São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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Copa 1958

Nasce um rei

Talento mais promissor da equipe de 1958, ex-jogador lembra seu melhor ano e conta que pagou promessa de título ao pai

RODRIGO BUENO
ENVIADO ESPECIAL A SANTOS

Em 1958, o mundo descobriu o Brasil. Em 1958, o mundo descobriu Pelé. Para muitos, este texto parece redundante, já que Brasil e Pelé são sinônimos em várias partes do planeta. Em Santos, no escritório do "Rei", Pelé falou à Folha como chegou à majestade na Suécia.

 

FOLHA - Temeu não ir à Copa por ser jovem ou por estar lesionado?
PELÉ -
Podia esperar não ser convocado, pois tinha 16 para 17 anos, mas, como tinha jogado a Copa Roca, estava muito confiante na minha convocação. Só não tinha certeza. Havia muitos jogadores na época, rivalidade danada entre Rio e São Paulo, e tinha o Luizinho, que estava arrebentando no Corinthians. Todo mundo queria que o Luizinho fosse convocado. Aí convocaram o Dida e o Moacir, do Flamengo. Pensei que iam convocar o Luizinho porque era do Corinthians.

FOLHA - E um amistoso com o Corinthians quase te tirou da Copa...
PELÉ -
Para a seleção, era treino. Para o Corinthians, jogo. Quando tive a contusão, que foi casual, começaram a dizer que o Ari Clemente [zagueiro corintiano] foi maldoso, mas ele não teve intenção. Torci o tornozelo e o joelho. Todo mundo falava só do joelho. Na época, não tínhamos os recursos de agora. Tratamento era toalha e bolsa quentes, massagem com pomada que aquecia, contraste, metia o pé no balde de gelo...

FOLHA - Foi só pela contusão que você começou a Copa fora do time?
PELÉ
- O brasileiro esquece fácil as coisas. Quando fui convocado, já era titular na Copa Roca. Estreei no Maracanã contra a Argentina. Fiz um gol e fomos campeões em São Paulo. A confusão na convocação foi a do Telê, que jogava no Fluminense. Quando convocaram, meu pai estava em Bauru, ninguém sabia direito se era Telê ou Pelé. Foi a única dúvida. Uns dizem que eu era reserva do Dida. Não é verdade. Quando me machuquei, o Dida começou a entrar.

FOLHA - Você tinha idéia do que viraria quando foi para a Copa-1958?
PELÉ -
Eu era o mais novo. A única coisa que eu queria e pedia a Deus era provar para o meu pai que eu era titular da seleção. O que eu tinha na minha mente era ser igual ao meu pai. O máximo que eu pensava era isso. O Dondinho era muito conhecido, campeão em Bauru.

FOLHA - Como o grupo te tratava? Eles te conheciam e ajudavam?
PELÉ -
Na Copa Roca, não era conhecido. Depois da convocação, o pessoal me adorava. O Zito, o Gilmar, todos me adoravam, me chamavam de Neguinho. O Zito, de brincadeira, começou a me chamar de Gasolina porque eu era muito rápido, tinha explosão. Já tinha bronca do apelido de Pelé. Falei para o Zito parar de me chamar de Gasolina porque, se não, todos na seleção iam me chamar. Aí parou. Tinha amizade com ele e o Pepe. Na Suécia, tentaram me ensinar inglês: "Good morning", "good night". O Zagallo é que falava: "Vamos aprender inglês". Tratavam-me como um jogador normal.

FOLHA - E os dirigentes e a comissão técnica? Eles te protegiam?
PELÉ -
Eles me tratavam como um filho, mas isso antes de ir para a Europa. O doutor Paulo Machado passava todo dia na concentração para ver como eu estava. O Feola [técnico] falava: "Como é que está aí, vai dar?". O Mário Américo, meio gago, falava: "Doutor, pode ficar seguro que ele vai jogar". Meu joelho ficava com bolha da toalha quente. Quando chegamos à Europa, não atuei nos primeiros jogos, mas já estava bem. O Paulo Machado falou com o Paulo Amaral, preparador físico, e o Mário Américo: "Vocês garantem?". "Garantimos." "Pode treinar?" "Pode."

FOLHA - Dizem que você queria treinar às vezes e não deixavam...
PELÉ -
Quando havia treino dos reservas, quem jogou descansava. Às vezes, eu treinava no gol. Na segunda, eu queria treinar, e os caras não deixavam. Falava que era brincadeira, dois toques, que eu estava bem...

FOLHA - Você já ambicionava em 1958 ser melhor do mundo, ""Rei"?
PELÉ -
Sempre tive muita confiança em mim, que ia jogar na seleção, que ia ser titular. Claro que minha meta era jogar igual ao meu pai, mas, quando comecei a viajar, o pessoal começava a falar "Pelezinho". Aí comecei a ter mais confiança. Mas essa coisa de ser "Rei" nunca pensei. Foi uma revista francesa a primeira a me chamar de "Rei". Foi quando jogamos com a França. "Nasceu um rei: Roi Pelé." Depois, os ingleses chamaram de King Pelé. Em 1950, tinha prometido para meu pai que ia ganhar uma Copa. Era garoto, tinha nove para dez anos, e, quando vi meu pai chorando, falei: "Não se preocupa que eu vou ganhar uma Copa". Falei porque vi meu pai chorando. O que era para ser festa virou velório. Oito anos depois, eu estava na Suécia.

FOLHA - Em 1958, além da Copa, você fez 58 gols no Paulista, recorde. Foi seu melhor ano como jogador?
PELÉ -
1958 não foi meu melhor ano, foi meu melhor tudo. Depois, eu peguei mais experiência, mas em 1958 que eu peguei confiança, amadureci, o Brasil ganhou a primeira Copa... Isso me deu uma força psicológica que não tinha outra escola que pudesse me dar. Para mim, 1958, com a idade que eu tinha e a maturidade que peguei, foi a base para toda a minha vida.

FOLHA - A seleção de 1958 tinha muitos craques. Taticamente, a equipe também era poderosa?
PELÉ -
Ao contrário do que muita gente pensa, nosso time era o que mais se preocupava com a tática. Não parecia porque tínhamos um ataque muito bom, principalmente com Garrincha e Pelé. A mesma coisa que a gente fazia em 1970 fazíamos em 1958, só ficava o Vavá na frente. Eu vinha na intermediária. O Zagallo, todo mundo sabe, jogava quase de lateral-esquerdo, porque o Nilton Santos descia muito. A gente pegava sempre os adversários no contra-ataque. Todos tinham liberdade de jogar, mas, na hora de voltar, na hora da defesa, a gente fazia exatamente o que se faz agora. Como os times de hoje não têm grandes jogadores com possibilidade para lançamento, como um Didi ou um Gérson, fica difícil a saída, a bola sai lenta. Nosso time era muito rápido. Muitos falavam que o Feola não entendia muito de futebol, não é verdade. Tínhamos uma maneira de jogar.

FOLHA - A seleção de 1958 foi melhor que a de 1970 para você?
PELÉ -
Individualmente, acho que a de 58 tinha muito mais jogadores que a de 70. Se você for ver, Didi, Nilton Santos, Garrincha, Pelé, Bellini, excelente em bola alta, Zito no meio. Se comparar o número de jogadores, 58 tinha a melhor equipe.

FOLHA - O Brasil ganharia o título mundial sem você?
PELÉ -
Difícil dizer. Se tirassem os gols que fiz, não dava. Se não tivesse alguém com a mesma sorte para fazer os gols que fiz, talvez tivéssemos perdido da França, empatado com a Suécia. O gol no País de Gales deu a vitória para classificarmos. Tudo é destino. Em 1974, quando estava muito bem, queriam que jogasse a Copa. Mas já tinha me despedido da Copa. Não joguei, e o Brasil perdeu. Se tivesse voltado, poderia perder também.

FOLHA - Qual foi o maior adversário em 1958? Em algum momento achou que o Brasil pudesse cair?
PELÉ -
A França era o time que respeitávamos. Não joguei os dois primeiros jogos, o Brasil não foi bem, mas tinha certeza de que, se o Brasil ganhasse da França, seria campeão. Não perderíamos para outra equipe. E o melhor jogo nosso foi com a França. Contra a Suécia, time da casa, não tinha medo. Muita gente acha o jogo com o País de Gales o mais difícil, mas foi difícil porque só se defendiam. Não tivemos perigo. A França era a única que podia nos derrotar.

FOLHA - Qual gol foi mais bonito?
PELÉ -
O contra a Suécia, o do chapéu. Contra o País de Gales, foi meio chapéu. O europeu não conhecia chapéu, nunca tinha visto. Todos começaram a falar.

FOLHA - Chorou muito lá?
PELÉ -
Sou muito emotivo, choro à toa. Chorei na final depois que fiz o gol de cabeça. Muita gente não sabia o que estava acontecendo, todo mundo me abraçou ali. E, no final, também chorei quando acabou o jogo.

FOLHA - Tinha noção da importância daquela conquista para o país?
PELÉ -
A gente não tinha. A comunicação era difícil. Após os jogos, a gente queria falar com a família, dizer que ganhou, e tinha que recorrer ao rádio amador. Meu pai ia à Bauru Rádio Clube telefonar para mim porque não tinha telefone. O que me aborrecia é que os repórteres suecos vinham entrevistar e perguntavam se tinha cobra no Brasil, se a capital era Buenos Aires. Isso me chateava.

FOLHA - Como foi a mudança em sua vida após aquele título?
PELÉ -
Teve festa em todo lugar. Para minha família, mudou. Para mim, não muito. Minha mãe contava que, nas festas que davam, ela e meu pai não tinham roupa, não estavam preparados. Tinha que alugar terno, emprestar vestido da amiga. Foi grande a mudança social, foi um problema. Para mim, aconteceu naturalmente.

FOLHA - Algumas promessas feitas aos atletas não foram cumpridas...
PELÉ -
Muitas. Uma das engraçadíssimas, em que até fui um pouco indelicado, ocorreu em Bauru. O prefeito me prometeu um carro e marcou um dia para eu receber. Pensei: "Ótimo, vou ganhar um carro, tenho que tirar carteira". Achei que era um conversível. Fui receber o carro na praça, gente para chuchu, fizeram cobertura para eu receber o carro, aquela festa, banda tocando o hino... Era uma romiseta. Quando vi, mudei a expressão. Uma promoção para uma romiseta! Estamos agora procurando essa romiseta para colocar no museu em Santos.


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