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Filosofia
Mais futebol menos Prozac
por Marcos Nobre
Juntar Futebol e Filosofia é
matéria de Missão Impossível. Qualquer um que tenha um pouco de familiaridade
com esses dois mundos sabe
que os 2.500 anos da filosofia
que nasceu na Grécia Antiga
ainda são insuficientes para explicar o futebol. A esperança
dos otimistas que estão no ramo (bem poucos) é a de que
possamos, nos próximos 2.500
anos, construir conceitos capazes de dar conta do fenômeno
ludopédico. Por enquanto, tentamos uma tabelinha aqui, outra acolá. O que está de acordo
com a máxima filosófica clássica segundo a qual quem não
consegue explicar, pelo menos
deve tentar uma tabelinha.
Em homenagem ao país-sede da Copa de 2006, fizemos
aqui uma mesa-redonda apenas com filósofos de língua alemã. O que comprova mais uma
vez a recomendação de Caetano Veloso: se você tiver uma
idéia, deixe para depois da Copa. "Mas, peraí, estou vendo
que tem Platão e Aristóteles.
Eles escreveram em grego, não
em alemão!". Rapaz, não é que
você tem razão?
A Torcida; ou: Primeiro
Motor (Aristóteles,
384-322 a.C.)
Para que a bola se mova, ela
tem de ser movida. Para que a
bola se mova, o jogador tem de
movê-la. Para que o jogador se
mova, ele tem de ser movido. O
que move o jogador? O desejo
da vitória. Mas a vitória é apenas uma etapa do campeonato.
E o campeonato é apenas uma
etapa da realização da felicidade da torcida. O que o move a
bola tem de ser algo que não se
move, tem de ser algo que a tudo move sem ser ele mesmo
movido. Esse algo, o Primeiro
Motor, é a Torcida.
Vitória Moral; ou: O
Mundo das Idéias (Platão, 427-347 a.C.)
O jogo que vemos não é o jogo
real. O torcedor sempre compara o jogo que vê ao jogo perfeito. O jogo perfeito não é este
ou aquele jogo, mas a idéia de
jogo. Na idéia de jogo, não há
acaso, não há sorte nem azar:
no jogo perfeito, a melhor equipe sempre vence. Mas o torcedor sabe, e como, que o acaso e
sorte determinam o destino de
inúmeras partidas e campeonatos. Por isso, o torcedor sabe
bem o que é uma Vitória Moral:
a vitória do acaso sobre a idéia
de um jogo perfeito. Mas ele sabe também que a vitória do acaso nunca pode ser uma verdadeira vitória. A única vitória
real é a vitória da idéia de jogo.
Lançamento em Profundidade; ou: A Práxis
(Karl Marx, 1818-1883)
Todo dia a gente vê o jogo sair
amarrado, truncado. Com o
tempo, cria-se a ilusão de que o
jogo se resume a levar a bola de
um lado para o outro, sem outro propósito senão a troca, a
troca de passes. Como se tocar
bola fosse um fim em si mesmo.
Passa o tempo e parece natural
que nada aconteça, que tudo seja assim mesmo. E tudo acaba
ficando como está. Só que não
tem nada pior do que tudo ficar
como está. Nesses momentos,
surge aquela jogada que descortina o sentido último do jogo, aquela jogada que, de longa
distância, aponta o caminho,
mostra a direção, dá o rumo. É o
lançamento em profundidade.
Só que é difícil de fazer. E mais
difícil ainda de receber.
(Uma homenagem a João
Saldanha)
Futebol de Resultados;
ou: A Razão Instrumental (Max Horkheimer,
1895-1973, e Theodor
W. Adorno, 1903-1969)
Tem vezes em que a situação
é crítica. Não é só o jogo que está truncado, amarrado. É o próprio campeonato que está sem
perspectivas. É quando domina
a idéia de que vencer o campeonato é o único objetivo, quando
só importam os meios para alcançar esse fim. Aí o jogo fica
feio, sem brilho. Às vezes chega
mesmo a descambar para o
pontapé, a intimidação e a falcatrua. Até o torcedor se convence de que o jogo não importa, só o resultado. O futebol
bem jogado passa a ser coisa de
"românticos", de "saudosistas", de "sonhadores avoados".
Nesses momentos, em que parece que todo mundo está dominado pelo instrumentalismo
do resultado, há quem defenda
que não há outra maneira de
resistir senão fazendo W.O.
Futebol-arte; ou: O Juízo Reflexionante Estético (Immanuel Kant,
1724-1804)
Tem momentos em que a
gente esquece que o objetivo é
marcar gol. Não porque o jogo
esteja ruim, pelo contrário. Os
times jogam tão bonito que o
gol parece adjetivo, secundário.
O gol vira uma finalidade sem
fim, um objetivo que parece
orientar todo o jogo, mas, no
fundo, é só um pretexto para fazer algo bonito. É um jogar sem
utilidade nem interesse. É um
prazer ligado unicamente a
uma mistura livre de imaginação e objetividade sem objetivo. É arte.
(Para lembrar Telê Santana)
Quem não faz toma; ou:
O Princípio de Razão
Suficiente (G. W. Leibniz, 1646-1716)
É possível tomar gol sem fazer nenhum no adversário. É
possível fazer gol sem deixar
vazar a sua própria defesa. Não
há como demonstrar que haja
uma relação causal necessária
entre fazer e tomar gol, como se
fosse uma demonstração geométrica, exata. Mas também
nada impede que haja uma relação entre as duas coisas. Pensando bem, é uma relação bastante razoável. Dá até para dizer mais, dá para dizer que é o
que mais acontece nessa vida:
não fazer gols é razão mais que
suficiente para tomá-los.
Quem não faz toma II;
ou: O Eterno Retorno do
Mesmo (Friedrich
Nietzsche, 1844-1900)
Por mais numerosos que sejam os jogadores, os times e os
campos, por mais táticas, a
combinação total das situações
futebolísticas possíveis não é
infinita. Logo, elas tendem a se
repetir indefinidamente. Daí
aquela sensação que temos,
tantas vezes, quando nosso time insiste em perder gols feitos, a bola bate na trave, o goleiro adversário faz milagres:
mesmo que esteja jogando
muito pior, o outro time vai fazer um gol na primeira oportunidade, e vai nos tirar do campeonato. Como diria um célebre filósofo da bola, "estava escrito há dez mil anos".
(Em homenagem a Nelson
Rodrigues)
O Pênalti; ou: A Angústia (Martin Heidegger,
1889-1976)
Pênalti é Angústia. Pode significar a derrota ou a vitória, seja em uma simples pelada, seja
em final de uma Copa do Mundo. Pode consagrar um goleiro
ou relegá-lo ao esquecimento.
Pode levar um jogador ao estrelato ou desgraçá-lo sem apelação. É aquela fração de segundo
que poderia ter sido diferente,
mas não foi. Aquele momento
em que nos vemos diante do
nada, diante da impossibilidade possível da existência. Todas
as projeções que fazemos em
direção ao passado ou ao futuro
desvelam unicamente a angústia de existir aqui e agora. Não
há como afastar essa angústia.
Pênalti é Destino.
A Regra É Clara; ou: O
Jogo de Linguagem
(Ludwig Wittgenstein,
1889-1951)
A gente consegue jogar quando entende a regra. Mas seguir
a regra já é jogar, de modo que a
gente aprende a regra jogando.
Quando alguém pára o jogo e
diz: "Foi falta!", começa aquela
confusão de saber qual é a regra, se a regra se aplica àquele
caso ou não e assim vai. A confusão significa que todo mundo
entende a regra, senão não haveria discussão. Por outro lado,
se há discussão, é porque não
existe essa história de que a regra é clara. A regra é inventada
e reinventada a cada vez que alguém a invoca. O problema é
que inventaram esse tal de juiz
para dizer: "A regra é clara!", e
encerrar a discussão. Bom, talvez não seja lá uma má idéia, já
que não dá para passar 90 minutos naquela discussão chata
de pelada sem juiz. Mas que a
regra não é clara, lá isso não é.
Bom, talvez seja. É, vai começar
a discussão de novo.
Visão de Jogo; ou: A
Consciência Filosófica
(G. W. F. Hegel, 1770-1831)
Há dois tipos de jogadores, os
com visão e os sem visão de jogo. O jogador comum, sem visão de jogo, não pensa a jogada
para além do próximo toque de
bola. Para esse jogador ingênuo, só o que existe é o aqui e
agora desta jogada. Ele não
pensa nas armações táticas e
nos desenhos possíveis de jogadas que podem surgir dessas
armações. Por mais que uma
jogada dê errado, esse jogador
natural vai repeti-la e repeti-la
até cansar porque não consegue ver nada além do pequeno
espaço de campo que ocupa naquele momento. O jogador com
visão de jogo enxerga o sentido
profundo das jogadas repetitivas do jogador comum, enxerga
o sentido de cada uma das jogadas e a posição de cada uma na
lógica do jogo como um todo.
Ele enxerga no erro um resultado positivo, retira a lição de cada jogada frustrada e vê essa lição se transformar na jogada
seguinte. É um jogador filósofo.
E a verdadeira utopia do futebol é fazer de cada jogador comum um jogador filósofo.
Jogar em Equipe
Marcos Nobre é professor de
filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap. O bate-bola aí
em cima contou com a participação de: Marisa Lopes (professora de filosofia da Escola de
Sociologia e Política de São
Paulo), José Carlos Estêvão
(professor de filosofia da USP),
Fernando Costa Mattos (doutorando em filosofia pela USP),
Luiz Repa (professor de filosofia da Uninove e membro do
Núcleo Direito e Democracia
do Cebrap), e Maurício Keinert
(doutorando em filosofia pela
Usp e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap).
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