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Hemingway faz paródia de si mesmo
MÁRIO TEIXEIRA
Especial para a Folha
Em 1935, a revista da esquerda "New Masses" encomendou a Hemingway,
então com 36 anos, um artigo sobre os efeitos devastadores de um
furacão que varreu a costa da Flórida, matando cerca de
mil operários, a maioria veteranos de guerra. Os operários
trabalhavam na construção de uma ferrovia no local da tragédia,
amontoados em acampamentos provisórios, sem as menores condições
de segurança.
"Quem assassinou os veteranos?" saiu em setembro do mesmo ano.
Era o auge do New Deal, a política de "bem-estar público"
do governo Roosevelt.
"Ter e não ter", de 1937, é imediatamente posterior
a esse artigo. É o único romance de Hemingway ambientado
em seu país natal.
A história se passa em Key West, então um lugarejo miserável,
uma zona portuária frequentada por pescadores, vagabundos e marginais,
"aqueles que viram o sonho americano transformar-se em pesadelo".
Foi o romance que marcou a suposta adesão do escritor à
luta democrática.
O protagonista, Harry Morga, é dono de um barco, que aluga para
distrair grã-finos. Logo no início, ele é enganado
por um deles, e fica no prejuízo. Em seguida, o seu barco é
apreendido pela polícia alfandegária, quando era usado para
contrabandear bebida. Após tantas injustiças, Morgan resolve
fazer qualquer coisa para sobreviver. Temos aí o cenário
perfeito para um libelo de crítica social, seguindo o curso do
citado artigo. Mas essa impressão logo desmorona. Morgan é
movido pela necessidade, mas seus atos não podem ser justificados.
E se não há o colorido da ideologia para ilustrar o livro
recurso que, por si só, seria ridículo, como
queria a esquerda americana de então, o que resta ao leitor?
Resta engolir uma história onde um herói maneta é
capaz de dizimar quatro experimentados terroristas cubanos e esganar um
chinês adulto, enquanto aceita todo tipo de serviço sujo
para ganhar dinheiro, em nome de um código de honra deturpado para
alimentar decentemente sua três filhas, por exemplo, ele não
hesitaria em matar seu comparsa, não fosse este salvo, na última
hora, pela lista de tripulantes, onde constava seu nome.
O livro é estruturado em três partes que encadeiam as peripécias
de Harry. Alguns capítulos podem ser lidos como histórias
autônomas, como o primeiro; outros apresentam artifícios
precários, que registram impressões diversas de um mesmo
fato, numa tentativa desajeitada de simultaneidade, caso dos capítulos
nove e dez, ou ainda a longa sucessão de ambientes luxuosos do
capítulo 24, em contraste com a pobreza dos "conchos"
de Key West.
Num de seus contos, intitulado "Escrever", o próprio
Hemingway, na persona de seu alter ego Nick Adams, diz que Joyce inventara
centenas de truques novos, e que o fato de serem novos não os fazia
melhores, pois acabariam transformados em clichês.
Hemingway, ao compor Morgan, o personagem, deixou de lado sua invejável
acuidade e não hesitou em imitar seus próprios truques as
famigeradas frases sincopadas, os diálogos concisos e os famosos
e parcos adjetivos mastigados por um personagem solitário e orgulhoso.
Em "Ter e não Ter", o escritor que, com "O Sol Também
se Levanta", apontou caminhos novos para a literatura deste século,
escreveu uma paródia de si próprio. E o resultado, para
quem respirou o ar primordial dos seus melhores textos, é constrangedor.
MÁRIO TEIXEIRA
é roteirista de cinema e TV
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