fracassado, uma vez
que Brasília não teria trazido o
progresso para o interior. Basta
pensarmos no progresso de cidades como Goiânia.
FOLHA - E qual é a crítica mais justa
sobre a cidade?
NIEMEYER - É provável que seja
o aparecimento daquela divisão intolerável entre ricos e pobres nessa metrópole.
FOLHA - Críticos como André Corrêa do Lago dizem que o sr. será conhecido no futuro como o maior artista brasileiro do século 20. Como o
sr. gostaria de ser lembrado?
NIEMEYER - Como de hábito, o
meu amigo André Corrêa do
Lago se mostra muito generoso
em suas apreciações. Gostaria
de ser lembrado como um ser
humano, frágil e perplexo diante deste estranho mundo, como
a maioria dos homens. Em síntese: como alguém que passou
muito tempo debruçado sobre
a prancheta, voltado para a sua
arquitetura, mas sempre pronto para participar da luta política, sensível à necessidade histórica de superarmos esse regime de classes que o capitalismo
veio a aprofundar.
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