São Paulo, 13 de fevereiro de 1994

Niemeyer rebate seus críticos
e defende o triunfo da beleza

Aos 86, o arquiteto-monumento fala de sua trajetória
e reafirma seus princípios estéticos e políticos

SILVIO CIOFFI
Editor de Turismo

"Esse prefeito do Rio é inepto, é péssimo, deveria ter me consultado sobre a ampliação dos camarotes do Sambódromo". A bronca é do mais conhecido e polêmico arquiteto brasileiro. Aos 86 anos (completados em dezembro), Oscar Niemeyer protesta contra o que chama de desrespeito ao direito autoral –a decisão da Prefeitura carioca de erguer estruturas metálicas originalmente não previstas na Passarela do Samba. "Quero meu projeto correto justamente agora, no Carnaval", diz ele.
Com a autoridade de quem construiu na França, Itália, Portugal, EUA, Venezuela, Alemanha, Israel, Líbano, Argélia, Congo e Gana –para mencionar alguns países–, Niemeyer é uma dessas figuras que aprendeu a lidar com a controvérsia. Muitos de seus projetos foram duramente combatidos e mesmo hoje há quem ache falta de árvores no Memorial da América Latina (SP) e defeitos na arquitetura de Brasília (DF). Com a mesma fala pausada, o arquiteto que Le Corbusier dizia ter "as montanhas do Rio nos olhos" explica sua obra, defende suas idéias comunistas, fala de seus artistas preferidos e de seus amigos.
A entrevista que se segue é um resumo de conversas mantidas nos últimos meses. A primeira delas aconteceu no final de novembro, na cobertura do edifício Ypiranga, um velho prédio da avenida Atlântica, em Copacabana, onde, nos últimos 30 anos, Niemeyer trabalha e, nos finais de tarde, recebe os amigos. A última conversa, mais nervosa do que de hábito, mas igualmente cordata, foi mantida por telefone, minutos antes do fechamento dessa edição. Foi aí que o maior arquiteto brasileiro investiu novamente contra as arquibancadas metálicas do Sambódromo: "Sou contra tudo o que é provisório".

Folha - Vamos falar um pouco da sua infância, do seu avô Ribeiro de Almeida, da casa nas Laranjeiras, de como era o Rio de Janeiro?
Niemeyer - Meu avô Ribeiro de Almeida nasceu em Maricá, Estado do Rio. Meu avô Niemeyer eu não conheci. Ele foi juiz de direito em Maricá. Depois foi para o Rio e moramos juntos até me casar. Ele se tornou ministro do Supremo, e nossa casa era muito frequentada. Nesse momento em que está todo mundo se delatando, a lembrança dele é muito boa para mim. Era um sujeito correto. Morávamos numa casa que foi feita quase para minha mãe. Ele ficava embaixo com os dois filhos e no andar de cima ficávamos nós; eu, minha mãe, meu pai, meus irmãos. Éramos seis.
Tive uma meninice muito feliz. Meu avô não era rico –e uma coisa que me agrada é que ele morreu e deixou só uma casa hipotecada, depois de ser ministro do Supremo muitos anos. Vivíamos bem e lembro da casa grande, da sala de jantar. Lembro que tinha dois pianos, um no hall de entrada e outro na sala de visitas. Minha mãe cantava, minhas irmãs tocavam piano, eu jogava futebol na rua, cada um timha um "ofício". Morávamos perto do Fluminense. Fui para o Colégio dos Padres Barnabitas e quando me lembro da família, lembro de como resisti a essa idéia da religião católica. Meu avô tinha missa em casa, minha avó abria a janela da sala e os vizinhos vinham. Nunca acreditei nessas coisas porque achei um mundo tão injusto, tão falso e o ser humano tão frágil... Quando entrei para o Partido Comunista, anos depois, esse era o meu caminho natural. Minha mocidade de rapaz de 21 anos, era o Fluminense, o Clube de Regatas, o Lamas, onde a gente reunia e que era nosso escritório. Jogávamos bilhar, batíamos papo, íamos para a zona da Lapa, para os cabarés do tempo antigo. Depois me casei e a vida mudou. Meu pai tinha uma tipografia. Cheguei a trabalhar com ele. Gostava de desenhar –e foi o desenho que me levou à Escola de Arquitetura.

Folha - O sr. já era casado quando entrou na Escola de Belas Artes?
Niemeyer - Já. Quando casei estava ajudando meu pai e tinha uma prima com uma casa, já uma senhora. Vivíamos do aluguel da casa dela. Eu trabalhava de graça com o Lúcio Costa. Queria aprender. Como me disseram que o escritório do Lúcio era o melhor, foi lá que fui trabalhar. Fiquei lá dois anos, até me formar.

Folha - Dos tempos de boemia carioca o que o sr. lembra?
Niemeyer - Ah! lembro da Lapa, da zona do meretrício, do cinema na av. Rio Branco. Lembro que me incomodava muito, na orquestra do cinema, um velhinho que tocava violino. Ficava com pena dele, um sujeito velhinho ter que ficar distraindo as pessoas. Depois, a gente pegava o bonde, saltava na Lapa e ia para os cabarés... Havia um ar de vadiagem, de malandragem, de briga naquela área que era agradável. Depois voltava-se para o Lamas. Quando tinha que acordar cedo o garçom do Lamas telefonava para minha casa. E assim foi... até me casar.
Quando entrei para a Escola de Belas Artes, sabia pouco fora da arquitetura, como todos os colegas. O arquiteto é muito preso ao assunto da arquitetura. Parece que a arquitetura é suficiente. Mas o fato é que a arquitetura e outras culturas se entrelaçam. Lembro que conversava muito com o Rodrigo Mello Franco de Andrade. Quando falo das pessoas que tiveram influência na minha vida de homem, lembro sempre do Rodrigo, que não era arquiteto. Ele era diretor do Patrimônio Histórico. Fui trabalhar lá uns tempos e ele sempre me animava: você precisa ler os clássicos, os portugueses antigos. Fui me interessando e li muito.
Foi muito útil para minha vida profissional: quando os projetos são aprovados é mais pelo texto –de arquitetura ninguém entende. O Juscelino mesmo: eu mostrava o projeto e antes de ver, ele já dizia: formidável! Era meu amigo e tinha confiança no meu trabalho. O Gustavo Capanema fazia a mesma coisa. O que conta mesmo é o texto, explicado, bem feito. Na França, quando eu apresentei um projeto grande para a Renault, me lembro que o presidente da empresa prendia as plantas na parede à medida que lia o texto. Quando acabou de ler, estava aprovado.

Folha - O sr. acha que o meio é menos importante do que a herança genética?
Niemeyer - Acho que o meio tem influência, mas não é tanto assim. Às vezes o sujeito se compõe diante da vida, ele adota esses princípios todos que a sociedade obriga, mas um dia esse aparelho de contenção não funciona e ele se revela.

Folha - Quando o sr. conheceu o Gustavo Capanema e o Le Corbusier?
Niemeyer - Primeiro conheci o Lúcio. Depois foi o Rodrigo, que foi muito bom para mim, um sujeito que me obrigou a me informar. Depois foi o Capanema. Considero o período do Capanema como o da Semana de Arte Moderna de São Paulo, porque no governo dele houve muita abertura para a liberdade da criação. Era um sujeito muito bom, honesto, decente.

Folha - O prédio do Ministério da Educação, no Rio, é de 1936, não é?
Niemeyer - O prédio é de 36. O Le Corbusier estava aqui para fazer palestras e o projeto da Cidade Universitária. Nesse meio tempo, o Lúcio pediu para ele examinar o projeto. E ele fez um outro projeto, linear. Nós colaboramos, como uma equipe que trabalha junto.

Folha - Esse foi seu primeiro encontro com Le Corbusier?
Niemeyer - Sim, mas o Corbusier mais importante foi o dos livros. Sua obra didática é muito importante. Teve influência em todas as gerações e também na minha. Quando ele saiu daqui, me senti mais livre, fazia o que eu bem entendia. Naquele tempo já estávamos no caminho da arquitetura moderna, mas ainda presos a uma porção de princípios, de preconceitos, de modo que, aquela idéia que ele deixou, de que a arquitetura é um coisa de invenção, me libertou.
Quando fui trabalhar na Pampulha me sentia mais à vontade para fazer o que eu queria. Nunca tive muito apreço pelo ângulo reto, que ele defendia como uma coisa essencial. Achava que a arquitetura feita em concreto armado podia ser mais livre. Quando o espaço é maior, o vão é grande, o concreto armado sugere a curva. É uma coisa que surge naturalmente do próprio sistema, do material. Achava também que a nossa arquitetura antiga não era muito nossa... Mas ela tinha esse lado das igrejas barrocas, ricas em suas formas. Quando fiz a Pampulha, era contra o ângulo reto. Achava que representava uma arquitetura mais rígida, mais fria, que o Ludwig Mies van der Rohe tão bem fazia. Uma arquitetura mais para estrutura metálica.

Folha - A Bauhaus nesse tempo era muito importante?
Niemeyer - Era, mas nós a criticávamos. O Le Corbusier disse um dia que a Bauhaus era o paraíso da mediocridade. Eles tinham um estilo, estabeleciam uma série de regras e saindo daquilo estava errado. Mas além do Van der Rohe havia o Walter Gropius. O Gropius era um professor de talento, embora não fosse um arquiteto excepcional.

Folha - O sr. conhecia os dois, o Walter Gropius e o Van der Rohe?
Niemeyer - Estive com o Gropius e ele se revelou um pouco. A gente escuta os mais velhos –mas às vezes eles também falam besteira, não é? Depois que ele visitou a minha casa em Canoas (RJ), ele disse no portão: olha, Oscar, sua casa é muito bonita, mas não é multiplicável. Achei uma besteira: como é que a casa podia ser multiplicável? A casa era num determinado terreno, para ser igual teria que ser noutro terreno parecido. E ela foi feita para mim, com a minha vida mais simples, de arquiteto.
Antes mesmo da Pampulha, quando comecei a estudar, sentia que o racionalismo não fazia sentido. A arquitetura que gosto –e que bem se caracteriza no Memorial da América Latina, em São Paulo– é a que utiliza a técnica em todas as suas possibilidades. Por exemplo, no Memorial tem uma viga de 90 metros. Acho que nunca se fez uma assim. Mas o apoio da viga eu não coloquei onde devia: subi, achei que ficava mais bonito.

Folha - Foi o Gustavo Capanema apresentou o Juscelino Kubitschek para o sr.?
Niemeyer - Ele me apresentou ao Benedito Valladares, que ia fazer um cassino em Belo Horizonte. Fiz o projeto, e aí conheci o Juscelino, que era candidato a prefeito. Nesse meio tempo o Juscelino foi eleito e me chamou. "Oscar, a coisa mudou. Não vamos mais fazer um cassino, vamos fazer um centro de turismo". A Pampulha foi a obra mais importante que fiz, porque foi o início do meu trabalho de arquiteto, quebrando uma série de regras, de preconceitos –o grande entusiasmo da minha geração. Fiz o meu trabalho de arquiteto e o Juscelino mostrou que era um homem livre, de espírito aberto.

Folha - E o Cândido Portinari, quando o sr. o conheceu?
Niemeyer - No Ministério da Educação. Lembro que ele era um desenhista fantástico, que conhecia a técnica mais apurada. O Capanema reviveu algo que havia antigamente e que os arquitetos da Bauhaus tinham esquecido: a colaboração dos arquitetos com os artistas plásticos. De modo que ele chamou o Portinari, o Celso Antônio, o Bruno Giorgi e procurou voltar àquele entendimento, a uma síntese das artes com a arquitetura. Na Renascença, por exemplo, os palácios eram cobertos de pinturas e esculturas. Quando veio a Revolução Industrial e a arquitetura foi obrigada a um caminho apurado com relação à técnica construtiva começaram a aparecer materiais novos. Então, a idéia foi fazer uma arquitetura mais simples –mas com esse defeito. Quando opinei sobre a reforma do ensino na Argélia, sugeri que o arquiteto deveria ter certo conhecimento das obras de arte. Na Pampulha, chamei o Portinari. Quando projetei o Memorial da América Latina chamei os artistas que achava mais adequados para cada trabalho. Fizemos um livro só com as pinturas e esculturas do Memorial. Há uma lei que estabelece que qualquer obra tem que ter uma porcentagem do orçamento para obras de arte, mas isso nunca é atendido.

Folha - E o Bruno Giorgi, quando o sr. conheceu?
Niemeyer - O Giorgi eu conheci há muito tempo. Foi um escultor importante e trabalhou no Ministério da Educação. Era um progressista que se rebelou lá na Itália contra o fascismo. Foi um sujeito muito importante para a escultura no Brasil.

Folha - Quando o sr. escolheu artistas brasileiros para fazer Brasília, se tivesse que escolher um escultor estrangeiro, quem o sr. escolheria?
Niemeyer - O Henry Moore, meu escultor preferido.

Folha - E que outros grandes escultores o sr. mencionaria, o Alexander Calder, por exemplo?
Niemeyer - É outro gênero, mais festivo. O Moore é mais importante. Muito embora o Calder tenha feito uma coisa dele, diferente, como o Fernand Léger na pintura. Uma pintura do Léger você olha sabe que o quadro é dele.

Folha -
O sr. conheceu os dois?
Niemeyer - Conheci.

Folha - O sr. não gosta da obra do arquiteto Philip Johnson?
Niemeyer - Não é que não gosto. É a posição dele que varia. Ele era um dos que criticava a arquitetura que a gente fazia e agora faz o pós-moderno. De modo que eu não critico. Ele mudou de idéia. É um homem inteligente.

Folha - O sr. construiu praticamente no mundo inteiro, na Europa, na América Latina, na Argélia, em Gana, no Líbano, em Israel, nos EUA. Construiu também na então URSS?
Niemeyer - Não, eu estive na URSS no período do stalinismo. Quando passamos pela escola de arquitetura, alguém me perguntou o que achava da arquitetura soviética. Disse, olha, eu estou com você na política, defendo as mesma idéias, mas confesso que, nesse ponto, não tenho argumentos para defender o que vocês fazem. Eles disseram: "Bom, então você apresente suas críticas". Disse que não estava ali para para criticar. "Mas, já que você pergunta, vou dizer que essa universidade é muito ruim".

Folha - Qual universidade?
Niemeyer - A Universidade de Moscou é muito ruim, os espaçamentos são pequenos para colunas tão grossas, a circulação deficiente e não gosto da iluminação. O arquiteto responsável tinha estado no hotel e me dado um quadro que ele fez, também muito ruim.

Folha - Falando sobre sua militância comunista, o sr. entrou no Partido Comunista Brasileiro em 1945 e saiu em 1991. O sr. é, como disse o jornalista Zuenir Ventura, o último comunista confesso?
Niemeyer - Sou comunista e não acho que o comunismo tenha acabado, mesmo diante dessa crise soviética. O comunismo é uma idéía que acho justa –e estou velho demais para mudar. E essa idéia não tem nada a ver com o fracasso. Se você examinar o que ocorreu na URSS em 70 anos vai ver que houve uma evolução fantástica. Tranformaram um país de mujiques em segunda potência, foram à Lua, ajudaram todos os povos que estavam tentando se libertar, impediram que Cuba fosse invadida, tiveram uma posição de apoio universal.
Economicamente a coisa falhou. O que penso é que talvez o ser humano não estivesse preparado. Enquanto houver esse clima de competição, de poder, em que o homem se fantasia de importante, a coisa é difícil. Veja por exemplo em Cuba, que vive o cerco mais horrível que houve na história. Até alimentos impedem de chegar a Cuba –e o povo está lá de mãos dadas, resistindo. É porque eles seguem o exemplo de Fidel, de uma revolução feita na base do otimismo, da criatividade, da vontade de arriscar.

Folha - Como é que o sr. vê a perestroika e o Gorbatchov?
Niemeyer - Acho que o Gorbatchov foi um calhorda, um traidor. A URSS caminhava bem, pelo menos era um freio nessa luta. Falam que acabou o comunismo, mas o capitalismo é que entrou em crise. Nos EUA e na Europa toda há desemprego, nacionalismo, tendências para a direita outra vez.

Folha - Em alguma ocasião o sr. pensou em se candidatar a senador ou a deputado?
Niemeyer - Não, nunca. Eu sou só desenhista.

Folha - Mas o sr. teve uma relação muito estreita com diversos políticos, começando pelo Juscelino.
Niemeyer - Pois é. Outro dia escrevi um artigo sobre isso, explicando que esse meu contato vem do fato de ser arquiteto. Juscelino, por exemplo: trabalhei com ele a vida inteira. Quando começou Brasília, fui chamado na polícia. Disse o Juscelino que estavam me chamando. Ele disse: "Você não pode ir, tiram seu retrato e eu não posso mais te receber no palácio". Ele telefonou para o general Kruel e disse: "Olha, o Oscar não pode ir, ele é meu elemento-chave em Brasília". O Juscelino achava que eu era um idealista. O Israel Pinheiro, que foi um sujeito muito bom –nunca deram a ele a importância que teve, porque ele foi braço direito do Juscelino– ria: "Ah! você é um poeta"...

Folha - Quando o sr. conheceu o Luiz Carlos Prestes?
Niemeyer - Eu o conheci quando ele deixou a prisão, ocasião que acomodei no escritório uns 15 comunistas que estavam saindo da prisão. Depois de 15 dias enteguei a casa para ele, a minha casa, e disse: olha, você fica com a casa, já que o seu trabalho é mais importante. Ele criou logo o Comitê Metropolitano do Partido Comunista. Às vezes um cliente mais reacionário telefonava para mim, e eu no escritório respondia: "Partido Comunista Brasileiro". O sujeito tomava um
susto.

Folha
- Não houve uma ocasião em que o sr. pensou em fazer um memorial para o Prestes?
Niemeyer - É, a idéia começou no Sul e todo mundo estava de acordo, mas depois ficou difícil, não havia verba. É pena, porque ele merecia. Era um sujeito corajoso, uma pessoa que foi muito importante para o Brasil.

Folha - Falando um pouco de viajar, o sr. tem um medo de avião que é quase que folclórico.
Niemeyer - Realmente eu não gosto. Detesto. Mas viajei muito. No Concorde eu viajei três vezes. Às vezes não quero viajar e arranjo uma desculpa, porque realmente não me agrada viajar. Agora, o governo argentino, na Província de Mendoza, me convidou para trabalhar lá, numa obra importante. Há a possiblidade de ir de navio –porque de avião só em último caso.

Folha - Como é que o sr. ia para Brasília nos tempos da construção?
Niemeyer - Esse negócio de avião me perturbou a vida inteira. Quando fiz a Pampulha, o Juscelino fazia a estrada Belo Horizonte-Rio. Eu viajava na lama. Quando veio Brasília foi a mesma coisa. Durante quatro anos andamos na estrada que estava sendo construída. Um dia o Juscelino disse: "Estou indo para o Rio e você vem comigo". Mas não fui. Peguei o automóvel. Naquela época tive um desastre feio, fiquei um mês machucado, quase morri.

Folha - É verdade que o Raymond Aron queria levá-lo ao Colégio de França?
Niemeyer - É verdade. O Raymond Aron foi um jornalista e um filósofo importante, do "Le Monde". E o Colégio de França é feito a Academia de Letras, onde se encontram intelectuais. Conversei com ele duas vezes e ele se empenhava muito para que eu fosse. No fim ele me disse: "Olha, está tudo combinado, você vai procurar o secretário do Colégio de França". O Colégio é uma organização importante, mas não fui. Achei chato ter que procurar as pessoas. Depois recebi uma carta lamentando o fato de não ter ido. Ele era muito inteligente, foi um sujeito que eu gostei de conhecer.

Folha
- O que o sr. acha das posições liberais dele?
Niemeyer - Mesmo em artigos, sempre disse que nunca a posição política de um amigo ou de uma pessoa com quem eu trabalhasse influiu na minha coduta. Tenho amigos reacionários, mas são bons. São sujeitos que são meus amigos como antes. Pensam diferente e acho que eles estão equivocados. Eles pensam o mesmo a meu respeito. Tanta gente boa foi do Partido Integralista, não é? O importante é o sujeito ser decente.

Folha - O Vinicius de Moraes foi seu amigo?
Niemeyer - Foi. Lembro um dia em que o Vinicius de Moraes declarou no jornal: "Amigo é o Oscar Niemeyer e o Pixinguinha". Gostei mais do que se o sujeito elogiasse a minha arquitetura.

Folha
- Contam que pelas tantas alguém disse que as obras de Brasília iam ser paralisadas...
Niemeyer - É.

Folha - E que alguém respondeu: "Que belas ruínas vamos ter". É verdade?
Niemeyer - É verdade, acho que foi o André Malraux.

Folha - E seu relacionamento com o arquiteto Vilanova Artigas, como foi?
Niemeyer - Ele era um arquiteto muito bom, uma pessoa muito correta politicamente e tudo. É um sujeito que conta, é importante na história da arquitetura brasileira.


Folha -
Como é que o sr. cria, qual é o processo? Como vem a forma? Como é
que ela pousa no papel?
Niemeyer - Às vezes o terreno, o programa, tudo é tão claro, que leva logo à solução. Quando fiz, por exemplo, o Museu de Niterói, que é um dos trabalhos que gosto mais, surgiu espontaneamente. Era um promontoriozinho estreito junto do mar e o projeto tinha que ter um apoio central –só isso. Então surgiu feito uma flor, um cálice, naturalmente. O Memorial da América Latina surgiu também de repente. Estava no hotel e comecei a fazer um croquis imaginando como podia ser e fiz uma perspectiva. Aquela perspectiva é que marcou o projeto. Tem vezes que demora mais. Quanto mais simples é o terreno, mais possibilidades ele oferece. Quando o terreno é pequeno ou inclinado demais ou o programa não está muito de acordo com o terreno, aí a solução surge mais espontânea.
Em geral, começo a tomar o contato com o problema, com o programa, e deixo a coisa fixar na cabeça. Às vezes deitado na cama, antes de dormir, é que resolvo o projeto. Lembro que uma vez, na França, estava pensando na mesquita de Argel. Levantei de madrugada e desenhei direto!
Tem coisas que surgem de repente. Depois que tenho uma idéia, faço os croquis. Quando chego a uma solução que me agrada, chamo os técnicos do concreto para conversar, ver os problemas e começo a escrever um texto explicando o projeto. Aí, se eu começo a não encontrar muitos argumentos, é porque falta qualquer coisa. Então volto ao desenho. Quando fiz o Palácio do Planalto recuei as colunas do edifício. Recuei, afastei uns seis ou sete metros e, desenhando, comecei a me imaginar andando entre as colunas. Comecei a sentir que se elas fossem mais trabalhadas ficariam mais bonitas, como aqueles corredores antigos com abóbadas. Isso me levou a uma solução diferente, que contrariava um pouco a parte estrutural do projeto. Mas fiz as colunas como queria, porque achei que o Palácio ficaria mais festivo.

Folha - Como é que o sr. vê uma certa banalização das formas que o sr. cria?
Niemeyer - Isso me agrada, até porque eles gostaram do projeto. Fui um dia para a Líbia e fui tomar banho de mar. Quando saí da água vi um prédio com as colunas do Alvorada. Aquilo me deu um prazer... Outra vez vinha pela rua François Premier, em Paris, e passei pela Kodak. Era véspera de Natal e a Kodak tinha enriquecido a fachada com uma grande fotografia da coluna do Alvorada.

Folha
- Na sua infância as favelas eram iguais às favelas de hoje?
Niemeyer - Deviam ser mais distantes, não me lembro. Mas a miséria sempre existiu. Em tese, esses problemas todos se reduzem quando a cidade é menor. O Rio é uma cidade para 2 milhões de habitantes. É uma cidade aprazível, as ruas com as casas ajardinadas, arborizadas. O centro tranquilo. Antes era possível ir ao centro da cidade, passear, ver as meninas passando, tomar um chope. Hoje você chega lá e fica no meio de uma multidão. Aquela cidade feita para 2 milhões não pode ter 15, senão degrada. Aí você começa a ser levado a fazer viadutos. Os viadutos como os do Rio e de São Paulo, entre prédios, são muito ruins.

Folha - O sr. fez outras coisas além de arquitetura e de escultura, por exemplo, cenários para teatro. O sr. fez muitos cenários?
Niemeyer - Fiz para o Vinicius de Moraes, no Municipal do Rio. Gostei de fazer, gostei daquele período de acompanhar as pessoas de teatro, ir lá e ver como é que a cena se desenrolava. Depois o café com aquela turma. É uma vida simpática.

Folha - Há outra história, talvez folclórica, que diz que o sr. estava na França e que o Fidel disse que mandaria um navio buscá-lo, pois queria um projeto seu. Aconteceu?
Niemeyer - Ele me convidou para fazer um projeto na praça da Revolução, mas era muito difícil chegar lá. Tinha que pegar o avião na Espanha... e acabei não indo. E ele, brincando, disse que mandaria um navio...

Folha – O sr. ganhou a medalha do Instituto de Arquitetos dos EUA, a Legião de Honra da França, o Prêmio Lênin, o prêmio Príncipe de Austúrias, o "Pritzke Prize", que é um Nobel da arquitetura. Como é ser verbete de enciclopédia?
Niemeyer - Naturalmente me agrada quando vejo que o meu trabalho é aplaudido. Mas não tenho muita ilusão com essas coisas. Nós vivemos iludidos, fazemos as nossas fantasias, trabalhamos, cada um no seu setor, mas nada é muito importante.

Folha - Como vão ser as cidades do futuro?
Niemeyer - Sempre digo que não sabemos como vão ser as cidades do futuro e que elas devem ser apoiadas em sociedades diferentes. A cidade do futuro –dentro da minha concepção– é uma cidade de homens iguais, livres, amigos, que andam de mãos dadas, uma cidade ideal.

Folha - Se Brasília fosse feita hoje, em termos arquitetônicos, o sr. acha que ela receberia críticas muito diferentes ?
Niemeyer - Não, eu acho que em Brasília o Plano Piloto é correto, se adaptou muito bem ao local. Brasília tem grandeza onde deve ter grandeza, é simples e humana nos outros setores. A arquitetura é assim, eu não sei se faria diferente. A arquitetura evoluiu em função da técnica, do interesse em vencer o espaço.

Folha - E o Masp? Que contato o sr. teve com a Lina Bo Bardi?
Niemeyer - Foi uma arquiteta formidável. O Masp é um projeto ultra-atualizado e ela era muito exigente, tinha bom gosto, foi importante na arquitetura brasileira.

Folha - Toda essa discussão da beleza versus a praticidade, o que é funcional, o que não é funcional, como é que o sr. vê?
Niemeyer - Acho que o prédio pode ser correto, deve ser correto. Mas, para ele chegar ao nível de uma obra de arte tem que ser bonito. Para ser bonito, ele tem que ser diferente, porque a obra de arte está ligada à invenção. Agora, a parte de utilização, que às vezes os sujeitos querem criticar, dizendo "é bonito mas não funciona bem", isso é o mais fácil. Posso dar o exemplo da Editora Mondadori, que fiz em Milão. Quando a Mondadori precisou fazer outro prédio, veio novamente pedir a mim. Se o prédio não estivesse funcionando bem, eles não viriam. A mesma coisa com o Partido Comunista, em Paris. Quando falam do Memorial, dizem que a praça não tem árvores. A praça é para ter espetáculos, não é para ser um jardim botânico.

Folha
- Voltando ao seu processo de criação, o sr. tem uma dimensão quase que de criança quando faz os desenhos. Os croquis são muito leves, quase que uma brincadeira. Quando o sr. começa a pensar numa forma?
Niemeyer - Penso sempre na coisa bem simples, mesmo quando faço um prédio, por exemplo, como o do Congresso.

Folha - Qual obra é a sua preferida?
Niemeyer - Varia tanto. Por exemplo, a Universidade de Constantine, na Argélia, tem coisas que gosto. A Mondadori, num outro gênero, eu gosto. Gosto do Congresso de Brasília. Gosto quando a gente sente que causou espanto, causou dúvida, como no caso do Itamaraty.

Folha - É dos seus preferidos ou não?
Niemeyer
- Não, prefiro a praça dos Três Poderes, prefiro a Catedral.

Folha - E a embaixada do Brasil em Cuba foi construída?
Niemeyer - Não, não foi. O Abreu Sodré era ministro das Relações Exteriores... Ele me ofendeu e acabei dando o troco. Aí a coisa parou.

Folha - A fábrica da Duchen, na via Dutra, o sr. ficou triste com a demolição?
Niemeyer - É lógico, porque foi um amigo meu que fez. Ele gostava muito daquilo, o Joaquim Cardozo.

Folha - O projeto era seu?
Niemeyer
- Claro, mas eu fiquei com mais pena foi da escola Júlia Kubitschek, em Brasília, que era uma escolinha muito boa, de concreto, a fachada inclinada... Passaram uma estrada e derrubaram.

Folha - O que o sr. acha da obra do Zanine Caldas, que virou um arquiteto?
Niemeyer - Eu não quero dar opinião. Ele é engenhoso. Fazia maquetes e móveis. Tem casas que ele fez que são bonitas. Já o Cardozo era um intelectual na acepção da palavra. Lembro que uma vez o Malraux disse que intelectual é um sujeito que é capaz de fazer a bomba atômica mas não faz porque ele sabe que não deve.

Folha - Afinal, para que serve a arquitetura?
Niemeyer - Ela é o abrigo do homem, é o lugar que o homem faz, constrói e vive. Serve para ele trabalhar, estudar, para viver. Mas como tudo o que se faz, a idéia sempre é fazer uma coisa bonita. A beleza sempre cercou o homem. Veja o nosso ancestral mais antigo: ele pintava as cavernas.

Folha - O seu medo de avião é primo do seu medo de médico? O sr. tem um irmão médico, não é?

Niemeyer
- Tenho, o irmão médico é meu melhor amigo, qualquer coisa é com ele que lido. Mas tenho é preguiça: sei que uma operação de catarata é uma coisa simples, todo mundo faz. Mas eu teria que ficar quatro dias sem poder fazer nada. Meu tempo é curto e não posso perder quatro dias.

Folha - Ainda não falamos do Burle-Marx.
Niemeyer - Não quero falar porque não gosto dele. É um grande artista, um bom pintor, um paisagista formidável. É uma pessoa importante, mas não conheço mais ele...

Folha - Para arrematar nossa conversa, será que o sr. podia falar o que realmente aconteceu no seu encontro com o Le Corbusier por ocasião do projeto do prédio da ONU?
Niemeyer - É o seguinte: fui convidado com mais dez arquitetos estrangeiros para projetar a sede da ONU. Cheguei lá em Nova York, de avião, o Courbusier me telefonou. Fui encontrar com ele na 5ª Avenida. Ele me explicou que estava havendo muita dúvida sobre o projeto dele –cada um apresentava um projeto– e queria meu apoio. Eu disse que sim. Ele era o mestre. Fui lá para o escritório da ONU e comecei a ajudar no projeto dele. Passaram-se os dias e o diretor-chefe lá do serviço me disse que, como todos os outros arquitetos, eu deveria fazer um projeto, não ficar ajudando o Corbusier. Eu disse que achava que o projeto dele era melhor, mas ele queria ver o meu. Esperei, mas aí depois de três dias o Corbusier disse: "É melhor você fazer o seu". Aí eu fiz o projeto, que foi aprovado. O próprio Corbusier reconheceu que era um projeto elegante. Mas, ao sair, me pediu que conversasse com ele. Fui lá. Ele examinou meu projeto e pediu que fizesse uma modificação. Estava constrangido, chateado... mas concordei. O meu projeto era o projeto 32, o dele 23. Então apresentamos juntos o projeto 23/32. Ele nunca falou nisso.
O próprio diretor-chefe queria realizar o meu projeto. Mas esse segundo projeto que fiz com ele foi o que serviu de base –e assim foi construído o prédio. Ele nunca falou no assunto. Um dia, estávamos almoçando em Paris, e ele dissee: "Você é generoso". Compreendi que estava se referindo àquela manhã, que eu deixei de lado o meu projeto para atendê-lo. Mas o que eu fiz –que hoje talvez não fizesse– foi uma coisa natural. O sujeito mais jovem, que considerava o outro um mestre, quis ficar ao lado do mestre.

Folha
- É verdade que na década de 30 o Le Corbusier veio de zepelin para o Brasil?
Niemeyer - É, foi em 1936.

Folha
- O que o sr. pode dizer dele em termos pessoais?
Niemeyer - Eu digo particularmente a você que ele era um sujeito incompreendido, egoísta. Ele fez uma malandragem comigo, mas isso não conto a ninguém. Mas, ele era um grande arquiteto, isso era.


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