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Neurologia
Olho na nuca
por Miguel Nicolelis
Todo brasileiro que já pisou em qualquer terra
além das fronteiras nacionais sabe que não há como
escapar da fama do nosso futebol. Da Mongólia às Ilhas Malvinas, não há quem ignore as
jogadas, os passes, os dribles e
os gols que ajudaram a compor,
ao longo dos últimos cem anos,
a grande poesia épica nacional.
Esses moleques de nomes diminutivos, os Inhos, os Zinhos,
todos os Ronaldinhos, conquistaram a admiração do planeta,
armados apenas com chuteiras, cinturas cheias de ginga, e
um permanente desejo de envergonhar goleiros argentinos.
Tudo isso é mais do que sabido. Agora, o que poucos sabem
é que o futebol brasileiro também deixou sua marca nos
anais da ciência mundial. Acredite se quiser, mas Pelé, num
dos momentos mais inesquecído futebol brasileiro, ajudou a
descrever ao mundo as maravilhas que o cérebro humano é
capaz de realizar. Parece conversa de pescador, mas não é.
Tudo começou numa tarde
como outra qualquer, na pequena cidade de Durham, situada no estado da Carolina do
Norte, na Costa Leste dos Estados Unidos. Mais ou menos
cinco anos atrás, eu recebi um
daqueles telefonemas que todo
cientista sonha receber.
Do outro lado da linha, para
meu espanto completo, cumprimentava-me o editor da
mais importante e tradicional
revista científica do mundo, a
quase inatingível "Nature".
Falando com um sotaque
londrino miserável de entender, o tal editor foi direto ao assunto: "Miguel, estou ligando
para encomendar um artigo
que descreva os ultimos avanços das pesquisas que um dia
vão permitir que seres humanos controlem próteses mecânicas e outras ferramentas, somente usando a atividade de
seus cérebros. Para atrair a
atenção dos nossos leitores para esse assunto, nós gostaríamos que você iniciasse esse artigo com a descrição de algum
feito da humanidade que simboliza toda a riqueza do cérebro humano, toda a magia que
uma tempestade elétrica neural pode desencadear. Uma
ópera de Verdi, uma pintura de
Picasso, algo assim. Escolha."
Desnecessário dizer que a
encomenda foi aceita imediatamente. O que o editor da
"Nature", porém, não esperava
é que a introdução do artigo
que ele encomendou começasse mais ou menos assim:
"Depois do arremesso lateral
perfeito de Tostão, um simples
toque do pé mágico de Rivelino
foi suficiente para dirigir a bola
em seu vôo livre pelo ar rarefeito do gigante estádio Azteca, na
Cidade do México. Enquanto
aquele imaculado objeto branco, carregando todo um povo
em seus gomos de couro, voava
em direção a pequena área, a
torcida colorida, que se aglomerava nas arquibacadas, comecou lentamente a se erguer,
em antecipação. Eles vibravam,
já celebrando, pois todos haviam testemunhado aquela cena mais de mil vezes: o mesmo
maravilhoso homem negro,
vestindo seu calção azul e sua
camisa amarela com um grandioso número 10, preparava-se
para desafiar a lógica e tirar um
sarro com todas as leis da física.
A celebração antecipada tinha
razão de ser. Como esperado,
Pelé simplesmente flutuou,
por sobre toda a defesa italiana,
tal qual beija-flor sobrevoa
mais uma flor, para encontrar a
sua eterna amada no meio do
ar, e com um carinhoso beijo de
amor, mudar sua trajetória rumo ao gol. O Brasil marcava o
primeiro dos seus quatro gols
na final da Copa de 1970 e todo
um país se preparava para sair
às ruas e comecar a dançar."
A construção dessa obra de
arte futebolística, que marcou
o centésimo gol do Brasil em
Copas e entrou para a história
da nossa espécie, ilustra o vasto
repertório de sinfonias que o
cérebro é capaz de compor.
Talvez a mais impressionante dessas dádivas da natureza
seja a nossa capacidade de relembrar a multitude de emoções que cruza a nossa mente
durante um segundo de pura
alegria, muitas décadas atrás,
quando, como criança, a gente
aprendeu que em dia de Copa,
todo o mundo ao redor parece
estar vestido de verde-amarelo.
Miguel Nicolelis, 45, é médico, doutor em fisiologia pela USP, palmeirense, e dirige o Centro de
Neuroengenharia da Universidade Duke (EUA),
o Centro de Neuropróteses da Escola Politécnica
Federal de Lausanne (Suíça) e o projeto do Instituto Internacional de Neurociência de Natal
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