São Paulo, quinta, 27 de novembro de 1997.



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RESUMINDO
"A Relíquia" é a obra mais fantasista de Eça

ROGÉRIO HAFEZ
especial para a Folha

"A Relíquia" (1887) é uma das obras mais divertidas e irreverentes de Eça de Queirós. O autor, como se sabe, se definia como um representante da escola Realista-Naturalista. Porém, como destacou Jorge Luis Borges (grande admirador do escritor português), o realismo de Eça não exclui o quimérico e o sarcástico, o que é muito relevante para a fase derradeira de sua obra, à qual pertence "A Relíquia", quando a visão objetiva do mundo se une ao espírito da liberdade e da fantasia.
"A Relíquia" é considerada, junto à fábula "O Mandarim", a obra mais fantasista de Eça. Entretanto, nela se faz uma crítica e uma sátira aguda do catolicismo em Portugal, por meio das memórias hilariantes do narrador Teodorico Raposo, o "Raposão" (como as mulheres o chamam). Raposo é um jovem bacharel que, órfão, vive sob as ordens de Maria do Patrocínio, sua tia terrível e avara, casta e beatíssima, que controla a fortuna que o sobrinho espera herdar, em breve, com a morte da "Titi". Sabendo que "há razões de família como há razões de Estado", Raposo finge grande devoção e cumpre o desejo da tia, que, preocupada com a saúde incerta, o envia como seu representante na missão religiosa de percorrer a Terra Santa.
Na companhia de Topsius, um caricaturesco arqueólogo alemão que vem a conhecer, Raposo vive grandes peripécias no Egito e na Palestina. A maior delas é uma enigmática viagem ao passado, à antiga Jerusalém, que ocupa o centro do livro. Nessa viagem-sonho, Raposo assiste aos bastidores do martírio de Cristo e descobre "a lenda inicial do cristianismo": a ressurreição não ocorreu.
O livro se encerra com outro desmascaramento, o do próprio Raposo pela "Titi". Enganando-se no momento de entregar à tia a preciosa relíquia que trouxera (a coroa de espinhos de Cristo, que forjara com Topsius), Raposo lhe entrega outra relíquia, um embrulho com a camisola de Miss Mary, uma prostituta que conhecera em Alexandria. Ao final do livro, Raposo conclui que perdera a herança da tia por não ter tido a coragem de afirmar: "Eis aí a relíquia! É a camisa de Maria Madalena!" (aludindo às iniciais "M.M." que, num bilhete, a acompanhavam).
Como é comum em Eça, há no livro cenas simbólicas, cuja função é a de explicitar as teses do autor. Eça não aceitava o cristianismo como afirmação do sobrenatural, isto é, "a idéia de um deus transcendente que criou o universo" (A. Saraiva).
Em "A Relíquia", é o próprio Cristo quem o afirma a Raposo, ao final do livro: "Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro Deus criado pelos homens (...) Sou anterior aos deuses transitórios: eles dentro em mim nascem, dentro em mim duram; dentro em mim se transformam (...) Chamo-me a Consciência".


Rogério Hafez é tradutor e colaborador do curso Objetivo.



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