São Paulo, sexta-feira, 21 de dezembro de 2001

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ÀS RUAS

O último panelaço

Pouco depois de o estado de sítio ser anunciado, a população sai de casa em plena madrugada para desafiar governo, sistema político e instituições

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

O presidente Fernando de la Rúa acabava de anunciar, em rede nacional de televisão, a decretação do estado de sítio, que, entre outras restrições, limita o direito de reunião e de manifestação.
Eram 22h50 de anteontem (23h50 em Brasília). Mal o presidente saiu do ar, começou o ruído do "panelaço", leve primeiro, mais forte a cada momento, ensurdecedor em seguida.
O ruído não foi tudo: pessoas começaram a sair de casa, em forma absolutamente espontânea, em busca das esquinas portenhas, famosos pontos de encontro.
Seis horas depois, quando o sol surgiu, iluminou um fenômeno inédito: a sociedade argentina havia votado ao longo da madrugada, não com urnas, mas com panelas, gritos, marchas, fogos de artifício e alguma violência, não apenas contra o governo do presidente Fernando de la Rúa mas contra todo o sistema político e as instituições.
Esse voto simbólico começou por derrubar o ministro da Economia, Domingo Cavallo, e terminou, no fim do dia, tragando a própria presidência De la Rúa.

DESBOCADOS
Que importava que o estado de sítio limitava o direito de manifestação? A resposta desbocada da massa reunida na histórica Plaza de Mayo, marco zero de Buenos Aires e onde fica a Casa Rosada, sede do governo, foi assim: "Qué boludos/qué boludos/el estado de sítio/lo meten en el culo".
"Boludos" é a gíria portenha para "mala sem alça", e o resto do cântico dispensa tradução.
O grito de repúdio carrega uma das marcas do fenomenal "panelaço": em vez de slogans políticos, palavrões, uma catarata de palavrões, de "hijos de puta", dirigidos aos políticos em geral, mas em especial ao presidente, ao seu antecessor, Carlos Menem, e ao então ministro de Economia.
Ouviu-se, é verdade, o antigo e já gasto "el pueblo, unido/jamás será vencido", ouviu-se também o Hino Nacional, mas a esmagadora maioria dos cânticos faria corar de vergonha até as "barras bravas", as violentas torcidas organizadas, conhecidas pelos gritos não exatamente de elogios às mães de árbitros e adversários.
As marchas espontâneas e ruidosas fizeram questão de impedir a exibição de faixas ou bandeiras de partidos políticos ou outros movimentos e escolheram alvos que não deixam dúvida sobre o repúdio generalizado aos políticos. Já durante a tarde, uma pichação na localidade de Moreno, na Grande Buenos Aires, generalizava: "Políticos de mierda".

ATOS LOCALIZADOS
Na madrugada, como era previsível, o maior número de manifestantes procurou a Plaza de Mayo, o local onde historicamente os argentinos gritam sua raiva e festejam seus sucessos (muito mais a primeira que os segundos, a bem da verdade).
Lá, a palavra de ordem era uma só, curta e grossa: "Vayanse", dirigida, à falta de interlocutores visíveis, ao casarão cor-de-rosa em que despacha o presidente da República, àquela hora deserto.
A exigência dirigia-se a Fernando de la Rúa, eleito em 1999, líder da União Cívica Radical, partido centenário, em geral tido como de centro-esquerda.
Mas, doze quadras adiante, havia outra manifestação maciça, contra o Congresso Nacional, hoje dominado pela oposição à De la Rúa e à UCR, mais concretamente dominado pelo peronismo, um movimento que nasceu como o mais clássico populismo, mas que se travestiu de neoliberal na sua gestão mais recente (1989/1999, sob a chefia de Carlos Menem).
Diante do Congresso, um homem sem camisa, de discurso articulado, explicava: "Isto não é de direita nem de esquerda. É contra os sem-vergonhas. Têm que ir-se todos os que fizeram do Congresso um covil de ladrões".
Atrás dele, o coro reproduzia um degrau de violência verbal acima da pichação vista em Moreno: "Políticos/hijos de puta".

POLÍCIA CONTIDA
A manifestação diante do Parlamento revelava uma outra faceta do "panelaço" da madrugada: a impotência inicial da polícia, claramente superada, em número, pelos manifestantes, por sua vez dispostos, com toda a nitidez, a enfrentar o aparato repressivo.
Enquanto eram apenas gritos e o acúmulo de latas de lixo de plástico, para iniciar uma fogo, os policiais ficaram escondidos atrás de colunas góticas do velho prédio.
A massa, aparentemente sentindo-se dona da rua, começou a subir as escadas. De repente, um jovem descamisado estava diante de um policial e o enfrentava com um fino e longo pedaço de pau, uma espada improvisada, enquanto choviam pedras sobre o pessoal da segurança.
Quase ao mesmo tempo, tanto na Plaza de Mayo como diante do Congresso, das ruas laterais surgiu a tropa de choque e começaram os disparos, com balas de borracha, e uma nuvem de cápsulas de gás lacrimogêneo.
A massa recuou, como é natural, mas a disposição para o enfrentamento não cessou: alguns manifestantes fizeram um cordão e impediram a passagem de um carro de bombeiros que deveria apagar o fogo ateado em uma das palmeiras da praça histórica.

POLÍTICOS
Se os políticos do Executivo e do Legislativo eram os alvos preferenciais nas duas praças mais simbólicas de Buenos Aires, o Judiciário cairia sobre a metralhadora verbal da massa, bem longe dali, em Olivos, o bairro da Zona Norte da Grande Buenos Aires que abriga a quinta em que residem os presidentes argentinos.
Lá também houve protestos, palavrões, fogos e panelaço, mas sobrou para os juizes. Sem se justificar, um manifestante dizia à televisão local que "a maioria dos juizes desonra a profissão, o país e envergonha a própria família".
Se políticos septuagenários como De la Rúa e Menem foram simbolicamente fuzilados em praça pública, não escapou um jovem político como Aníbal Ibarra, o prefeito de Buenos Aires, tido em alguns setores como moderno e futuro "presidenciável".
Diante do prédio em que mora Ibarra houve igualmente "panelaço" e algo mais: dois dos carros estacionados perto foram riscados e tiveram vidros quebrados, por pertencerem à família do prefeito, segundo a versão da massa.
No prédio de Ibarra, outra marca do "panelaço": a convicção absoluta de que todos os políticos são ladrões. Um dos manifestantes mostrava o prédio do prefeito, dizendo que, até assumir, era o único imóvel de Ibarra e exigia que a câmera mostrasse dois apartamentos vizinhos, supostamente adquiridos depois.
Havia mais "panelaços" pela cidade, como na frente do prédio em que mora Domingo Cavallo, na elegantíssima avenida Libertador, que leva da igualmente chique Zona Norte ao centro da cidade, junto ao rio.
Ali, a massa saboreou o primeiro triunfo: pelo celular de um integrante, veio a notícia de que Cavallo havia renunciado ao cargo.
"El pueblo, unido/jamás será vencido", cantou-se então, trocando os palavrões pela festa.

DEMOCRACIA
Rostos e roupas vistos no "panelaço" e nas marchas compunham um contraste com os saques havidos durante o dia em todo o país: primeiro, os saques foram comparativamente poucos na Capital Federal.
Só ocorreram em um bairro pobre da Zona Sul (Villa Lugano) e em um bairro central de classe média baixa (Constitución).
Os saques se deram, essencialmente, na Província de Buenos Aires, a unidade administrativa que circunda a Capital, e que compõe hoje um cinturão de miséria em torno da ainda luminosa Buenos Aires.
Ou, posto de outra forma e recorrendo à comparação com o Brasil, usualmente chamado de "Belíndia": o dia havia sido de manifestações na "Índia" argentina, a sua parte pobre. A madrugada", ao contrário, concentrou-se na "Bélgica", a parte rica do país.
Mais: começou justamente pelos bairros de Belgrano e Barrio Norte, dois dos mais chiques da capital argentina.
Tudo somado, não havia estamento social que tivesse deixado de se manifestar, de uma forma ou de outra.
Era inevitável que flutuasse no ar o fantasma de 1989, o ano em que o então presidente Raúl Alfonsín (da UCR, como De la Rúa) se viu obrigado a cortar seis meses do próprio mandato, sitiado por um plebiscito semelhante, na forma de saques, primeiro, "panelaços" depois.
A comparação era aterradora porque, por desastrosa que fosse a situação em 1989, ano de hiperinflação, o quadro social era menos lúgubre. A pobreza afetava 11,2% da população, dos quais menos de 3% eram indigentes.
Hoje, os pobres já são 14,2% e, os indigentes, 5,5%.
Pelas contas do jornal matutino "Clarín", a Argentina de hoje tornou-se uma fábrica de pobres, produzindo-os à razão de 8.260 pessoas por dia, cálculo feito com base em dados do Indec (Instituto de Estatísticas e Censo).
Entende-se, nesse cenário, o título que o matutino esquerdista "Página 12" usou para referir-se aos saques e ao "panelaço", os de 1989 e os de agora:
"Pariram o modelo em 1989 e o enterraram em 2001".
Com o caixão do modelo, no entanto, desce também à sepultura a liderança política: uma pesquisa exibida na quarta-feira pelo delegado das Nações Unidas na Argentina, Carmelo Barturen, ao presidente De la Rúa e a outros dirigentes prova que 70% dos argentinos estão descontentes com os líderes políticos.
Em outros tempos, os tanques já estariam rolando pelas ruas de Buenos Aires, rumo à Casa Rosada, para depor o presidente de turno.
Agora, não há essa hipótese nem demanda por ela. A mesma pesquisa de Barturen diz que 80% dos argentinos continuam apoiando o regime democrático, porcentagem fenomenal diante da crise.
Mas, a julgar pelos gritos dos manifestantes da madrugada, poder-se-ia até dizer que a sociedade argentina gostaria de adotar a democracia direta:
"No tenemos dirigentes/pero este pueblo tiene pelotas", gritava-se na noite da Plaza de Mayo, em alusão ao símbolo da masculinidade.


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