São Paulo, sexta-feira, 21 de dezembro de 2001

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OPINIÃO

Após queda, país tem de encarar a realidade da moratória

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

A atitude irresponsável da Argentina soçobrou nos escolhos do protesto popular. Com a saída de Domingo Cavallo, ministro da Economia e criador do plano de conversibilidade, o país enfrenta a possibilidade de um colapso político.
Esse resultado não surpreende: a economia está em seu quarto ano de recessão, o desemprego afeta 18% da força de trabalho e o governo não está pagando suas dívidas. O plano do governo para cortar os gastos públicos em US$ 9,2 bilhões, quase um quinto do total, foi a última jogada em uma partida sem esperanças.
No entanto a transparência também demonstrou suas virtudes. Como Kenneth Rogoff, o novo economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, declarou esta semana, "está claro que a mistura de política fiscal, dívida e o regime cambial em vigor não é sustentável". Como a crise era previsível, pode haver contágio mínimo para outros países devedores. O ágio mais recente entre os bônus argentinos denonimados em dólares e os papéis do Tesouro norte-americano supera os 40%. Mas o ágio é de 8,8% no caso do Brasil, de 3,2% no caso do México e de 1,2% no caso da Coréia do Sul.
Um sistema financeiro mundial que incorpore muitas economias com sistemas financeiros fracos, disciplina fiscal pobre ou retrospecto de excessos monetários está inclinado a esse tipo de crise. Por esse motivo, o debate quanto às melhoras no que é chamado de "arquitetura financeira internacional" não cessa jamais. Mas sua intensidade varia de acordo com a premência das crises. Os problemas da Argentina gerarão urgência inesperada em três áreas: regimes cambiais e dívida, fiscalização e apoio do FMI e "envolvimento do setor privado", ou, para sermos mais francos, falência soberana.
Primeiro, o axioma quanto a regimes cambiais e política fiscal mudará, uma vez mais. Depois do destino infeliz dos regimes de paridade cambial deslizante durante as crises no leste asiático em 1997 e 1998, a visão dominante se encaminhou ao apoio a um mundo bipolar, com taxas de câmbio livres em um extremo e âncoras cambiais fixas, uniões monetárias ou a adoção da moeda de um segundo país no outro. O destino da Argentina certamente abalará a plausibilidade dos mecanismos de âncora cambial e, talvez, de outros regimes cambiais duros.
A Argentina demonstra que qualquer regime associado a um longo declínio econômico se torna vulnerável. Se, como na Argentina, a economia é inflexível, um declínio econômico assim longo é bastante provável sob um regime de taxas cambiais fixas, particularmente em um país vulnerável a choques externos. A conclusão provável a que o desastre argentino conduzirá é uma falta maior de disposição para apoiar regimes de âncora cambial. Nem a dolarização é panacéia. Um país evitaria um desastre monetário dessa maneira, mas o colapso fiscal continuaria a ser bastante possível sob uma situação de dolarização.
Por isso, a visão do volume de dívida que um país de mercado emergente pode sustentar também mudará. Pelos padrões de uma economia desenvolvida, a relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina, 55%, parece sustentável. Mas não se pode sustentá-la quando as taxas reais de juros ultrapassam os 10%. A menos que um país tenha um potencial de crescimento extraordinário ou um mercado financeiro doméstico cativo, não pode permitir que sua dívida pública chegue a essas alturas, particularmente se essa dívida estiver denominada em moeda estrangeira.
Segundo, o papel do FMI, uma vez mais, será examinado com extremo cuidado. A história da queda argentina ilustra a dificuldade que o FMI enfrenta para evitar que seus devedores o tomem como presa. Funcionários importantes do Fundo alegam que a instituição está presa em uma armadilha. Se não apoiar o governo do país em crise, será culpada pelo caos que se segue a uma moratória. Se concordar em apoiá-lo, será culpada pelo eventual fracasso. Não há como vencer desse jeito.
No entanto os governos dos principais países de alta renda provavelmente se irritarão com a maneira pela qual foram arrastados, bastante a contragosto, na esteira da descontrolada carroça argentina. Uma proposta para enfrentar o problema vem de Gordon Brown, o chanceler do Erário (ministro da Fazenda) britânico. Em discurso no mês passado, ele solicitou que a fiscalização do FMI fosse tornada "mais transparente, mais independente e, portanto, mais eficaz". Se um relatório independente alega que a política do país é insustentável, o FMI deveria ter obstáculos muito maiores a transpor antes de apoiá-la. Se a equipe do Fundo tivesse todas as informações, seria muito mais fácil para ela dizer não. A idéia é intrigante. Mas escapar do passado é terrivelmente difícil, para credores e devedores igualmente. Eles muitas vezes continuam no mesmo curso até que surja uma catástrofe.
Terceiro, a questão dos procedimentos para falências nacionais agora parece ainda mais urgente. A Argentina é um caso particularmente importante, porque é a maior falência nacional já registrada, pelo menos em termos de dólares. Anne Krueger, que acaba de ser apontada primeira diretora-executiva-assistente do FMI, reforçou a credibilidade das propostas para uma reestruturação ordenada da dívida soberana em um discurso que pronunciou em 26 de novembro.
A proposta dela tem quatro elementos: um mecanismo que impede os credores de perturbar as negociações solicitando pagamento de dívidas em tribunais internos, um mecanismo para impor comportamento responsável aos devedores, uma forma de encorajar os credores a oferecer dinheiro novo e uma forma de forçar os credores minoritários a aceitar os acordos de reestruturação. Não são idéias novas. A novidade é sua proveniência.
No entanto um mecanismo como esse, se bem que desejável, será difícil de estabelecer. Como declarou Anne, "o imponderável político é determinar se os nossos membros estão preparados para restringir o direito de seus cidadãos de processar governos estrangeiros em suas cortes nacionais, como investimento em uma economia mundial mais estável e, portanto, mais próspera".
Todas essas idéias para a adoção de melhores procedimentos pelos credores, maior disciplina na concessão de empréstimos oficiais e novas formas de lidar com as falências nacionais e com a falta de liquidez devem ganhar destaque na agenda da reforma financeira internacional. Mas nada disso ajudará a pobre Argentina. Os erros que o país cometeu e sua má sorte já são fatos consumados.
Ao definir uma nova política, as autoridades argentinas precisam reconhecer a realidade da moratória. Assim que a dívida tiver sido reestruturada, o orçamento terá de ser equilibrado, porque o governo não dispõe mais de crédito. Uma vez mais, o máximo de sofrimento politicamente viável já foi imposto aos argentinos, de modo que o resto dos problemas deve ser suportado pelos credores estrangeiros, logicamente. A política adotada também precisa restaurar o crescimento. Isso quase que certamente envolve uma desvalorização, quer pela adoção de câmbio livre quer por uma desvalorização de caráter excepcional seguida pela dolarização. Por fim, tudo isso precisa ser realizado sem abandonar uma vez mais a estabilidade monetária.
A Argentina é uma lição quanto ao perigo de aderir heroicamente a políticas inflexíveis. O mundo precisa aprendê-la. Mas o país não terá muita ajuda de fora para descobrir como escapar aos destroços.



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