São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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a transformação

A reforma que fez a China abraçar o mundo

O gradualismo e o pragmatismo foram os pilares das mudanças econômicas implementadas a partir do fim dos anos 70

CLAUDIA ANTUNES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE CAMBRIDGE (EUA)

As reformas econômicas chinesas nasceram de uma crise de legitimidade do regime, depois dos anos de radicalização ideológica e expurgos da Revolução Cultural (1966-1976). Cansados da "revolução permanente" maoísta, os chineses ansiavam por estabilidade e autonomia.
Os pilares das reformas foram o gradualismo e o pragmatismo, sintetizados em dois slogans lançados no fim dos anos 70 pelos dirigentes que venceram a disputa no Partido Comunista: "cruzar o rio pisando as pedras" e "a prática é o único critério para testar a verdade".
Ser gradualista e pragmático significava evitar terapias de choque, incorporar experiências bem-sucedidas em nível local e trabalhar com as condições que estavam dadas, sem a pretensão de construir do zero novas instituições de mercado.
Fora da China, o ciclo de liberalização e crescimento está associado às Zonas Econômicas Especiais, criadas nos anos 80 nas regiões costeiras para atrair investimentos estrangeiros. Mas o empurrão para o salto de produtividade veio das pequenas indústrias rurais de propriedade coletiva, uma herança do Grande Salto à Frente lançado por Mao Tse-tung em 1958.
Criadas com o objetivo de promover a auto-suficiência das comunas, elas puderam diversificar a produção e absorver a mão-de-obra liberada pela descoletivização agrícola, primeira etapa das reformas.
Entre 1978 e o começo dos 90, a produção das chamadas empresas municipais e de aldeias cresceu 21% ao ano. Em 1997, elas eram responsáveis por 50% das exportações. O número de empregados passou de 25 milhões para 138 milhões em 2004, em mais de 22 milhões de pequenas empresas.
"Sempre se pensa na China como um país centralizado, mas inovações locais foram um dos principais meios de levar mudanças adiante", afirmou o inglês Anthony Saich, professor da Escola Kennedy de Governo da Universidade Harvard e autor de "Governance and Politics of China" (Governança e Política da China).
Testemunha da história recente da China -onde morou como estudante em 1977 e como representante da Fundação Ford entre 1994 e 1999-, Saich lembra que os mesmos setores que comandaram as reformas no fim dos 70 já tinham iniciado uma liberalização mais tímida em 1960, depois do fracasso do Grande Salto à Frente. Na época, metas superestimadas de produção de grãos levaram à suspensão de outros cultivos, provocando fome em massa.
Portanto não foi exatamente algo novo o que ocorreu a partir de 1976, quando a descoletivização começou como um movimento espontâneo dos agricultores em algumas províncias.
O movimento ganhou a aprovação tácita dos dirigentes em Pequim, que depois implantaram em todo o país o "sistema de responsabilidade familiar" na agricultura. Surgiram mercados livres para a venda de excedentes e 55 mil comunas foram desmanteladas.
A abertura ao capital estrangeiro e a ênfase no comércio exterior vieram numa segunda fase, inspiradas nas zonas de processamento de exportações de outros países do leste asiático.
O capital doméstico não era suficiente para manter a China crescendo, mas a suspeita em relação aos países capitalistas permanecia forte. A idéia das Zonas Econômicas Especiais foi um meio de driblá-la: quatro regiões da costa foram isoladas, inicialmente para atrair investimentos da diáspora chinesa em Hong Kong e Taiwan. O número de regiões abertas foi ampliado até atingir toda a costa.
O último setor afetado pela reforma foram as grandes estatais, até hoje um dos nós da economia chinesa. Temeroso do desemprego em massa que resultaria da privatização ou do fechamento de empresas, o governo optou por medidas paulatinas, começando em 1983 com a taxação do lucro -que poderia ser reinvestido- e a criação, em 1986, de um sistema de contrato para novos trabalhadores (até então empregados para a vida toda) e de incentivos para os gerentes.
O resultado foi modesto, já que boa parte das estatais operava no vermelho. Para agravar a situação, o fim do controle de preços industriais, em 85, provocou inflação. O impulso inicial das reformas no campo tinha se esgotado e o resultado imediato do fim das cotas agrícolas foi a queda de preços. Os agricultores reduziram a produção, alimentando reajustes que passaram de 30% em 88.
A inflação foi, ao lado da corrupção, uma das principais causas dos protestos estudantis em 89. "Foi um choque econômico seguido de uma crise política que levou à tentativa mais organizada, na liderança comunista, de voltar atrás nas reformas", disse Saich.
Depois de mandar o Exército reprimir os manifestantes, Deng Xiaoping reinstituiu os controles de preços. Para conter a inflação, o governo adotou uma política austera de gastos. O PIB cresceu 4% em 1989, a menor taxa desde 1976.
No campo político, segundo Saich, as reformas foram salvas pela desintegração da União Soviética: "A lição que Deng Xiaoping tirou disso foi que, se não mantivesse a economia crescendo, a China iria cair também". O dirigente fez então a famosa viagem pelas Zonas Econômicas Especiais para mandar o recado de que não haveria retrocesso. Em 1993, o crescimento chegou a 13,4%.
Um novo repique inflacionário, em 1994, levou o então primeiro-ministro Zhu Rongji a desencadear a reforma do sistema financeiro. Os objetivos eram criar um setor bancário menos suscetível a influências políticas, reforçar o papel regulador do Banco Central e limpar a contabilidade bancária das dívidas do setor estatal consideradas impagáveis, que equivaleriam a 25% do PIB.
A partir de 1998, Comitês de Administração de Ativos começaram a comprar pelo valor de face os créditos podres de 1.600 estatais consideradas bem administradas. Os resultados do "Proer" chinês ficaram aquém do esperado. No fim de 2004, os comitês só haviam recuperado 20% do dinheiro gasto na compra das dívidas. Além disso, o total retirado da contabilidade bancária corresponde só a 50% da carteira de créditos podres dos quatro maiores bancos.
Entre 1993 e 2001, o total de estatais caiu de mais de 100 mil para 47 mil. Sua participação na produção industrial é hoje de 28%, mas elas empregam 50% dos trabalhadores urbanos, recebem três quartos dos investimentos do Estado e 67% dos empréstimos bancários.
É esse tipo de problema que alimenta o debate entre os que aplaudem a estratégia gradualista, como Joseph Stiglitz, da Universidade Columbia, e Dani Rodrik, de Harvard, e os que acreditam que a China cresce apesar do gradualismo, como Jeffrey Sachs, de Columbia.
Sachs, que desenhou a terapia de choque na transição russa, diz que as reformas funcionaram quando houve mudanças mais radicais, como o fim das comunas.
Stiglitz e Rodrik reconhecem as diferenças entre a Rússia industrializada e a China agrária no ponto inicial das reformas. Mas apontam outros fatores, como a descentralização da economia chinesa combinada a um Estado central que, ao contrário do russo, estava longe da implosão. Essa análise enfatiza o papel do Estado na calibragem da transição e afirma que um mercado desgovernado produz resultados caóticos.
"No que eu concordo com Stiglitz é que você deve trabalhar com o que tem. É preciso criar incentivos para fazer as instituições que existem funcionarem de maneira diferente. Não se pode cortar tudo e esperar que algo eficaz nasça no lugar", disse Saich. Mas para ele, o gradualismo "deu o que tinha que dar" na China.
Em sua opinião, o modelo chinês se ressente da falta de flexibilidade política para lidar com possíveis crises na economia. O crescimento tornou-se a fonte de legitimidade do regime. Nesse aspecto, a Índia tem vantagens sobre a China.
"A Índia pode lidar com uma queda dramática no crescimento. Troca o governo, passa por uma crise, mas vai adiante. A China não tem um sistema político que possa se manter perpetuamente. Se eles administrarem a transição política como administraram a econômica, todos vão ser felizes. Mas não há garantias. É uma transição perigosa e a maioria dos países tende a fazê-la em momentos de crise."


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