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Para Lévi-Strauss, missão francesa trouxe disciplina
Claude Lévi-Strauss/Reprodução
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Auto-retrato do antropólogo Claude Lévi-Strauss, realizado em 1938, no Brasil |
O antropólogo fala sobre os primeiros anos da Universidade de São Paulo
FERNANDO EICHENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS
O destino e a carreira de Claude
Lévi-Strauss foram decididos
num domingo de outono de 1934.
Às 9h, o jovem professor, então
com 26 anos, recebeu um telefonema de Célestin Bouglé, diretor
da Ecole Normale Supérieure, sugerindo que se candidatasse a
uma vaga para a cátedra de sociologia da recém-criada Universidade de São Paulo. "Você precisa
dar uma resposta definitiva até o
meio-dia", alertou.
O episódio é narrado pelo próprio Lévi-Strauss, no início de um
dos capítulos de sua célebre obra
"Tristes Trópicos" (1955), marco
bibliográfico da antropologia
contemporânea. A continuação
da história é conhecida. O curioso
e inquieto professor aproveitou a
chance de se aventurar no desconhecido e, no ano seguinte, embarcou no porto da cidade de
Marselha, no sul da França, num
navio rumo ao Brasil.
Lévi-Strauss lecionou na USP
entre 1935 e 1938. O trabalho na
universidade não foi sua única
ocupação nesse período. Ao final
de seu primeiro ano universitário,
realizou seu batismo etnográfico
ao organizar uma expedição a
Mato Grosso, às tribos dos índios
cadiuéus e bororos. A experiência
acadêmica paulista e a descoberta
do Brasil fizeram germinar as primeiras formulações científicas e
intelectuais deste que seria o principal antropólogo do século 20.
Lévi-Strauss, 95 anos completados no último 28 de novembro,
vestido de um impecável conjunto de terno e gravata, recebeu a
Folha na sua sala do Laboratório
de Antropologia Social do Collège
de France, no Quartier Latin.
Com a fala lúcida e pausada, e
também com matizes de humor,
ele relembrou sua participação na
fundação da USP e seus primeiros
momentos no Brasil. Num tom
nuançado de nostalgia e renúncia,
Claude Lévi-Strauss diz já não se
sentir um homem deste mundo.
Folha - O que fez o senhor aceitar,
sem hesitar, o posto na USP?
Claude Lévi-Strauss - Eu imediatamente aceitei a proposta. Não
conhecia nada do Brasil, tinha
vontade de ver o mundo. Creio
que se tivessem me proposto não
importa que país distante eu teria
aceitado. Mas, naturalmente, desde que fui designado para o Brasil,
tentei aprender algo sobre o país.
Folha - O senhor contou que foi,
de uma certa maneira, influenciado pelas viagens do escritor Paul
Nizan à Arábia, em 1926-27, e do
etnólogo Jacques Soustelle ao México, a primeira delas em 1932.
Lévi-Strauss - Era uma época na
qual começava-se a saber que jovens filósofos, recém-formados,
não estavam condenados a lecionar nas escolas do interior, mas
podiam partir em busca de aventuras. O exemplo de Soustelle, que
eu conhecia bem, e também o de
Nizan, que havia se casado com
uma de minhas primas, Henriette
Halphen, me mostrou que havia
outras possibilidades.
Folha - Em 1935, o senhor partiu
num navio para o Brasil. Que lembranças conserva dessa viagem,
descrita em "Tristes Trópicos"?
Lévi-Strauss - Éramos três ou
quatro no navio, havia ainda comigo Pierre Monbeig e Jean Maugüé. Fernand Braudel viajou para
o Brasil alguns meses mais tarde.
Mas tinha mais lembranças sobre
a viagem quando escrevi "Tristes
Trópicos", há 50 anos. Mesmo na
época, já havia me esquecido de
muita coisa e, hoje, não lembro de
mais nada. Se quiser saber algo da
viagem, preciso retornar às páginas de "Tristes Trópicos" [risos].
Folha - Quais foram suas primeiras impressões ao chegar à Universidade de São Paulo? Como foi sua
primeira semana de trabalho?
Lévi-Strauss - Para mim e meus
colegas, foi uma experiência enorme, porque era a primeira vez que
tínhamos acesso ao ensino universitário. Éramos professores de
liceu [ensino médio]. Fomos escolhidos porque pensavam que
éramos capacitados, mas, na verdade, era uma grande novidade, e
foi algo emocionante para nós.
Devo dizer que os estudantes
com os quais tínhamos contato
eram de uma tal gentileza, curiosidade, eles tinham tanto desejo,
não diria de aprender, porque já
sabiam muita coisa, mas de conhecer de que forma nós os víamos e a seu país, e o que nós poderíamos lhes fornecer para completar seu saber. Foi um contato
extremamente fácil. Instantaneamente, estabelecemos amizades
com alguns de nossos estudantes.
Folha - O senhor lamentava os
modismos no meio intelectual, em
detrimento de um real interesse
pelo método de trabalho.
Lévi-Strauss - Sim, penso que a
única coisa que nós levamos para
eles foi um método de trabalho.
Eles pesquisavam a torto e a direito, era qualquer coisa. Diria que
nós os ensinamos a se disciplinar
intelectualmente, sem pensar
que, a cada vez que se discutia sobre um tema qualquer, mesmo
que bastante limitado, fosse necessário remontar até as origens
da humanidade. Foi um trabalho
importante, porque tínhamos
contato com espíritos bastante vivos, ativos, curiosos, mas intelectualmente indisciplinados.
Folha - O senhor sentiu a responsabilidade de participar da fundação de uma universidade?
Lévi-Strauss - Sim, claro. Mas
não podemos esquecer que a missão francesa não era a única, havia
professores italianos, alemães.
Nós não tínhamos a inteira responsabilidade da universidade.
Folha - O que o trabalho da missão francesa acrescentou ao Brasil?
Lévi-Strauss - Eu penso, sobretudo, no que o Brasil acrescentou à
missão francesa [risos].
Folha - Como a experiência na
USP influenciou o seu percurso intelectual?
Lévi-Strauss - A América do Sul,
o Brasil, eram terras tão desconhecidas para nós como poderiam ser para Cabral, 400 anos antes. Para nós, era como refazer a
descoberta do Novo Mundo. Tudo nos ensinava algo, o menor espetáculo na rua, a menor planta.
Folha - À parte o contato com os
alunos, que outros encontros o senhor considera importantes nesse
período no Brasil?
Lévi-Strauss - Houve outros encontros importantes, certamente.
O primeiro que nomearia foi o
com Mário de Andrade. Ele era,
antes de tudo, um grande escritor,
um dos primeiros que li em português. Ele possuía uma enorme
cultura e se interessava muito pelo folclore, que é uma parte da etnografia. O primeiro estudo de
folclore que realizei foi na companhia de Mário de Andrade, guiado por ele, em feiras e festas de pequenas localidades.
Houve também uma outra pessoa, com a qual estabeleci uma
amizade, diria, fraternal, que foi
Paulo Duarte. Conheci-o no Brasil, mas continuei a vê-lo como
um amigo bastante caro nos Estados Unidos, onde nos refugiamos
durante a guerra, ou em Paris, onde ele viveu por muito tempo.
Aliás, suas memórias estão ali
[aponta para a estante de livros].
Havia ainda outros nomes, como
Sérgio Milliet, Rubens Borba de
Moraes, Caio Prado Jr.
Folha - A influência francesa era
bastante grande na vida acadêmica brasileira, mas, ao longo das décadas, foi substituída pela americana. Essa mudança é ruim? O senhor crê que haja uma crise das
ciências humanas na universidade?
Lévi-Strauss - Na época, nós ensinávamos em francês. Todos os
estudantes falavam francês. Toda
pessoa um pouco culta no Brasil
falava correntemente o francês.
Os grandes nomes eram Pasteur,
Victor Hugo e outros. Evidentemente, isso tudo mudou. E as
ciências humanas não estão em
crise somente no Brasil, mas na
França também.
Folha - O senhor teme pelo futuro
da universidade pública com a
crescente mercantilização do conhecimento?
Lévi-Strauss - Eu me privaria de
fazer previsões sobre um tempo
que não vou conhecer. Quando se
acredita que as coisas vão numa
certa direção, é sempre um outro
rumo que elas tomam. A universidade pública já não é mais algo
que me preocupa, porque já não
me sinto mais deste mundo.
Folha - Após seu primeiro ano na
USP, como surgiu a iniciativa de
realizar a expedição a Mato Grosso,
seu "batismo etnográfico"?
Lévi-Strauss - No lugar de retornar à França para passar as férias,
como faziam meus colegas, eu
parti para o Mato Grosso, ao encontro dos índios cadiuéus e bororos. Essa viagem eu mesmo organizei. Não havia nenhuma razão para que me dessem alguma
atenção. Fui encorajado e ajudado moralmente pelo departamento de cultura de São Paulo e pela
diretora do Museu Nacional do
Rio, Heloísa Alberto Torres.
O departamento me pediu, inclusive, para inspecionar um sítio
arqueológico esquecido ao longo
da via das estradas de ferro, do lado de Porto Esperança. Mas era
preciso que eu fizesse minhas
provas de etnólogo.
O Museu do Homem [de Paris]
só se interessou por mim quando
lhes trouxe minhas primeiras coleções etnográficas. Tinha intenção de seguir uma carreira etnográfica, e depois dessa primeira
viagem e de outras pesquisas em
diversas regiões, quis passar quase um ano inteiro em campo. Preparei, então, essa segunda expedição, à região dos nambiquaras,
que foi mais difícil de organizar e
enfrentou muitos obstáculos.
Folha - Que tipo de obstáculos?
Lévi-Strauss - O clima político
havia mudando bastante no Brasil. Eu havia sido enviado pelo
Museu do Homem, considerado
uma instituição bastante à esquerda, e suspeitavam um pouco
de mim. Se a expedição pôde ser
realizada, diria que foi graças a
Mário de Andrade, que transformou a expedição francesa em expedição franco-brasileira.
Folha - O senhor sentiu, na época,
essa suspeita política em relação
ao seu trabalho?
Lévi-Strauss - Na época, não me
dei conta. Soube disso depois, por
diferentes testemunhos, alguns
dos quais, aliás, foram publicados
no Brasil. Não me recordo o nome, é um nome italiano -de alguém que realizou todo um trabalho sobre os aspectos e os problemas administrativos enfrentados
pelas minhas missões. Eu não me
dava conta, porque os brasileiros
são pessoas extremamente corteses e não diziam exatamente as
coisas como eles as pensavam.
Folha - Hoje guarda mais boas ou
más lembranças desse período?
Lévi-Strauss - Só restaram as
boas lembranças. Antes de tudo,
foi o período da minha juventude,
e guardamos boas lembranças da
juventude. Foram, provavelmente, os anos mais fecundos que conheci na minha vida, porque
aprendia algo de tudo.
Folha - Que relação manteve com
a USP após sua partida?
Lévi-Strauss - Retornei em 1985,
na ocasião de uma viagem oficial
que o presidente da República
[François Mitterrand] fez ao Brasil. Foi uma viagem bastante breve, de cinco dias. Fui recebido na
universidade, que organizou uma
pequena sessão, e reencontrei
professores aposentados, alguns
mesmo que haviam sido meus
alunos, o que me fez mensurar o
quanto estava velho [risos].
Folha - O que o senhor sentiu
quando retornou à cidade?
Lévi-Strauss - Era um outro
mundo, não havia nenhum tipo
de relação. Havia pedido, na única manhã livre que tive, para rever, não a casa que habitei, porque
pensava que ela havia sido destruída, mas, em todo caso, a rua
na qual morei. O presidente da
República e sua comitiva haviam
se hospedado num hotel da rua
Augusta, numa extremidade da
avenida Paulista, e minha rua estava situada exatamente na outra
extremidade da avenida. Entrei
no carro e, durante toda a manhã,
em todas as horas de que eu dispunha, fiquei bloqueado nos engarrafamentos da avenida Paulista [risos]. Não tinha mais nenhuma relação com o que eu havia conhecido outrora.
Folha - Neste ano, é comemorado
também o 450º aniversário de São
Paulo. Em "Tristes Trópicos", o senhor diz que, aos seus olhos, a cidade nunca foi feia. Como o senhor
definiria São Paulo naquela época?
Lévi-Strauss - Era uma cidade,
que por certos ângulos, estava
ainda nos séculos 18 e 19. Sedutora e perturbadora era essa espécie
de mistura do resto do passado
colonial com um modernismo
que se desenvolvia à toda velocidade. E isso ainda combinava!
Folha - O senhor sente saudades
de algo do Brasil?
Lévi-Strauss - Claro que sinto
saudades do Brasil. É da natureza
que mais sinto falta.
Folha - Como o senhor vê, hoje, a
situação do Brasil?
Lévi-Strauss - É um outro país e
outro mundo, não tenho como
julgar. Hoje, não sou muito otimista em relação à atualidade do
mundo, mas, enfim, me abstenho
de fazer julgamentos. Sou pessimista, hoje, em comparação ao
mundo que eu conheci e que
amei. Esse, sei bem que acabou,
não existe mais. Um outro mundo vai tomar o seu lugar, um
mundo que eu não conhecerei.
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