São Paulo, sábado, 26 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BARRA DO TURVO - SUDESTE

MARIO CESAR CARVALHO
enviado especial a Barra do Turvo

A política social de FHC passa uma semana a cada mês na casa de Celestina Alves Belemer, 50. É o quanto dura a cesta básica que ela recebe do Comunidade Solidária em Barra do Turvo, a mais miserável das cidades paulistas.
Assim que acaba a cesta, a família volta à rotina feroz de luta pela sobrevivência: João, seu marido, um genro e cinco filhos têm de fazer o roçado de feijão e milho às escondidas, porque vivem em um parque estadual. Carne tem, mas pode levar à prisão, porque é de caça. O caçula até enjoou de carnes que levariam um gourmet ao êxtase, como a de saracura. "Bom mesmo é frango", diz Gabriel, 7.
Dinheiro é quase uma miragem. Celestina diz que há dois anos não vê uma nota de real entrar na casinha de pau-a-pique coberta com folhas de palmeira, distante uma hora e meia a pé da BR-116. Tudo ali funciona à base da troca.
Barra do Turvo, a 320 km de São Paulo, na divisa com o Paraná, criou uma nova categoria de miséria -a miséria ecológica. Lá, quase um terço da população (31%) vive na linha da indigência, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Só para comparar: na cidade de São Paulo, a taxa de indigência é de 6,3%.
Barra do Turvo adicionou à miséria secular do Vale do Ribeira o pauperismo criado para preservar o Parque de Jacupiranga, uma das maiores reservas de mata atlântica do país: 80% da área do município fica dentro do parque; 4.500 dos 7.124 moradores vivem em áreas teoricamente intocáveis.
O contraste entre a opulência da natureza e a miséria humana é chocante. O parque tem 30 cachoeiras, espécies como a onça pintada e o papagaio de peito roxo e pessoas como Joanita Lima de França, mãe de sete filhos, cuja renda anual não passa de R$ 120.
A única política social do governo que chega à casa de Joanita é a cesta básica. "A cesta dura uns oito dias. Antes, a gente não passava fome porque se virava com a mata. A cesta é uma ajutório, mas nossa vida continua a mesma", conta.
A história de Celestina e Joanita se repete como ladainha, até no prazo de duração da cesta -sete, oito dias. Depois, eles "se viram com a mata": catam palmito, caçam e plantam num dos últimos pedaços intocados da mata atlântica. Todos saem perdendo no embate entre os miseráveis e a Polícia Florestal.
A miséria se perpetua porque qualquer atividade econômica no parque é clandestina; como não podem produzir nada, os moradores depredam a mata.
Nordeste brasileiro

Quase nada mudou com a criação do Comunidade Solidária, segundo o prefeito de Barra do Turvo, Erivelton Bittencourt (PMDB). Ao contrário. A mortalidade infantil cresceu de 21,4 por 1.000 nascidos em 1994 para 51,3 em 1997. "Nunca tinha visto pobreza como essa daqui", diz o prefeito, que nasceu em Barra Velha (SC). "Aqui é o Nordeste de São Paulo".
A miséria ali se retroalimenta. A prefeitura poderia participar de 16 programas do Comunidade Solidária, mas só se inscreveu em dois: o da cesta básica, que beneficia 454 famílias, e o Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar).
O incentivo à agricultura familiar, uma linha de crédito com juros baixos, exemplifica o beco sem saída em que a cidade foi colocada com a criação do parque em 1969 e a dificuldade de fazer os benefícios sociais chegarem aos mais miseráveis. Como a maioria dos sítios da cidade está no parque, quase ninguém tem título da terra -e não tem acesso ao dinheiro do Pronaf.
Quando o dinheiro chega, como R$ 7 mil que receberam para criar uma usina de leite, beneficia os mais remediados. A ajuda aos miseráveis é dificultada pela legislação ambiental, segundo o prefeito.
É proibido construir escolas e postos de saúde no parque. Por causa do veto, Barra do Turvo tem um padrão de mortalidade similar ao do Nordeste.
"Isso indica que o pré-natal não existe, que as mães demoram para chegar à maternidade e que a maternidade não funciona direito", diz Sandra Kennedy Viana, da diretoria de planejamento da Divisão Regional de Saúde do Vale do Ribeira. O hospital mais próximo está a 130 km de Barra do Turvo.
Barra do Turvo sobrevive do chamado ICMS Ecológico, a fatia de 0,5% do imposto sobre circulação de mercadorias que é repassada para municípios com áreas preservadas. São R$ 96 mil por mês. Não sobra quase nada. Para tocar um programa de renda mínima, a cidade teria de desembolsar R$ 10 mil ao mês. "Renda mínima é o nosso sonho, mas não temos esse dinheiro", diz o prefeito.
O presidente do Sindicato Rural de Barra do Turvo, Henrique Barbosa, acha que há pelo menos três saídas para a cidade: programas de geração de renda, ecoturismo e mudança na legislação ambiental.
Todos concordam com a receita, mas quase nada é feito. Para atrair turistas, a prefeitura está fazendo uma rampa de asa-delta nas montanhas. É tudo. A solução, segundo Barbosa, seria transformar os moradores em guardas do parque, como ocorre no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí.
Até especialistas em meio ambiente defendem uma flexibilização da legislação para enfrentar a miséria. Hoje, os moradores não podem fazer manejo de palmito na área do parque, nem com técnicas que não destroem a natureza.
"Deveriam pensar uma brecha na legislação. Há situações que exigem ousadia", diz Clayton Ferreira Lino, diretor-técnico do Conselho Nacional da Reserva de Biosfera da Mata Atlântica. A única ousadia que Barra do Turvo conheceu até agora foi a da miséria.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.