São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2008

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Os muitos movimentos negros


PARA ANTROPÓLOGOS, ATIVISMO NÃO É MERA CÓPIA DOS EUA

MARCIO GOLDMAN
ANA CLAUDIA CRUZ DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os grupos constituídos por diferentes formas de identificação racial no Brasil exibem uma multiplicidade de estruturas, objetivos, estratégias e modos de pertencimento. Pode-se, pois, imaginar que o número de participantes em movimentos negros até ultrapasse os 6% entre os "pretos" que declaram tal participação, segundo o Datafolha.
Índice próximo dos 7% e 11% de brasileiros que dizem participar de sindicatos ou partidos políticos.
Reunir tais coletivos sob a rubrica de movimento negro é possível se levarmos o primeiro termo quase ao pé da letra: grupos e pessoas que se "movem" na direção de uma vida mais digna e criativa. Movimento de resistência, na medida em que se busca escapar de um destino atribuído por uma estrutura social injusta.
Nesse sentido, quilombos, movimentos abolicionistas, juntas de alforria, irmandades religiosas, entre outras formas de organização do período escravocrata, são movimentos negros. Do mesmo modo, as várias organizações negras (jornais, clubes de lazer, associações etc.) do período pós-abolição, como a Frente Negra Brasileira, as quais, além de denunciar o racismo, se preocupavam com a educação, a formação profissional, o comportamento social e a autovalorização da população negra buscando sua integração.
Como se sabe -a despeito de todas as expectativas de integração e de toda a exaltação do Brasil como país miscigenado e racialmente democrático-, o racismo sobreviveu à abolição.
Entre as ditaduras, houve uma retração das organizações negras, mas não da luta. Abdias do Nascimento e seu Teatro Experimental do Negro são exemplo disso. Contudo, outras formas de resistência continuaram a existir, entre elas as religiões de matriz africana, os afoxés, os grupos "folclóricos" ou "artísticos", organizações que preservaram a singularidade e a multiplicidade negras.

Novo movimento
Nos anos 1960 e 1970, as influências foram inúmeras -e inevitáveis, uma vez que havia em comum a luta contra o racismo: do movimento pelos direitos civis nos EUA à luta contra o apartheid na África do Sul, passando pelas lutas anticolonialistas dos países africanos, a chegada do reggae ao Brasil, a contracultura, a maior visibilidade do candomblé, os bailes de soul music, a política de universalização do ensino (que levou mais jovens negros à escola e à universidade) e assim por diante.
Tudo isso se cruzou com as correntes preexistentes, forjando as forças que estiveram na origem desse novo movimento negro. Característica desse movimento surgido na década de 1970 é seu foco na diferença, visando demonstrar que o problema da população negra não pode ser reduzido a uma questão de classe social, e que um racismo propriamente dito permeia a sociedade brasileira; que é preciso superar o "mito da democracia racial" e que a condição de ser negro comporta problemas específicos, exigindo, portanto, direitos específicos.
Nessa década, emergem organizações negras muito diferenciadas, de grupos de teatro e dança aos blocos afro e movimentos políticos, como o MNU (Movimento Negro Unificado), entre outros, que permanecem atuantes.
Mas, desde então, o movimento negro tem se tornado ainda mais plural: pré-vestibulares para negros, pastorais afro, associações quilombolas, núcleos de estudantes negros, grupos de cultura negra, núcleos de estudo, jornais e sites, organizações não-governamentais, hip hop e funk etc.
Ao lado de todas as lutas e conquistas, o movimento negro brasileiro não pára de mostrar como é possível combinar experiências passadas, presentes e futuras, locais, nacionais e internacionais, a fim de produzir, numa espécie de encruzilhada, uma singularidade plural capaz de resistir às incontáveis tentativas de destruição ou de captura de que é objeto.


MARCIO GOLDMAN é professor de antropologia do Museu Nacional, UFRJ, e autor de "Como Funciona a Democracia - Uma Teoria Etnográfica da Política" (ed. 7Letras)

ANA CLAUDIA CRUZ DA SILVA é professora visitante de antropologia na Universidade Federal de Sergipe e autora da tese "Agenciamentos Coletivos, Territórios Existenciais e Capturas -Uma Etnografia de Movimentos Negros em Ilhéus"


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