São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997.

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Lesão será irreparável

ITAMAR FRANCO
Não existe, em minha opinião, como cidadão, ou como homem público, argumento que justifique a venda da Companhia Vale do Rio Doce.
Em primeiro lugar, porque a Vale não é apenas uma empresa. É fator fundamental para a preservação, em mãos brasileiras, de um mínimo de poder de barganha para que possamos sentar, no início do próximo século, à mesa dos grandes países no momento de se estabelecer uma nova "ordem mundial".
A Vale, além de dominar o ciclo da produção, tem posição estratégica no mundo em relação à comercialização de seus acervos. Nessa condição, vem contribuindo para evitar o agravamento do déficit da balança comercial e ninguém garante que o setor privado seguirá a mesma lógica.
Privatizada a Vale, vigorará a Lei das Vantagens Comparativas, ou seja, tudo aquilo que puder ser transferido para o exterior em condições mais vantajosas será imediatamente desativado no Brasil. O interesse da Nação cederá passo à busca do lucro empresarial.
A Vale não dá e nunca deu prejuízo. Ao longo do tempo, a Vale tem produzido significativos rendimentos para a União, compensando, no campo econômico, a decisão estratégica que presidiu a sua fundação, de se dotar o país de um instrumento fundamental para o levantamento e o aproveitamento de nossos recursos minerais.
Se não teve lucratividade maior é porque o seu estatuto prevê o reinvestimento de até 40% do lucro líquido para a expansão de suas atividades.
Essa causa, que será revogada para assegurar aos novos proprietários a maximização dos lucros, foi responsável pelo histórico desempenho da companhia, pela manutenção de seu papel de importante agente do desenvolvimento nacional nas áreas em que atua e pela garantia de preços e de condições mais favoráveis para a venda de nossos produtos no mercado externo.
Argumentam, também, os que defendem a privatização, que faltam recursos estatais para capitalizar a empresa.
A Vale, com a força que lhe confere a posição de maior exportadora mundial de minério de ferro e de uma das maiores companhias de mineração do mundo, atuando em setores que vão do transporte à celulose, mostrou-se capaz de captar, nos mercados interno e externo, os recursos necessários à sua expansão.
E para isso, fez inúmeras parcerias, nunca faltando quem estivesse disposto a ela se associar para participar do desenvolvimento e exploração das províncias minerais descobertas por técnicos brasileiros a serviço da Docegeo.
Finalmente, é preciso rebater uma colocação que se tornou comum quando se trata de privatizações: o erário precisa usar os recursos da venda para abater a dívida pública e ter condições de voltar a exercitar suas atribuições.
Ora, o produto total da venda da estatal não paga o serviço da dívida pública nem sequer por dois meses, e os recursos pelos quais será transferido o controle, da ordem de US$ 3 bilhões, são praticamente equivalentes ao que se gastou, em dinheiro vivo, no processo de liquidação de um único dos bancos beneficiados pelo Proer, o Bamerindus.
Ou seja, o controle da Vale e o futuro do Brasil na área mineral e no mercado mundial de matérias-primas como o ouro, o urânio, a celulose, o manganês, o minério de ferro, sem contar centenas de milhares de hectares de florestas, além de ferrovias, portos e navios, estão sendo vendidos por cerca de 10% do que custou o Proer até agora. Isso não é economia. É um insulto à inteligência da Nação.
A Vale é uma usina de tecnologia e conhecimento. Ela tem o "mapa da mina" das riquezas minerais do país. É uma empresa respeitada, com peso para enfrentar, frente a frente, qualquer outra empresa no mercado mundial.
Se a Vale foi e continua sendo uma agência vital de desenvolvimento, se teve e continua tendo papel relevante na produção científica e intelectual, se é um dos poucos instrumentos de que dispomos para influir nos mercados globalizados em defesa dos interesses nacionais, se vem sendo eficiente e lucrativa, resta a indagação: que insondáveis motivos justificam sua venda?
Essa é uma pergunta que a história não deixará de responder. Se Deus quiser, ainda na nossa geração. A venda da Vale não é só um erro. É uma lesão irreparável ao Brasil.


Itamar Franco, 66, foi presidente da República de dezembro de 92 a dezembro de 94

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