São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

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ENTREVISTA

Luiz Werneck Vianna, do Iuperj, avalia que PT não enfrentará problemas estruturais do país no início do mandato

Fome Zero é "saída lateral", diz intelectual

Flávio Florido -14.out.02/Folha Imagem
No destaque, o cientista político Luiz Werneck Vianna (Iuperj), que crítica o Fome Zero do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva


LIA HAMA
DA REDAÇÃO

O Fome Zero, primeiro programa anunciado pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é uma "saída lateral", que não enfrenta os temas fundamentais do país, como a geração de empregos e a retomada do desenvolvimento. A avaliação é do cientista político Luiz Werneck Vianna, 64, professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).
De acordo com o cientista político, dados os constrangimentos do cenário atual, o debate de temas "sistêmicos" como o da reforma tributária e o da Previdência foram adiados e, em seu lugar, foram trazidas à tona questões como o combate à fome e à miséria - uma saída emergencial, mas que não vai ao ponto central das questões que envolvem o desenvolvimento do país.
"É um movimento tático", afirma Werneck Vianna. "Mas sabe-se que, mais à frente, o tema sistêmico estará presente e sobre ele alguma política vai ter que ser explicitada", diz o cientista político.
 

Folha - Em debate na reunião da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), o sr. defendeu que as candidaturas presidenciais rumaram para o centro e que não houve uma disputa de caminhos alternativos para o país. Que expectativa o sr. tem em relação ao governo Lula? Em que deve se diferenciar em relação ao governo FHC?
Luiz Werneck Vianna
- Antes mesmo de vencer, a candidatura Lula foi estabelecendo linhas de continuidade com o governo que ele vai suceder. Isso não foi resultado de um cálculo em março. Foram cálculos operados no curso da campanha para garantir a vitória num contexto de ordem, tranquilidade e paz. Há jornais que estão especulando que Armínio Fraga continuará no Banco Central. Mesmo se não for ele, quem ocupar o cargo não vai ser tão diferente dele. O que quer dizer o seguinte: o tema sistêmico foi adiado. Ele não vai ser o tema de 2003. O que teremos em 2003 é uma continuidade muito forte da agenda anterior e, nesse sentido, o tema da "mudança com segurança", que era o tema de Serra, será também o do Lula.

Folha - O fato de o primeiro programa anunciado pelo Lula ter sido o combate à fome não significa uma mudança de enfoque em relação ao governo FHC?
Werneck Vianna
- O tema da luta contra a fome não apareceu durante a campanha, só depois das eleições. Durante a campanha, discutiu-se emprego e retomada do desenvolvimento. Isto é, temas sistêmicos. Com Lula, esse tema foi se tornando evanescente. O programa contra a fome significa uma saída lateral, emergencial, uma saída possível numa hora em que os constrangimentos sistêmicos não estão permitindo maiores inovações. Frente a essas inovações tinha que estar sinalizada a retomada do desenvolvimento e do emprego. O programa lembra muito a estratégia do governo de [Anthony" Garotinho, do restaurante popular. É um combate à fome, mas que não vai ao ponto central.

Folha - Qual a viabilidade do pacto social proposto pelo PT?
Werneck Vianna
- Isso vai depender da arbitragem governamental. Getúlio Vargas realizou uma espécie de pacto social nos anos 30 no Brasil e a arbitragem disso era do Poder Executivo. Ele dizia: "a cafeicultura vai ganhar isso, mas vai perder aquilo. A industrialização virá, mas as oligarquias agrárias não perderão tudo. Os sindicatos terão leis sociais, mas os salários serão achatados". Qual foi a compensação que o Getúlio deu aos trabalhadores industriais à época? A legislação social. Qual foi o sacrifício que ele impôs a eles? A supressão da autonomia dos seus sindicatos e um achatamento salarial muito forte, fazendo com que o salário dos trabalhadores qualificados naquela época se aproximasse do salário dos trabalhadores não-qualificados, por meio da fixação do salário mínimo.

Folha - O sr. acha que um pacto como esse é viável hoje?
Werneck Vianna
- É complicado, vamos ver. Eles vão ter que ver o que cada um está disposto a perder e o que cada um quer ganhar. Porque só perdas, sem ganhos, não tornarão o pacto possível. Todos os que forem pactários estarão na expectativa de um ganho determinado. Agora é evidente que, na época de Getúlio, isso tudo era facilitado porque não havia liberdades políticas. Agora está tudo mais complicado. Vai haver muita dificuldade.
O PT tem que fazer o quê? Reforma da Previdência e tributária. Sabe-se que isso não pode ser feito com um só golpe. O que lhes restou foi jogar com a sua capacidade de mobilização para intervir nessa dimensão da fome, da miséria: "Já que não posso dar ganhos econômicos, dou ganhos de participação da sociedade e de diminuição da taxa de sofrimento a que ela está exposta".
É um movimento tático, eu diria. Mas sabe-se que, mais à frente, o tema sistêmico estará presente e sobre ele alguma política vai ter que ser explicitada. Que política vai ser essa? De uma mudança profunda ou de uma mudança segura. Eu penso que o caminho que está se colocando é o da mudança segura. E, nesse sentido, não vai ser difícil constatar elementos de continuidade entre o governo que começa e o governo que se encerra.

Folha - O sr. vislumbra alguma possibilidade de diminuição da desigualdade social num governo Lula? O tema receberá um enfoque maior do que teve no governo FHC?
Werneck Vianna
- Vislumbro. Porque, se isso não for feito, esse governo vai ter muitas dificuldades de se manter. As expectativas foram todas nessa direção. Isso não pode ser traído. A traição implicaria a perda do trunfo principal do qual esse governo é portador. Agora se você pensar, por exemplo, na questão da inflação. O governo Lula será fiador perante a população da estabilidade monetária. Se, além de [o governo] não criar empregos, a inflação voltar, a situação complica.
O econômico no governo Fernando Henrique foi uma forma de realizar a política do social. Como? Na luta antiinflacionária, que teve efeito distributivo em relação ao conjunto da população, que era a grande penalizada com a corrosão da moeda. Agora essa política encaminhava o social de um modo passivo e no interior do tema econômico.
O que o governo Lula está fazendo é encaminhar o social na sua dimensão própria. Qual é o risco? O risco é o de não traduzir as pressões que vêm do social num programa de ação política e de ação econômica e amesquinhar o social num assistencialismo. Esse é o risco.


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