São Paulo, 19 de julho de 1992


Celso Furtado


O maior economista brasileiro fala sobre seu novo livro,
a renegociação da dívida e sua paixão pela literatura

AMIR LABAKI
GILSON SCHWARTZ
Da equipe de articulistas

O próximo século poderá ser o da fragmentação do Brasil, caso se insista no atual modelo econômico. A renegociação da dívida externa brasileira, recentemente fechada, foi a administração de uma derrota _nunca uma vitória. Jânio Quadros (1917-1992) tinha “gênio”, potencial de estadista e poderia ter sido o De Gaule brasileiro. Já Juscelino Kubitschek (1902-1976) não marcaria a história brasileira se se descontasse de seu currículo a fundação de Brasília.
Às vésperas de completar 72 anos (em 26 de julho de 1992), Celso Furtado transpira serenidade, a serenidade dos céticos, seja ao discutir prognósticos catastrofistas ou ao relembrar o quase meio século de história que ajudou a fazer e a interpretar. O mais conceituado economista brasileiro, autor de clássicos como “Formação Econômica do Brasil” (1959), traduzidos no mundo inteiro, veio no início da semana a São Paulo para lançar seu 28º livro, “Brasil: Uma Construção Interrompida”, (Paz e Terra.
Furtado falou com exclusividade para a Folha, por mais de duas horas, na manhã da última terça-feira. Foi uma entrevista ímpar. Tradicionalmente reservado quanto à discussão de aspectos autobiográficos, foram estes que desta vez mais o estimularam. Primeiro, Celso Furtado discorreu com sua tradicional elegância distanciada sobre a conjuntura econômica brasileira e sobre seu novo livro. Convidado a relembrar sua trajetória, o arredio memorialista da trilogia “A Fantasia Organizada” (1985), “A Fantasia Desfeita” (1989) e “Os Ares do Mundo” (1991), surpreendeu ao se transformar num depoente risonho e expansivo.
Foi esta apenas a primeira surpresa. O maior economista brasileiro revelou que a propensão literária da juventude o acompanhou até o exílio, flertando Furtado até 1984 com uma carreira de “romancista da maturidade”. O historiador elogiado por Fernand Braudel reconhece hoje que a razão nem sempre dá conta de explicar a história. O cassado com injusto estigma de “comunista” (Furtado sempre se situou na “esquerda independente” e jamais foi do PCB) afirma ter recebido maior influência do culturalista Gilberto Freyre (“Casa Grande e Senzala”) do que do marxista Caio Prado Jr. (“Formação do Brasil Contemporâneo”).

Folha - “Formação Econômica do Brasil” é um livro de esperança; “Brasil, Construção Interrompida” parece o final de um ciclo em que pelo menos parte daquela esperança se abalou. Como o sr. compara esses dois momentos da sua produção intelectual?
Furtado
- A minha preocupação desde o começo foi entender o Brasil. Mas, à medida que eu fui avançando nesse trabalho, fui compreendendo que para entendê-lo há que entender outra coisa maior, até chegar a entender o homem inteiro, porque há tal interdependência entre os sistemas econômicos atuais, e de tal maneira o Brasil se transformou numa peça importante dessa economia mundial, que sem essa idéia de ver a história como uma coisa global nós não podíamos avançar muito. E eu sempre insisto nesse ponto que a nossa “intelligentsia”, os nossos pensadores são muito provincianos, preocupados com os acontecimentos imediatos. Agora mesmo estamos vendo isso. O Brasil tem uma crise muito séria, tem uma crise de civilização. É todo o modelo de desenvolvimento do Brasil que está em causa. E, por outro lado, há uma crise de reinserção na economia mundial, e todos só pensam no problema PC Farias. Não minimizo a importância disso, porque esses pequenos sintomas são importantes para se compreender a realidade brasileira. Mas é preciso ver globalmente. Temos que pensar a partir de uma visão global do mundo.

Folha - Mesmo partindo para essa visão global, em sua obra há um grande “conceito-âncora”, que é o Estado nacional.
Furtado - Exato. Em realidade, a minha visão da história moderna é a história dos Estados nacionais. O que se chama história moderna começa exatamente quando os atores Estados nacionais passam a desempenhar papel decisivo, de agenciamento, de ação pública.

Folha - Todo o contexto econômico hoje, tanto em termos de política econômica como das estruturas econômicas, nega o Estado nacional como agente relevante.
Furtado - Exato, porque acontece o seguinte: o Estado nacional, que desempenhou um papel decisivo, passou depois a ser um pouco empecilho. Agora, há situações diferentes, porque o Estado nacional tem que nascer com vocação de universalidade como os Estados Unidos, onde o Estado nunca teve o mesmo papel que em outras partes. Nasceu já como que configurado para se planetarizar. E foi lá que surgiu a grande empresa, foi lá que surgiu, na verdade, a idéia de seguir um sistema monetário internacional etc.

Folha - No caso do Brasil, o sr. acha que a construção do Estado nacional se encontra interrompida ou bloqueada?
Furtado - O caso do Brasil é um caso singular. É que o Brasil foi feito pelo Estado nacional. Em países como o México ou mesmo a Colômbia, o Peru, pré-existia uma população importante, a ameríndia, e essa população é o núcleo desses países até hoje. Agora, países como o Brasil, Argentina, são países fabricados pelo colonizador. É evidente que, olhando para o mapa do Brasil todo mundo se pergunta: como é possível um país assim, com essa heterogeneidade tão grande e essa extensão tão fantástica? É que o Estado português tinha um tremendo sentido de interesse nacional e lutou e deu primazia aos interesses propriamente nacionais, ou melhor, da entidade política nacional.

Folha - A grande pergunta é se o Estado nacional tem sua trajetória interrompida ou se de fato se esgotou. Esgotou-se no Brasil, política, militar, economicamente, a função do Estado nacional como organizador da dinâmica?
Furtado - Sem dúvida nenhuma, o Estado nacional como principal agente organizador do espaço econômico mudou e declinou fundamentalmente. No século 20 ainda foi o Estado nacional, que desempenhou papel decisivo. E o keynesianismo não foi nada mais do que a ideologia do Estado nacional. Você então organiza a economia à base do mercado interno, protege, e a Inglaterra, que nunca tinha tido protecionismo, voltou a ter protecionismo, e assim foi feito. No decorrer do século 20 se percebe que os Estados deixam de ser Estados imperiais para serem Estados econômicos, para serem mercados controlados, protegido. Na Alemanha foi isso. Primeiramente, o Estado foi um espaço econômico protegido.

Folha - Com o esgotamento dessa função, qual será a força organizadora?
Furtado - O importante é ter em conta que nesses outros países todo o Estado nacional esgotou sua função. Na Europa, por exemplo, isso é perfeitamente claro, porque é alcançada a tal homogeneidade social, dentro de certos limites, evidentemente. Portanto, se esses países se integram uns aos outros, não há grandes transferências de recursos entre eles. Não há região dominante propriamente, porque eles estão homogêneos. Holanda e Alemanha, por exemplo, que são um país grande e um pequeno, não têm medo um do outro, porque eles têm o mesmo padrão de desenvolvimento. No caso do Brasil eu digo que foi interrompido o processo de homogeneização, que é parte do papel desempenhado pelo Estado nacional. E esse processo de homogeneização social, que vinha conjuntamente com a instalação do Estado nacional ou com o amadurecimento do Estado nacional, foi interrompido. Não avançamos suficientemente na homogeneização. E é isso que representa perigo para o Brasil.

Folha - Quando se dá essa ruptura?
Furtado - A grande quebra se dá quando se pára o desenvolvimento, nos anos 80. Até os anos 70, 80, havia um projeto nacional, e uma idéia clara de que o desenvolvimento do todo iria prevalecer sobre todas as partes. Se o Nordeste estava em dificuldade, se ajudava o Nordeste, porque o Nordeste era um grande mercado. Havia uma solidariedade orgânica entre as partes.

Folha - E a dívida externa, nesse contexto?
Furtado - É preciso ter em conta que a tradição brasileira foi sempre socializar perdas. Então, o que passou com a dívida foi a socialização da dívida. A dívida foi acumulada por grupos privados em grande parte, não é? Esses US$ 50 bilhões que estão negociando agora é uma dívida em grande parte acumulada pelo setor privado. Agora, habilmente se passou para o setor público, como no passado, através da inflação se socializavam as perdas do sistema, o que permitia acumular capital e fazia com que a renda se concentrasse sempre no Brasil. Agora, isso tem limites. O que é grave no Brasil, hoje em dia, é saber que o Estado, todo mundo diz e repete, assume infinitas responsabilidades. Como é que o Estado pode administrar aqui no Brasil até hotéis, turismo e tudo isso? Isso foi possível por quê? Foi através de socialização de perdas. Mas o verdadeiro problema não está nisso. Você pode, na verdade, ter um sistema semiprivado ou a combinação do público e do privado, como aliás eles fizeram na França com a privatização. Voltaram atrás na França com a combinação do interesse público e privado. Com a administração privada, mas, digamos a responsabilidade, em parte, dos custos do Estado. Portanto, isso aí se resolve, eu creio que com a modernização do Estado brasileiro. Em cinco ou dez anos se faria. Agora, o empecilho diante de tudo isso é que o Estado está imobilizado porque ele foi incapaz de resolver o seu problema da dívida externa. Isso é que é impressionante. O país estava com aquele dinamismo todo, crescendo a 10%, a 8%, 6%, quando mudou a conjuntura internacional. Com a moratória mexicana de 82 mudava a coisa internacional e eles aqui fizeram o diagnóstico completamente equivocado. Pensaram que era uma coisa de curto prazo. Se endividaram brutalmente e depois, com o reajustamento da economia norte-americana, subiram os juros lá para cima e a dívida que era US$ 60 bilhões passou para US$ 100 bilhões do dia para a noite, praticamente. E isso inviabilizou o Brasil. O Brasil e toda a América Latina foram incapazes de enfrentar esse problema.

Folha - O sr. poderia comentar essa renegociação que acabou de ser fechada?
Furtado - Ninguém pode negar que o Brasil não tinha alternativa. O Brasil podia ter negociado de outra maneira quando tinha a possibilidade de liderar um movimento muito maior, internacional, coma solidariedade de outros países. Isso naquele período em que o Brasil ainda tinha uma economia muito forte, no começo dos 80, um potencial muito grande de expansão até para o exterior e, por outro lado, os bancos estavam incapacitados para enfrentar a situação. Todo esse período foi perdido. Dentro do quadro atual, perdemos todas as cartas do jogo, as chances. Agora, o que eu critico _e tenho insistido nisso_ é que se apresente essa renegociação como uma vitória do Brasil. Isso é uma impostura, porque essa negociação foi feita para atender os bancos, que estavam em dificuldade nos Estados Unidos, por causa das medidas tomadas pelo governo americano, pela reserva federal, de exigir provisões de reservas muito maiores. Foi um grande alívio, os bancos estavam ansiosos para essa renegociação. Agora, não tínhamos alternativa, está certo, e é importante normalizar a situação do país. Eu disse até ao Marcílio, já depois da renegociação: “Você fez um trabalho importante, agora não me diga que isso é uma vitória para o Brasil, isso é apenas, digamos assim, a administração de uma derrota”. Quando você perde uma guerra tem que administrar bem a sua derrota. Os japoneses administraram maravilhosamente a derrota deles e chegaram onde estão.

Folha - Seu ensaio parece dizer que o problema não é só a falência do Estado nacional, o problema é que o Brasil como país, hoje, está em cheque.
Furtado - Bem, é que o que soldou o Brasil, o que manteve o Brasil nessas condições modernas não foi mais a força militar, como no século 19. No Brasil do século 20 isso não era mais viável. Então, era preciso unir o Brasil internamente e essa união interna foi dada pela industrialização, dando ao mercado interno o papel de soldadura do país. E essa industrialização parou.

Folha - No livro “A Fantasia Organizada”, o sr. fala com certa antipatia da vida acadêmica e com muita paixão da vontade de conhecer os ares do mundo, ser testemunha da história. Em que momento o sr. deu essa irada? Isso tornou mais fácil a vida acadêmica?
Furtado - Não, a vida acadêmica foi uma imposição da história. Eu só me tornei realmente professor quando fui cassado, em 64. Mas antes, eu tinha uma paixão: queria ser jornalista. Era minha curiosidade de ver o mundo e eu creio que nada como o trabalho no jornalismo para fazer isso. Mas, à medida que eu fui penetrando tudo isso é que eu fui compreendendo que era preciso me armar com instrumentos muito mais completos para compreender o mundo. Não bastava olhar para ele, testemunhar, não. Foi aí que me veio a idéia de estudar economia.

Folha - Pode-se dizer que o sr. optou pela razão?
Furtado - Eu optei pelo que imaginei que era a minha aptidão maior. Não é a razão. É o que você pensa. O homem é uma potencialidade ou é uma promessa, como você quiser. O difícilestá em canalizar essa virtualidade e descobrir quem você é, qual é o seu verdadeiro talento. O Braudel me confortou, dizendo: “Celso, você é uma das pessoas que mais entenderam o que é a história.” Ele tinha ficado entusiasmado com o meu livro sobre a formação econômica do Brasil. Então, a minha paixão passou a ser, de verdade, a história. E aprofundar a história com a economia, passou a ser, digamos assim, o que me levou a globalizar as coisas, o que me singularizou. Por que os meus livros são lidos no mundo inteiro, em mais de dez idiomas? Eu globalizei a América Latina. Os latino-americanos não são capazes de integrar o Brasil na América Latina. Isso foi possível porque eu compreendi as relações com os Estados Unidos muito cedo. Porque compreendi a diferença da colonização inglesa da colonização portuguesa e espanhola. Fiz um panorama da América Latina em trezentas e tantas páginas, que passou a ser o livro mais conhecido sobre o assunto. Veja o que é descobrir o seu talento.

Folha
- Sei que Robert Musil era o seu escritor predileto. Isso já desde sua juventude?
Furtado - Bem, eu só o conheci depois de Thomas Mann, Proust. Na realidade, conservei a ilusão de que tinha que apelar para o instrumento literário por muito tempo depois da juventude, imaginando que eu ia escrever romance ainda. Faria romance de maturidade. Eu tinha a impressão de que o instrumento do romance da ficção era a melhor forma de pintar o homem.

Folha - O sr. desenvolvia projetos concretos de romance?
Furtado - Grande parte dos chamados romancistas e que não são autênticos romancistas, são autobiográficos. De modo que todos os meus projetos no fundo versavam sobre experiências minhas. Essa é que é a história. E é aí que você vê a sua limitação como romancista. Para pintar uma sociedade, como romancista, como fez Proust é preciso um talento ou um gênio, natureza que eu não tinha. Se eu tivesse, não tinha ido para a economia.

Folha - É possível afirmar que o seu trabalho agora é memorialístico. O sr. acha que “A Fantasia Organizada”, “A Fantasia Desfeita”, “Ares do Mundo” são um pouco uma tentativa de retomar essa sua verve literária, só que trabalhando seus dois talentos?
Furtado - É, é uma coisa tipo Musil. Na verdade não são nem livros de memória, nem de ficção, nem de sociologia, nem de economia. Tem um pouco de tudo. Todo mundo ficou muito admirado. Na América Latina teve uma repercussão tremenda, porque ninguém tinha escrito por aqui um livro como esse, que pensava a América Latina a partir das pessoas que viviam a história. É um pouco coisa de romancista, não é?

Folha - O sr. mantém diários?
Furtado - Ah! mantive muitos diários. Não diário de “journal”, como fazem os franceses, todo dia uma reflexão. Todo ato importante que acontecia comigo eu anotava. E mesmo no governo de Sarney eu anotei tudo. Agora, só não vou escrever sobre isso agora porque não me interessa, está próximo demais, mas eu anotei tudo.

Folha - Li uma vez que seu filme predileto era “Cidadão Kane” e que o sr. teria encontrado Orson Welles...
Furtado - “Cidadão Kane” teve um impacto muito grande na minha geração. Ele me mostrou que o cinema podia ser muito mais do que era o cinema convencional. Aquilo foi uma beleza. Agora, eu tive a chance de encontrar Orson Welles quando ele veio filmar “It’s All True”, no Brasil. Eu trabalhava na “Revista da Semana” e fui com sua equipe acompanhar suas filmagens em Ouro Preto. Ele decidiu que a Semana Santa em Ouro Preto era uma coisa importante culturalmente para entender o Brasil.

Folha - Eu me lembro que Paulo Emílio Sales Gomes teve alguma contribuição no fato de que a sua primeira tese na França ter sido sobre o Brasil colonial. Qual foi sua relação com ele?
Furtado - Eu o conheci em Paris. Quando cheguei lá, tomei contato com ele, porque estava metido em tudo que era cineclube, do que eu gostava muito, também. Íamos juntos aos cineclubes do Quartier Latin e ficamos muito amigos. Ele dirigia, nada menos do que um instituto, lá no Museu do Homem, que tinha, na época, a melhor biblioteca sobre o Brasil que havia na Europa. Essa biblioteca depois veio para a América Latina. E eu então ia lá ler sobre o Brasil e consultar os livros porque estava preparando a minha tese. Ele era uma grande figura, tinha um sentido de humor muito grande, tinha uma alegria de viver... Agora, era dispersivo, produzia pouco. Eu me recordo, nessa época eu conhecia também Ernesto Sábato, os dois, em Paris. O Sábato era da mesma maneira que ele, uma inquietação, uma curiosidade por tudo, mas também dispersivo.

Folha - Hoje é consensual que seu livro “Formação Econômica do Brasil” forma o quarteto clássico para explicar o Brasil, junto com “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, e “Formação Histórica do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Júnior. Gostaria de saber até que ponto o sr. foi influenciado por Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior.
Furtado - Fui muito influenciado por Gilberto Freyre, porque li desde jovem “Casa Grande e Senzala”. Foi um autor que li e reli, estudei, porque ele revelava uma dimensão antropológica que eu não captava. Deste ponto de vista foi o autor que mais me influenciou. Agora, “Raízes do Brasil”, eu li e me entusiasmei, mas não me pareceu que tivesse coisa importante para mim. Provavelmente eu não tinha, naquela época, sensibilidade para perceber o que havia de original nele e talvez por isso mesmo eu li, mas não me influenciou muito. Com o Caio Prado, é um pouco diferente, porque eu tinha lido “Formação Histórica do Brasil Contemporâneo” e tinha percebido as enormes limitações do Caio do ponto de vista econômico. Quando é história, era interessante, mas não original. Agora, quando entrava na economia, era rígido, o marxismo dele o imobilizava bastante para pensar por conta própria. Eu percebi isto e quando escrevi o meu livro, não o citei. Depois, muita gente me disse que era um absurdo não ter citado, e ele mesmo ficou magoado. Mas também não citei o Gilberto. Agora, isso tem uma outra explicação: eu não quis fazer uma bibliografia exaustiva.

Folha - Lendo seu livro de memórias “A Fantasia Desfeita” me chamou a atenção a visão muito original que o sr. tem de Jânio Quadros. O sr. chega a dizer que ele poderia ter sido um estadista de ordem superior.
Furtado - É verdade. Ele tinha uma força de imaginação, uma originalidade, que poderia ter feito dele alguém completamente fora de série, um De Gaulle, em outro contexto, evidentemente, mas dentro da história do Brasil. Essa originalidade de pensamento político é uma coisa miuto rara e ele tinha laivos de gênio inegavelmente. Você conversava com ele e percebia isso. Agora, tinha pouca formação. Ele fraquejava. No fundo, era uma pessoa fraca. E isso me deu pena nele, ver que se este homem tivesse garra seria um Tito, um Nero, uma grande figura que poderia mudar a história do Brasil. Ele tinha uma percepção do valor da coisa internacional que nenhum outro estadista brasileiro teve, que eu tenha conhecido.

Folha - E Juscelino?
Furtado - Era uma pessoa completamente diferente. Sem Brasília, ele teria sido uma coisa corrente, um presidente a mais no Brasil, entusiasmado com a industrialização. O que dá a Juscelino uma singularidade histórica é ele ter pensado Brasília, porque, então, todo o Brasil teve que ser repensado por causa disso. Mas ele fazia um jogo muito pessoal.

Folha - Primeiro foi “A Fantasia Organizada”, depois “A Fantasia Desfeita”. Resta ainda alguma fantasia para Celso Furtado?
Furtado - Bem, restam os ares do mundo.



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