São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Neurologia

Olho na nuca

por Miguel Nicolelis

Todo brasileiro que já pisou em qualquer terra além das fronteiras nacionais sabe que não há como escapar da fama do nosso futebol. Da Mongólia às Ilhas Malvinas, não há quem ignore as jogadas, os passes, os dribles e os gols que ajudaram a compor, ao longo dos últimos cem anos, a grande poesia épica nacional. Esses moleques de nomes diminutivos, os Inhos, os Zinhos, todos os Ronaldinhos, conquistaram a admiração do planeta, armados apenas com chuteiras, cinturas cheias de ginga, e um permanente desejo de envergonhar goleiros argentinos. Tudo isso é mais do que sabido. Agora, o que poucos sabem é que o futebol brasileiro também deixou sua marca nos anais da ciência mundial. Acredite se quiser, mas Pelé, num dos momentos mais inesquecído futebol brasileiro, ajudou a descrever ao mundo as maravilhas que o cérebro humano é capaz de realizar. Parece conversa de pescador, mas não é. Tudo começou numa tarde como outra qualquer, na pequena cidade de Durham, situada no estado da Carolina do Norte, na Costa Leste dos Estados Unidos. Mais ou menos cinco anos atrás, eu recebi um daqueles telefonemas que todo cientista sonha receber. Do outro lado da linha, para meu espanto completo, cumprimentava-me o editor da mais importante e tradicional revista científica do mundo, a quase inatingível "Nature". Falando com um sotaque londrino miserável de entender, o tal editor foi direto ao assunto: "Miguel, estou ligando para encomendar um artigo que descreva os ultimos avanços das pesquisas que um dia vão permitir que seres humanos controlem próteses mecânicas e outras ferramentas, somente usando a atividade de seus cérebros. Para atrair a atenção dos nossos leitores para esse assunto, nós gostaríamos que você iniciasse esse artigo com a descrição de algum feito da humanidade que simboliza toda a riqueza do cérebro humano, toda a magia que uma tempestade elétrica neural pode desencadear. Uma ópera de Verdi, uma pintura de Picasso, algo assim. Escolha." Desnecessário dizer que a encomenda foi aceita imediatamente. O que o editor da "Nature", porém, não esperava é que a introdução do artigo que ele encomendou começasse mais ou menos assim: "Depois do arremesso lateral perfeito de Tostão, um simples toque do pé mágico de Rivelino foi suficiente para dirigir a bola em seu vôo livre pelo ar rarefeito do gigante estádio Azteca, na Cidade do México. Enquanto aquele imaculado objeto branco, carregando todo um povo em seus gomos de couro, voava em direção a pequena área, a torcida colorida, que se aglomerava nas arquibacadas, comecou lentamente a se erguer, em antecipação. Eles vibravam, já celebrando, pois todos haviam testemunhado aquela cena mais de mil vezes: o mesmo maravilhoso homem negro, vestindo seu calção azul e sua camisa amarela com um grandioso número 10, preparava-se para desafiar a lógica e tirar um sarro com todas as leis da física. A celebração antecipada tinha razão de ser. Como esperado, Pelé simplesmente flutuou, por sobre toda a defesa italiana, tal qual beija-flor sobrevoa mais uma flor, para encontrar a sua eterna amada no meio do ar, e com um carinhoso beijo de amor, mudar sua trajetória rumo ao gol. O Brasil marcava o primeiro dos seus quatro gols na final da Copa de 1970 e todo um país se preparava para sair às ruas e comecar a dançar." A construção dessa obra de arte futebolística, que marcou o centésimo gol do Brasil em Copas e entrou para a história da nossa espécie, ilustra o vasto repertório de sinfonias que o cérebro é capaz de compor. Talvez a mais impressionante dessas dádivas da natureza seja a nossa capacidade de relembrar a multitude de emoções que cruza a nossa mente durante um segundo de pura alegria, muitas décadas atrás, quando, como criança, a gente aprendeu que em dia de Copa, todo o mundo ao redor parece estar vestido de verde-amarelo.


Miguel Nicolelis, 45, é médico, doutor em fisiologia pela USP, palmeirense, e dirige o Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke (EUA), o Centro de Neuropróteses da Escola Politécnica Federal de Lausanne (Suíça) e o projeto do Instituto Internacional de Neurociência de Natal

Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Música - Lúcio Ribeiro: Tocando e cantando, um conjunto afinado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.