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a transformação
A reforma que fez a China abraçar o mundo
O gradualismo e o pragmatismo foram os pilares das mudanças econômicas implementadas a partir do fim dos anos 70
CLAUDIA ANTUNES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
DE CAMBRIDGE (EUA)
As reformas econômicas chinesas nasceram de uma crise de
legitimidade do regime, depois
dos anos de radicalização ideológica e expurgos da Revolução
Cultural (1966-1976). Cansados da "revolução permanente"
maoísta, os chineses ansiavam
por estabilidade e autonomia.
Os pilares das reformas foram o gradualismo e o pragmatismo, sintetizados em dois slogans lançados no fim dos anos
70 pelos dirigentes que venceram a disputa no Partido Comunista: "cruzar o rio pisando
as pedras" e "a prática é o único
critério para testar a verdade".
Ser gradualista e pragmático
significava evitar terapias de
choque, incorporar experiências bem-sucedidas em nível
local e trabalhar com as condições que estavam dadas, sem a
pretensão de construir do zero
novas instituições de mercado.
Fora da China, o ciclo de liberalização e crescimento está associado às Zonas Econômicas
Especiais, criadas nos anos 80
nas regiões costeiras para atrair
investimentos estrangeiros.
Mas o empurrão para o salto de
produtividade veio das pequenas indústrias rurais de propriedade coletiva, uma herança
do Grande Salto à Frente lançado por Mao Tse-tung em 1958.
Criadas com o objetivo de
promover a auto-suficiência
das comunas, elas puderam diversificar a produção e absorver a mão-de-obra liberada pela descoletivização agrícola,
primeira etapa das reformas.
Entre 1978 e o começo dos
90, a produção das chamadas
empresas municipais e de aldeias cresceu 21% ao ano. Em
1997, elas eram responsáveis
por 50% das exportações. O número de empregados passou de
25 milhões para 138 milhões
em 2004, em mais de 22 milhões de pequenas empresas.
"Sempre se pensa na China
como um país centralizado,
mas inovações locais foram um
dos principais meios de levar
mudanças adiante", afirmou o
inglês Anthony Saich, professor da Escola Kennedy de Governo da Universidade Harvard
e autor de "Governance and Politics of China" (Governança e
Política da China).
Testemunha da história recente da China -onde morou
como estudante em 1977 e como representante da Fundação
Ford entre 1994 e 1999-, Saich
lembra que os mesmos setores
que comandaram as reformas
no fim dos 70 já tinham iniciado uma liberalização mais tímida em 1960, depois do fracasso
do Grande Salto à Frente. Na
época, metas superestimadas
de produção de grãos levaram à
suspensão de outros cultivos,
provocando fome em massa.
Portanto não foi exatamente
algo novo o que ocorreu a partir
de 1976, quando a descoletivização começou como um movimento espontâneo dos agricultores em algumas províncias.
O movimento ganhou a aprovação tácita dos dirigentes em
Pequim, que depois implantaram em todo o país o "sistema
de responsabilidade familiar"
na agricultura. Surgiram mercados livres para a venda de excedentes e 55 mil comunas foram desmanteladas.
A abertura ao capital estrangeiro e a ênfase no comércio exterior vieram numa segunda fase, inspiradas nas zonas de processamento de exportações de
outros países do leste asiático.
O capital doméstico não era
suficiente para manter a China
crescendo, mas a suspeita em
relação aos países capitalistas
permanecia forte. A idéia das
Zonas Econômicas Especiais
foi um meio de driblá-la: quatro
regiões da costa foram isoladas,
inicialmente para atrair investimentos da diáspora chinesa
em Hong Kong e Taiwan. O número de regiões abertas foi ampliado até atingir toda a costa.
O último setor afetado pela
reforma foram as grandes estatais, até hoje um dos nós da economia chinesa. Temeroso do
desemprego em massa que resultaria da privatização ou do
fechamento de empresas, o governo optou por medidas paulatinas, começando em 1983
com a taxação do lucro -que
poderia ser reinvestido- e a
criação, em 1986, de um sistema de contrato para novos trabalhadores (até então empregados para a vida toda) e de incentivos para os gerentes.
O resultado foi modesto, já
que boa parte das estatais operava no vermelho. Para agravar
a situação, o fim do controle de
preços industriais, em 85, provocou inflação. O impulso inicial das reformas no campo tinha se esgotado e o resultado
imediato do fim das cotas agrícolas foi a queda de preços. Os
agricultores reduziram a produção, alimentando reajustes
que passaram de 30% em 88.
A inflação foi, ao lado da corrupção, uma das principais
causas dos protestos estudantis
em 89. "Foi um choque econômico seguido de uma crise política que levou à tentativa mais
organizada, na liderança comunista, de voltar atrás nas reformas", disse Saich.
Depois de mandar o Exército
reprimir os manifestantes,
Deng Xiaoping reinstituiu os
controles de preços. Para conter a inflação, o governo adotou
uma política austera de gastos.
O PIB cresceu 4% em 1989, a
menor taxa desde 1976.
No campo político, segundo
Saich, as reformas foram salvas
pela desintegração da União
Soviética: "A lição que Deng
Xiaoping tirou disso foi que, se
não mantivesse a economia
crescendo, a China iria cair
também". O dirigente fez então
a famosa viagem pelas Zonas
Econômicas Especiais para
mandar o recado de que não haveria retrocesso. Em 1993, o
crescimento chegou a 13,4%.
Um novo repique inflacionário, em 1994, levou o então primeiro-ministro Zhu Rongji a
desencadear a reforma do sistema financeiro. Os objetivos
eram criar um setor bancário
menos suscetível a influências
políticas, reforçar o papel regulador do Banco Central e limpar a contabilidade bancária
das dívidas do setor estatal consideradas impagáveis, que
equivaleriam a 25% do PIB.
A partir de 1998, Comitês de
Administração de Ativos começaram a comprar pelo valor de
face os créditos podres de 1.600
estatais consideradas bem administradas. Os resultados do
"Proer" chinês ficaram aquém
do esperado. No fim de 2004, os
comitês só haviam recuperado
20% do dinheiro gasto na compra das dívidas. Além disso, o
total retirado da contabilidade
bancária corresponde só a 50%
da carteira de créditos podres
dos quatro maiores bancos.
Entre 1993 e 2001, o total de
estatais caiu de mais de 100 mil
para 47 mil. Sua participação
na produção industrial é hoje
de 28%, mas elas empregam
50% dos trabalhadores urbanos, recebem três quartos dos
investimentos do Estado e 67%
dos empréstimos bancários.
É esse tipo de problema que
alimenta o debate entre os que
aplaudem a estratégia gradualista, como Joseph Stiglitz, da
Universidade Columbia, e Dani
Rodrik, de Harvard, e os que
acreditam que a China cresce
apesar do gradualismo, como
Jeffrey Sachs, de Columbia.
Sachs, que desenhou a terapia de choque na transição russa, diz que as reformas funcionaram quando houve mudanças mais radicais, como o fim
das comunas.
Stiglitz e Rodrik reconhecem
as diferenças entre a Rússia industrializada e a China agrária
no ponto inicial das reformas.
Mas apontam outros fatores,
como a descentralização da
economia chinesa combinada a
um Estado central que, ao contrário do russo, estava longe da
implosão. Essa análise enfatiza
o papel do Estado na calibragem da transição e afirma que
um mercado desgovernado
produz resultados caóticos.
"No que eu concordo com
Stiglitz é que você deve trabalhar com o que tem. É preciso
criar incentivos para fazer as
instituições que existem funcionarem de maneira diferente. Não se pode cortar tudo e esperar que algo eficaz nasça no
lugar", disse Saich. Mas para
ele, o gradualismo "deu o que
tinha que dar" na China.
Em sua opinião, o modelo
chinês se ressente da falta de
flexibilidade política para lidar
com possíveis crises na economia. O crescimento tornou-se a
fonte de legitimidade do regime. Nesse aspecto, a Índia tem
vantagens sobre a China.
"A Índia pode lidar com uma
queda dramática no crescimento. Troca o governo, passa
por uma crise, mas vai adiante.
A China não tem um sistema
político que possa se manter
perpetuamente. Se eles administrarem a transição política
como administraram a econômica, todos vão ser felizes. Mas
não há garantias. É uma transição perigosa e a maioria dos
países tende a fazê-la em momentos de crise."
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