|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PT, saudações
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não convém diminuir a extraordinária vitória do PT:
Lula chega à Presidência carregando grandes esperanças, tendo
chances de compor um ministério articulado e formar uma bancada no Congresso que lhe dê governabilidade e sucesso. Como
tudo não será um mar de rosas,
terminada uma campanha que
não delineou com precisão os rumos de seu governo -indefinição que acarreta intranqüilidade- é hora de começar a esfriar a
cabeça e refletir sobre o que aconteceu e poderá acontecer.
Até que ponto o governo de
FHC e o projeto social-democrata
dos tucanos foram derrotados?
Não há dúvida de que se subestimou a onda de insatisfação instalada no país principalmente durante o segundo mandato, já que a
bonança do primeiro fora por
água abaixo, as condições de emprego se deterioraram e as perspectivas de desenvolvimento, sucessivamente frustradas. Isso não
significa, porém, que o eleitorado
tenha sido atraído pelas teses tradicionais do PT, pela promessa de
total mudança do "modelo econômico" (que para muitos ainda
soa como sucedâneo da revolução
socialista) ou pela proposta de um
Estado intervencionista de perfil
keynesiano. Pelo contrário, o sentimento de frustração, desde logo,
separou o governo da figura do
presidente Fernando Henrique,
cujo índice de popularidade continua muito razoável tendo em
vista as vicissitudes desgastantes
de oito anos no poder. Além do
mais, convém lembrar que a
maioria dos eleitores começou
apostando na candidatura de Roseana Sarney, migrou para aquela
de Ciro Gomes para desembocar
na de Lula. Se não se converteu ao
socialismo do antigo PT, ao menos acreditou que sua virada social-democrata será capaz de enfrentar as enormes dificuldades
por que passa o país. Agora espera
que o vencedor leve a cabo as vagas promessas de campanha com
as forças políticas que aglutinou.
Mas é interessante desde logo observar que algumas pesquisas
qualitativas associavam a imagem
de Fernando Henrique, presidente negociador e paciente, à de Lula
paz e amor, ao invés de ligá-la
àquela do candidato José Serra.
Entre o atual e o futuro governo
não me parece que a ruptura será
tão profunda como se apregoa.
Tudo parece indicar que Lula
venceu as eleições porque acrescentou a seu carisma a marca da
nova engenharia política de cunho social-democrata, desenvolvida na gestão de José Dirceu. O
PT vitorioso não está próximo de
se ajustar ao programa originário
do PSDB? Troquemos em miúdos
essa indagação provocativa. A hegemonia de FHC se configurou a
partir do momento em que firmou uma aliança de centro-direita que passou a levar em consideração as forças efetivas responsáveis pelo travejamento do jogo
político brasileiro. Se nesse choque de realidade os perfis ideológicos começaram a se apagar,
agora, que uma nova aliança se
aglutina a partir do centro, o
pragmatismo parece ter posto fim
às diferenças ideológicas. Não há
dúvida de que, no caso de FHC,
eram partidos que se aglutinavam
para traçar um projeto de abertura comercial e de reestruturação
do Estado, obrigando o presidente a refazer frequentemente seus
acordos mediante técnicas de malabarista, porquanto estava sempre balanceando interesses nem
sempre convergentes. No caso de
Lula é muito significativo que o
caminho para a direita comece
com o entendimento com o PL,
passe pela aliança com Orestes
Quercia e José Sarney e deságue,
no segundo turno, num pacto
com Paulo Maluf. É como se o PT
se espraiasse semelhantemente à
mancha de óleo, sem perder sua
consistência na medida em que
fagocitava células desgarradas do
processo político. Considerando,
porém, que em política não há boca livre, se não há de imediato a
necessidade de uma aliança explícita entre os partidos a compartilhar o poder, tudo indica que o
novo grupo hegemônico se torna
poroso a interesses muito particulares de velhos oligarcas. O perigo é que se generalize a barganha caso a caso que tem caracterizado certas administrações petistas, a exemplo do que ocorre na
Prefeitura de São Paulo.
Não há, porém, de se negar a renovação e o progresso. Visto que
o PT no poder só pode abandonar
a estratégia da constante negação,
há de perder sua vocação missionária; será obrigado a agir estrategicamente, ponderando suas próprias forças e aquelas do adversário, a reconhecer por fim a necessidade de alianças eventuais, sem
que com isso caia em pecado. Em
vez de pensar a política como missão de suprimir a própria política,
o que em geral dá lugar para jogadas mesquinhas pintadas de altruísmo, passa a lhe conferir um
lugar na sociabilidade humana.
No poder a esquerda cai na real,
deixa de ser desculpa para golpes
autoritários, constituindo-se assim numa efetiva força de transformação dessa realidade.
Messianismo
Não nos apressemos, entretanto, considerando que essa perda
de princípios ideológicos implica
mover-se no plano da "realpolitik", como se importassem apenas a tomada e a manutenção do
poder. Um político não perde
suas convicções quando se alia a
adversários ideológicos, apenas
segue a prática revolucionária,
adaptada aos tempos em que a
Revolução desapareceu do horizonte a médio prazo, de abrir fogo
contra o elo mais fraco. Ora, a
oposição sistemática que o PT fez
ao governo de FHC, dificultando
até mesmo a aprovação de projetos de interesse dos trabalhadores, como a reforma da CLT, ou
necessários para a reestruturação
do Estado, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, sempre foi mais
do que estratégia de assalto ao poder. No fundo se ancorava na
crença de que toda reforma que
não se processasse sob a liderança
do partido, seria irremediavelmente traída, já que só ele preservava o sentido do processo histórico. É esse messianismo que caiu
por terra, de sorte que o PT está
prestes a reconhecer que as mudanças, no plano da política, se fazem como navegar contra o vento, cada grupo ao chegar ao poder
desenhando um fragmento do ziguezague que leva o barco para a
frente. Ora, como todos os programas têm convergido para o
centro, já que é por aí que se abre a
possibilidade de a sociedade brasileira integrar-se no processo de
globalização; como todos eles,
diante de uma abertura da economia e da sociedade às vezes desregulada, tratam de propor mudanças no sentido de diminuir nossa
famosa "fragilidade financeira",
privilegiar a produção nacional e
refundar um projeto de nação, o
traçado a ser marcado por Lula
não me parece muito diferente
daquele projetado por José Serra.
Na linguagem da esquerda, ambos tinham diante de si a tarefa de
gerir o capital, como se dizia há
tempos, enfrentando os mesmos
percalços, mas pretendendo colher dos cacos e das jóias que produz a nova revolução capitalista o
material de uma sociedade mais
justa e mais humana.
Isso não significa, porém, que os
dois candidatos se propunham a
mesma trajetória, como se divisassem os mesmos obstáculos.
Obviamente agora interessa desenhar aqueles que o presidente Lula há de enfrentar tendo em vista a
situação do país e os instrumentos de que dispõe. Já que o passado é necessário, não há como deixar de partir da herança que recebe do governo de FHC. De mais
imediato uma terrível crise cambial. Mas não creio que seria de
bom alvitre interpretá-la como se
resultasse de erros cometidos
porque se seguiu a cartilha neoliberal de forma muito subserviente ao Consenso de Washington.
Esse tipo de explicação apraz
àqueles economistas que propõem receitas sem considerar o
conjunto dos fatores favoráveis e
desfavoráveis do momento político e aos politicólogos convencidos de que tudo se resolve no plano de uma vontade absoluta. No
final de contas, se isso fosse verdade, seria preciso passar um atestado de burrice a todos os governos
da América Latina com certas
nuanças em relação ao Chile que,
como bois caminhando cegamente para o matadouro, teriam
caído na mesma esparrela. No final das contas, a história recente
da América Latina não nos mostra que todos nós nos defrontamos com uma constelação de
oportunidades e barreiras criada
pela expansão do capital e que nos
identifica como região particular?
Cabe lembrar que o desenho do
Plano Real se, de um lado, se
apoiava numa âncora cambial, de
outro, apostava num período de
crescimento do capitalismo hegemônico, o que permitia imaginar
a possibilidade de engatar nele
nossa economia sem exigir aqueles sacrifícios da população necessários ao processo de desenvolvimento baseado na poupança interna. Duvido de que haveria condições políticas para essa opção,
de que os brasileiros fossem capazes de se comportar como coreanos e chineses, mas acredito, em
contrapartida, que nosso balanço
de pagamentos não precisava ter
sido tão descuidado.
Deixemos, porém, essa questão
de lado, já que ela passou a tema
de pesquisa histórica. Em todo o
caso, o governo de FHC apostou e
perdeu e, além do mais, não contava com resistência tão forte e intransigente a reformas cujas necessidades lhe pareciam evidentes. Exemplo mais ilustrativo é a
reforma da Previdência. À primeira vista nada parece mais irracional do que assistir ao crescimento astronômico do desequilíbrio entre gastos e receitas, sem se
mover na direção de um pacto capaz de evitar o desastre que prejudicará a todos. No fundo cada
grupo imagina que há recursos
para manter seu nível de renda
sem prejuízo para outros até que
uma crise venha a colocá-los num
patamar inferior. Mas essa irracionalidade apenas demonstra
que a ação política é muito diferente da gestão de uma empresa,
visto que certos segmentos sociais
são capazes de levar uma sociedade à breca antes de perder seus
privilégios.
Se um dos primeiros desafios do
governo Lula é desatar o nó da
Previdência, se as resistências políticas à mudança cresceram na
medida em que o novo governo
recebe apoio diferenciado daqueles que se beneficiam com o desequilíbrio dos valores das aposentadorias, é melhor que aproveite
do capital político a ele conferido
pelas eleições, a fim de estancar
rapidamente essa sangria. Que os
benefícios atuais sejam em grande
parte justos, que a extensão da
aposentadoria aos trabalhadores
rurais tenha sido uma sadia medida de redistribuição de renda, não
há como duvidar. A dificuldade é,
todavia, como equilibrar gastos
com receitas. E como não há fórmula mágica, o maior desafio do
novo governo é fazer a reforma
sem colocar contra a parede a
massa dos funcionários públicos
que o apóia.
Aliança no Congresso
Desde logo os vitoriosos de hoje
precisam corresponder à enorme
esperança de transformações
profundas que as eleições alimentaram, isso, porém, numa situação de crise econômica nacional e
internacional. Como encontrar
recursos para uma política social
pró-ativa quando o crescimento
sustentável, embora latente, não
se divisa a curto prazo? Como tornar mais lábil a alocação de recursos diante da rigidez do Orçamento? Para resolver impasses
desse jaez a administração Lula
precisa urgentemente alinhavar
uma aliança no Congresso (com
aqueles 300 picaretas, como dizia
o barbudo Lula) capaz de avançar
a reforma do Estado, refazer o
pacto federativo, a reforma tributária e assim por diante. Não basta
prometer que toda a sociedade será convocada. Mesmo que os movimentos sociais pressionem o
sistema político, este possui uma
dinâmica própria capaz de amortecer pressões que não visem objetivos definidos e não tenham
conseguido juntar forças que
ameaçam seu equilíbrio. A não
ser que se aventure num jogo populista de ruptura da democracia.
Mas para avançar nessa direção
terá de vencer desde já dois grandes obstáculos
O primeiro é a necessidade de
reconfigurar o jogo político. Um
dos grandes méritos do governo
de FHC foi ter reforçado a democracia brasileira, a ponto de, nesse
momento, criar um gabinete de
transição e passar civilizadamente a faixa presidencial àquele sucessor que por oito anos tentou
desestabilizá-lo. É bom que se
lembre que o mote "Fora FHC"
esteve na boca de muitos petistas.
Mas, a despeito de o sistema político brasileiro ser mais consistente do que parece à primeira vista,
essa eleição, assim o creio, provoca nele uma remexida considerável. Não é apenas um antigo torneiro mecânico que se torna presidente da República; importa
mais um partido, cujas raízes se
alastram até as classes médias
mais baixas, ser capaz de falar ao
povão e atrair segmentos das classes altas. Não é pela primeira vez
que essas classes médias passam,
por meio de instituições próprias,
a participar como agentes articulados do jogo político? Convenhamos, Lula foi também eleito pelo
povão, mas suas raízes políticas
provêm seja de um partido de
classes médias, seja de instituições
como a CUT, a Andes, o baixo clero e outras mais, cuja ascensão social é recente e moderada. Por certo a participação desses grupos
sociais como agentes diferenciados e articulados do jogo político
enriquece a democracia brasileira, não deixa, porém, de criar problemas, seja porque traz demandas impossíveis de serem cumpridas em virtude de nossa situação
de dependência econômica e social, seja porque tanto mais radicaliza o discurso quanto menos os
agentes possuem condições de
efetivá-lo. O pragmatismo da estratégia política da atual direção
do PT, vitoriosa no plano eleitoral, terá condições de enfrentar o
tom elevado dos corifeus do voluntarismo, daqueles que pensam
a política como se fosse mero processo de cunhar moedas sem levar em conta a estratégia dos adversários? Desse ponto de vista,
deverá enfrentar setores do próprio PT, quer os deserdados do
socialismo, que ainda propõem
um Estado centralizador e produtivo; quer os representantes dos
movimentos sociais mais duros,
que platonicamente acreditam
que a missão tem a virtude de
criar recursos. Não exageremos,
porém, tensões desse tipo podem
ser muitas vezes anuladas por cargos e escrivaninhas.
Lula paz e amor
Não é, todavia, o que diz o PT.
Retomemos a questão da Previdência; como pretende tratá-la?
Ouvindo, conversando e negociando, em busca de um acordo
que possa satisfazer a grande
maioria. Ao menos no plano da
retórica a política proposta por
Lula paz e amor nega que a sociedade seja travada por contradições irreconciliáveis, como se o
interesse se alguns não contrariasse interesses de outros. É bem
verdade que a sociedade contemporânea não se estrutura em classes delineadas, mas isso não significa que a velha luta de classe tenha ido por água abaixo. Não há
dúvida de que, diante do poder do
Império, se reforcem interesses
nacionais. Mas seriam eles capazes de anular interesses de classes
médias que o processo planetário
de globalização tem posto em xeque? Em que medida a vitória do
PT não significa a desforra dessas
classes que o governo de FHC não
soube ou não quis proteger? Se
ainda estivéssemos nos expressando nos moldes do marxismo,
o projeto de Lula teria sido tachado de pequeno-burguês, aquele
que concilia no imaginário contradições reais. Conforme o figurino contemporâneo, o mesmo
projeto se torna habermasiano,
coloca, diante dos conflitos reais,
o ideal de uma república constituída por anjos falantes.
O perigo é a nova administração
perder o empuxe inicial e se envolver na própria retórica. Ao tomar conhecimento efetivo dos
constrangimentos que o capital
internacional impõe ao desenvolvimento dos países "emergentes",
ao se confrontar com as resistências dos aliados de hoje que aderiram embalados pelo discurso ambíguo da campanha, por fim, ao
se desgastar no conflito com as
ideologias do passado, não estaria
tentado a retomar velhas idéias e
hábitos antigos, voltando-se para
o passado, a uma política de fechamento de nossa economia e de
bravatas verbais? É bom lembrar
que o PT namorou um nacionalismo de tipo Hugo Cháves e ainda mantém uma posição ambígua
em relação a um Fidel Castro ossificado. O desafio é saltar para a
frente, limpar os olhos de fantasmas do século passado, encarar a
extraordinária expansão de um
novo capitalismo que, a despeito
de suas crises periódicas, se refaz
vertiginosamente e cujo redemoinho internacional nos ameaça,
nos joga de lado, assim como nos
empurra para diante. Como logrará se situar em relação a um
capital globalizado e que se aglutina em torno de um novo Império?
E já nos primeiros tempos essa
administração terá que se haver
com a dificuldade muito concreta
de negociar com a Alca, da qual
não podemos ficar fora, mas também não podemos ficar dentro
nas condições que nos são apresentadas. E para complicar a situação ainda é preciso ter o cuidado de não ferir suscetibilidade de
um destrambelhado vestido de
cruzado.
Reeducação
Não há dúvida de que o grupo
hegemônico no PT, responsável
pela vitória, tem se mostrado
muito ciente de que é preciso
transformar os avanços políticos
num programa coordenado de
reforma e de governo. A nova
aliança arejará a política e colocará novos agentes na máquina administrativa. Por certo quadros
ainda inexperientes, mas capazes
de aprender com aqueles adversários do passado que souberem
cooptar. Essa reeducação não será
fácil, de um lado, por causa de sua
urgência, de outro porque a reforma petista se move numa atmosfera inflada por classes médias
que, por sua própria natureza,
acreditam muito mais na "vontade política" do que na coordenação racional.
O PSDB, partido de quadros,
porque estava convicto de suas
fórmulas mágicas, tendia a desqualificar o adversário, por conseguinte se convertia na presa fácil
da arrogância. A nova aliança em
torno do PT, marcando a ascensão das classes médias ao nível da
política articulada, corre o risco,
no primeiro momento, de se empolgar pelo discurso da conciliação, no segundo, em virtude do
fracasso de uma negociação que
não distingue claramente amigos
e inimigos, pode ser tentada a lançar mão de medidas de cunho autoritário. Em vez da arrogância, é
possível que a intolerância se desenhe no horizonte.
Além disso, se "a paulistada foi
varrida do Planalto", como gostam de dizer os esquerdistas cariocas, a mudança traz outra leva de
paulistas, mas agora de "companheiros e trabalhadores". Ao contrário das revoluções que se pretendiam fazer pela raiz, as quais,
pelo menos no seu início se associava a uma vanguarda cultural, a
revolução perfumada dos nossos
tempos tende a promover tanto a
efervescência do pensamento sem
suas condições de efetivação, como o kitsch pasteurizado pela mídia e pela propaganda. Mas os dados estão lançados, temos pela
frente um governo Lula, cuja armação ainda está por se fazer, com
suas virtualidades e seus perigos.
Cabe a todos nós apostar no seu
bom êxito, mesmo se, para alguns,
a tarefa se imponha como oposição consciente e responsável.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, 71, filósofo,
é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e autor de "Trabalho e Reflexão"
(Brasiliense), entre outros.
Texto Anterior: "Laboratório", RS expõe erros do partido Próximo Texto: Antonio Candido: Um presidente, muita esperança Índice
|