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ÀS RUAS
O último panelaço
Pouco depois de o estado de sítio ser anunciado, a população sai de casa em
plena madrugada para desafiar governo, sistema político e instituições
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES
O presidente Fernando de la
Rúa acabava de anunciar, em rede
nacional de televisão, a decretação do estado de sítio, que, entre
outras restrições, limita o direito
de reunião e de manifestação.
Eram 22h50 de anteontem
(23h50 em Brasília). Mal o presidente saiu do ar, começou o ruído
do "panelaço", leve primeiro,
mais forte a cada momento, ensurdecedor em seguida.
O ruído não foi tudo: pessoas
começaram a sair de casa, em forma absolutamente espontânea,
em busca das esquinas portenhas,
famosos pontos de encontro.
Seis horas depois, quando o sol
surgiu, iluminou um fenômeno
inédito: a sociedade argentina havia votado ao longo da madrugada, não com urnas, mas com panelas, gritos, marchas, fogos de
artifício e alguma violência, não
apenas contra o governo do presidente Fernando de la Rúa mas
contra todo o sistema político e as
instituições.
Esse voto simbólico começou
por derrubar o ministro da Economia, Domingo Cavallo, e terminou, no fim do dia, tragando a
própria presidência De la Rúa.
DESBOCADOS
Que importava que o estado de
sítio limitava o direito de manifestação? A resposta desbocada da
massa reunida na histórica Plaza
de Mayo, marco zero de Buenos
Aires e onde fica a Casa Rosada,
sede do governo, foi assim: "Qué
boludos/qué boludos/el estado de
sítio/lo meten en el culo".
"Boludos" é a gíria portenha para "mala sem alça", e o resto do
cântico dispensa tradução.
O grito de repúdio carrega uma
das marcas do fenomenal "panelaço": em vez de slogans políticos,
palavrões, uma catarata de palavrões, de "hijos de puta", dirigidos aos políticos em geral, mas
em especial ao presidente, ao seu
antecessor, Carlos Menem, e ao
então ministro de Economia.
Ouviu-se, é verdade, o antigo e
já gasto "el pueblo, unido/jamás
será vencido", ouviu-se também o
Hino Nacional, mas a esmagadora maioria dos cânticos faria corar
de vergonha até as "barras bravas", as violentas torcidas organizadas, conhecidas pelos gritos
não exatamente de elogios às
mães de árbitros e adversários.
As marchas espontâneas e ruidosas fizeram questão de impedir
a exibição de faixas ou bandeiras
de partidos políticos ou outros
movimentos e escolheram alvos
que não deixam dúvida sobre o
repúdio generalizado aos políticos. Já durante a tarde, uma pichação na localidade de Moreno,
na Grande Buenos Aires, generalizava: "Políticos de mierda".
ATOS LOCALIZADOS
Na madrugada, como era previsível, o maior número de manifestantes procurou a Plaza de Mayo,
o local onde historicamente os argentinos gritam sua raiva e festejam seus sucessos (muito mais a
primeira que os segundos, a bem
da verdade).
Lá, a palavra de ordem era uma
só, curta e grossa: "Vayanse", dirigida, à falta de interlocutores visíveis, ao casarão cor-de-rosa em
que despacha o presidente da República, àquela hora deserto.
A exigência dirigia-se a Fernando de la Rúa, eleito em 1999, líder
da União Cívica Radical, partido
centenário, em geral tido como de
centro-esquerda.
Mas, doze quadras adiante, havia outra manifestação maciça,
contra o Congresso Nacional, hoje dominado pela oposição à De la
Rúa e à UCR, mais concretamente
dominado pelo peronismo, um
movimento que nasceu como o
mais clássico populismo, mas que
se travestiu de neoliberal na sua
gestão mais recente (1989/1999,
sob a chefia de Carlos Menem).
Diante do Congresso, um homem sem camisa, de discurso articulado, explicava: "Isto não é de
direita nem de esquerda. É contra
os sem-vergonhas. Têm que ir-se
todos os que fizeram do Congresso um covil de ladrões".
Atrás dele, o coro reproduzia
um degrau de violência verbal acima da pichação vista em Moreno:
"Políticos/hijos de puta".
POLÍCIA CONTIDA
A manifestação diante do Parlamento revelava uma outra faceta
do "panelaço" da madrugada: a
impotência inicial da polícia, claramente superada, em número,
pelos manifestantes, por sua vez
dispostos, com toda a nitidez, a
enfrentar o aparato repressivo.
Enquanto eram apenas gritos e
o acúmulo de latas de lixo de plástico, para iniciar uma fogo, os policiais ficaram escondidos atrás de
colunas góticas do velho prédio.
A massa, aparentemente sentindo-se dona da rua, começou a subir as escadas. De repente, um jovem descamisado estava diante
de um policial e o enfrentava com
um fino e longo pedaço de pau,
uma espada improvisada, enquanto choviam pedras sobre o
pessoal da segurança.
Quase ao mesmo tempo, tanto
na Plaza de Mayo como diante do
Congresso, das ruas laterais surgiu a tropa de choque e começaram os disparos, com balas de
borracha, e uma nuvem de cápsulas de gás lacrimogêneo.
A massa recuou, como é natural, mas a disposição para o enfrentamento não cessou: alguns
manifestantes fizeram um cordão
e impediram a passagem de um
carro de bombeiros que deveria
apagar o fogo ateado em uma das
palmeiras da praça histórica.
POLÍTICOS
Se os políticos do Executivo e do
Legislativo eram os alvos preferenciais nas duas praças mais
simbólicas de Buenos Aires, o Judiciário cairia sobre a metralhadora verbal da massa, bem longe
dali, em Olivos, o bairro da Zona
Norte da Grande Buenos Aires
que abriga a quinta em que residem os presidentes argentinos.
Lá também houve protestos,
palavrões, fogos e panelaço, mas
sobrou para os juizes. Sem se justificar, um manifestante dizia à televisão local que "a maioria dos
juizes desonra a profissão, o país e
envergonha a própria família".
Se políticos septuagenários como De la Rúa e Menem foram
simbolicamente fuzilados em
praça pública, não escapou um
jovem político como Aníbal Ibarra, o prefeito de Buenos Aires, tido em alguns setores como moderno e futuro "presidenciável".
Diante do prédio em que mora
Ibarra houve igualmente "panelaço" e algo mais: dois dos carros
estacionados perto foram riscados e tiveram vidros quebrados,
por pertencerem à família do prefeito, segundo a versão da massa.
No prédio de Ibarra, outra marca do "panelaço": a convicção absoluta de que todos os políticos
são ladrões. Um dos manifestantes mostrava o prédio do prefeito,
dizendo que, até assumir, era o
único imóvel de Ibarra e exigia
que a câmera mostrasse dois
apartamentos vizinhos, supostamente adquiridos depois.
Havia mais "panelaços" pela cidade, como na frente do prédio
em que mora Domingo Cavallo,
na elegantíssima avenida Libertador, que leva da igualmente chique Zona Norte ao centro da cidade, junto ao rio.
Ali, a massa saboreou o primeiro triunfo: pelo celular de um integrante, veio a notícia de que Cavallo havia renunciado ao cargo.
"El pueblo, unido/jamás será
vencido", cantou-se então, trocando os palavrões pela festa.
DEMOCRACIA
Rostos e roupas vistos no "panelaço" e nas marchas compunham um contraste com os saques havidos durante o dia em todo o país: primeiro, os saques foram comparativamente poucos
na Capital Federal.
Só ocorreram em um bairro pobre da Zona Sul (Villa Lugano) e
em um bairro central de classe
média baixa (Constitución).
Os saques se deram, essencialmente, na Província de Buenos
Aires, a unidade administrativa
que circunda a Capital, e que
compõe hoje um cinturão de miséria em torno da ainda luminosa
Buenos Aires.
Ou, posto de outra forma e recorrendo à comparação com o
Brasil, usualmente chamado de
"Belíndia": o dia havia sido de
manifestações na "Índia" argentina, a sua parte pobre. A madrugada", ao contrário, concentrou-se
na "Bélgica", a parte rica do país.
Mais: começou justamente pelos bairros de Belgrano e Barrio
Norte, dois dos mais chiques da
capital argentina.
Tudo somado, não havia estamento social que tivesse deixado
de se manifestar, de uma forma
ou de outra.
Era inevitável que flutuasse no
ar o fantasma de 1989, o ano em
que o então presidente Raúl Alfonsín (da UCR, como De la Rúa)
se viu obrigado a cortar seis meses
do próprio mandato, sitiado por
um plebiscito semelhante, na forma de saques, primeiro, "panelaços" depois.
A comparação era aterradora
porque, por desastrosa que fosse a
situação em 1989, ano de hiperinflação, o quadro social era menos
lúgubre. A pobreza afetava 11,2%
da população, dos quais menos de
3% eram indigentes.
Hoje, os pobres já são 14,2% e,
os indigentes, 5,5%.
Pelas contas do jornal matutino
"Clarín", a Argentina de hoje tornou-se uma fábrica de pobres,
produzindo-os à razão de 8.260
pessoas por dia, cálculo feito com
base em dados do Indec (Instituto
de Estatísticas e Censo).
Entende-se, nesse cenário, o título que o matutino esquerdista
"Página 12" usou para referir-se
aos saques e ao "panelaço", os de
1989 e os de agora:
"Pariram o modelo em 1989 e o
enterraram em 2001".
Com o caixão do modelo, no
entanto, desce também à sepultura a liderança política: uma pesquisa exibida na quarta-feira pelo
delegado das Nações Unidas na
Argentina, Carmelo Barturen, ao
presidente De la Rúa e a outros dirigentes prova que 70% dos argentinos estão descontentes com
os líderes políticos.
Em outros tempos, os tanques
já estariam rolando pelas ruas de
Buenos Aires, rumo à Casa Rosada, para depor o presidente de
turno.
Agora, não há essa hipótese
nem demanda por ela. A mesma
pesquisa de Barturen diz que 80%
dos argentinos continuam
apoiando o regime democrático,
porcentagem fenomenal diante
da crise.
Mas, a julgar pelos gritos dos
manifestantes da madrugada, poder-se-ia até dizer que a sociedade
argentina gostaria de adotar a democracia direta:
"No tenemos dirigentes/pero
este pueblo tiene pelotas", gritava-se na noite da Plaza de Mayo,
em alusão ao símbolo da masculinidade.
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