São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

Texto Anterior | Índice

Filosofia

Mais futebol menos Prozac

por Marcos Nobre

Juntar Futebol e Filosofia é matéria de Missão Impossível. Qualquer um que tenha um pouco de familiaridade com esses dois mundos sabe que os 2.500 anos da filosofia que nasceu na Grécia Antiga ainda são insuficientes para explicar o futebol. A esperança dos otimistas que estão no ramo (bem poucos) é a de que possamos, nos próximos 2.500 anos, construir conceitos capazes de dar conta do fenômeno ludopédico. Por enquanto, tentamos uma tabelinha aqui, outra acolá. O que está de acordo com a máxima filosófica clássica segundo a qual quem não consegue explicar, pelo menos deve tentar uma tabelinha.
Em homenagem ao país-sede da Copa de 2006, fizemos aqui uma mesa-redonda apenas com filósofos de língua alemã. O que comprova mais uma vez a recomendação de Caetano Veloso: se você tiver uma idéia, deixe para depois da Copa. "Mas, peraí, estou vendo que tem Platão e Aristóteles. Eles escreveram em grego, não em alemão!". Rapaz, não é que você tem razão?

A Torcida; ou: Primeiro Motor (Aristóteles, 384-322 a.C.)

Para que a bola se mova, ela tem de ser movida. Para que a bola se mova, o jogador tem de movê-la. Para que o jogador se mova, ele tem de ser movido. O que move o jogador? O desejo da vitória. Mas a vitória é apenas uma etapa do campeonato. E o campeonato é apenas uma etapa da realização da felicidade da torcida. O que o move a bola tem de ser algo que não se move, tem de ser algo que a tudo move sem ser ele mesmo movido. Esse algo, o Primeiro Motor, é a Torcida.

Vitória Moral; ou: O Mundo das Idéias (Platão, 427-347 a.C.)

O jogo que vemos não é o jogo real. O torcedor sempre compara o jogo que vê ao jogo perfeito. O jogo perfeito não é este ou aquele jogo, mas a idéia de jogo. Na idéia de jogo, não há acaso, não há sorte nem azar: no jogo perfeito, a melhor equipe sempre vence. Mas o torcedor sabe, e como, que o acaso e sorte determinam o destino de inúmeras partidas e campeonatos. Por isso, o torcedor sabe bem o que é uma Vitória Moral: a vitória do acaso sobre a idéia de um jogo perfeito. Mas ele sabe também que a vitória do acaso nunca pode ser uma verdadeira vitória. A única vitória real é a vitória da idéia de jogo.

Lançamento em Profundidade; ou: A Práxis (Karl Marx, 1818-1883)

Todo dia a gente vê o jogo sair amarrado, truncado. Com o tempo, cria-se a ilusão de que o jogo se resume a levar a bola de um lado para o outro, sem outro propósito senão a troca, a troca de passes. Como se tocar bola fosse um fim em si mesmo. Passa o tempo e parece natural que nada aconteça, que tudo seja assim mesmo. E tudo acaba ficando como está. Só que não tem nada pior do que tudo ficar como está. Nesses momentos, surge aquela jogada que descortina o sentido último do jogo, aquela jogada que, de longa distância, aponta o caminho, mostra a direção, dá o rumo. É o lançamento em profundidade. Só que é difícil de fazer. E mais difícil ainda de receber.
(Uma homenagem a João Saldanha)

Futebol de Resultados; ou: A Razão Instrumental (Max Horkheimer, 1895-1973, e Theodor W. Adorno, 1903-1969)

Tem vezes em que a situação é crítica. Não é só o jogo que está truncado, amarrado. É o próprio campeonato que está sem perspectivas. É quando domina a idéia de que vencer o campeonato é o único objetivo, quando só importam os meios para alcançar esse fim. Aí o jogo fica feio, sem brilho. Às vezes chega mesmo a descambar para o pontapé, a intimidação e a falcatrua. Até o torcedor se convence de que o jogo não importa, só o resultado. O futebol bem jogado passa a ser coisa de "românticos", de "saudosistas", de "sonhadores avoados". Nesses momentos, em que parece que todo mundo está dominado pelo instrumentalismo do resultado, há quem defenda que não há outra maneira de resistir senão fazendo W.O.

Futebol-arte; ou: O Juízo Reflexionante Estético (Immanuel Kant, 1724-1804)

Tem momentos em que a gente esquece que o objetivo é marcar gol. Não porque o jogo esteja ruim, pelo contrário. Os times jogam tão bonito que o gol parece adjetivo, secundário. O gol vira uma finalidade sem fim, um objetivo que parece orientar todo o jogo, mas, no fundo, é só um pretexto para fazer algo bonito. É um jogar sem utilidade nem interesse. É um prazer ligado unicamente a uma mistura livre de imaginação e objetividade sem objetivo. É arte.
(Para lembrar Telê Santana)

Quem não faz toma; ou: O Princípio de Razão Suficiente (G. W. Leibniz, 1646-1716)

É possível tomar gol sem fazer nenhum no adversário. É possível fazer gol sem deixar vazar a sua própria defesa. Não há como demonstrar que haja uma relação causal necessária entre fazer e tomar gol, como se fosse uma demonstração geométrica, exata. Mas também nada impede que haja uma relação entre as duas coisas. Pensando bem, é uma relação bastante razoável. Dá até para dizer mais, dá para dizer que é o que mais acontece nessa vida: não fazer gols é razão mais que suficiente para tomá-los.

Quem não faz toma II; ou: O Eterno Retorno do Mesmo (Friedrich Nietzsche, 1844-1900)

Por mais numerosos que sejam os jogadores, os times e os campos, por mais táticas, a combinação total das situações futebolísticas possíveis não é infinita. Logo, elas tendem a se repetir indefinidamente. Daí aquela sensação que temos, tantas vezes, quando nosso time insiste em perder gols feitos, a bola bate na trave, o goleiro adversário faz milagres: mesmo que esteja jogando muito pior, o outro time vai fazer um gol na primeira oportunidade, e vai nos tirar do campeonato. Como diria um célebre filósofo da bola, "estava escrito há dez mil anos".
(Em homenagem a Nelson Rodrigues)

O Pênalti; ou: A Angústia (Martin Heidegger, 1889-1976)

Pênalti é Angústia. Pode significar a derrota ou a vitória, seja em uma simples pelada, seja em final de uma Copa do Mundo. Pode consagrar um goleiro ou relegá-lo ao esquecimento. Pode levar um jogador ao estrelato ou desgraçá-lo sem apelação. É aquela fração de segundo que poderia ter sido diferente, mas não foi. Aquele momento em que nos vemos diante do nada, diante da impossibilidade possível da existência. Todas as projeções que fazemos em direção ao passado ou ao futuro desvelam unicamente a angústia de existir aqui e agora. Não há como afastar essa angústia. Pênalti é Destino.

A Regra É Clara; ou: O Jogo de Linguagem (Ludwig Wittgenstein, 1889-1951)

A gente consegue jogar quando entende a regra. Mas seguir a regra já é jogar, de modo que a gente aprende a regra jogando. Quando alguém pára o jogo e diz: "Foi falta!", começa aquela confusão de saber qual é a regra, se a regra se aplica àquele caso ou não e assim vai. A confusão significa que todo mundo entende a regra, senão não haveria discussão. Por outro lado, se há discussão, é porque não existe essa história de que a regra é clara. A regra é inventada e reinventada a cada vez que alguém a invoca. O problema é que inventaram esse tal de juiz para dizer: "A regra é clara!", e encerrar a discussão. Bom, talvez não seja lá uma má idéia, já que não dá para passar 90 minutos naquela discussão chata de pelada sem juiz. Mas que a regra não é clara, lá isso não é. Bom, talvez seja. É, vai começar a discussão de novo.

Visão de Jogo; ou: A Consciência Filosófica (G. W. F. Hegel, 1770-1831)

Há dois tipos de jogadores, os com visão e os sem visão de jogo. O jogador comum, sem visão de jogo, não pensa a jogada para além do próximo toque de bola. Para esse jogador ingênuo, só o que existe é o aqui e agora desta jogada. Ele não pensa nas armações táticas e nos desenhos possíveis de jogadas que podem surgir dessas armações. Por mais que uma jogada dê errado, esse jogador natural vai repeti-la e repeti-la até cansar porque não consegue ver nada além do pequeno espaço de campo que ocupa naquele momento. O jogador com visão de jogo enxerga o sentido profundo das jogadas repetitivas do jogador comum, enxerga o sentido de cada uma das jogadas e a posição de cada uma na lógica do jogo como um todo. Ele enxerga no erro um resultado positivo, retira a lição de cada jogada frustrada e vê essa lição se transformar na jogada seguinte. É um jogador filósofo. E a verdadeira utopia do futebol é fazer de cada jogador comum um jogador filósofo.

Jogar em Equipe

Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap. O bate-bola aí em cima contou com a participação de: Marisa Lopes (professora de filosofia da Escola de Sociologia e Política de São Paulo), José Carlos Estêvão (professor de filosofia da USP), Fernando Costa Mattos (doutorando em filosofia pela USP), Luiz Repa (professor de filosofia da Uninove e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap), e Maurício Keinert (doutorando em filosofia pela Usp e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap).


Texto Anterior: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.