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Celso Furtado
O maior economista brasileiro fala sobre seu novo livro,
a renegociação da dívida e sua paixão pela
literatura
AMIR LABAKI
GILSON SCHWARTZ
Da equipe de articulistas
O próximo século poderá ser o da fragmentação
do Brasil, caso se insista no atual modelo econômico. A renegociação
da dívida externa brasileira, recentemente fechada, foi a administração
de uma derrota _nunca uma vitória. Jânio Quadros (1917-1992)
tinha gênio, potencial de estadista e poderia ter sido
o De Gaule brasileiro. Já Juscelino Kubitschek (1902-1976) não
marcaria a história brasileira se se descontasse de seu currículo
a fundação de Brasília.
Às vésperas de completar 72 anos (em 26 de julho de 1992),
Celso Furtado transpira serenidade, a serenidade dos céticos, seja
ao discutir prognósticos catastrofistas ou ao relembrar o quase
meio século de história que ajudou a fazer e a interpretar.
O mais conceituado economista brasileiro, autor de clássicos como
Formação Econômica do Brasil (1959), traduzidos
no mundo inteiro, veio no início da semana a São Paulo para
lançar seu 28º livro, Brasil: Uma Construção
Interrompida, (Paz e Terra.
Furtado falou com exclusividade para a Folha, por mais de duas
horas, na manhã da última terça-feira. Foi uma entrevista
ímpar. Tradicionalmente reservado quanto à discussão
de aspectos autobiográficos, foram estes que desta vez mais o estimularam.
Primeiro, Celso Furtado discorreu com sua tradicional elegância
distanciada sobre a conjuntura econômica brasileira e sobre seu
novo livro. Convidado a relembrar sua trajetória, o arredio memorialista
da trilogia A Fantasia Organizada (1985), A Fantasia
Desfeita (1989) e Os Ares do Mundo (1991), surpreendeu
ao se transformar num depoente risonho e expansivo.
Foi esta apenas a primeira surpresa. O maior economista brasileiro revelou
que a propensão literária da juventude o acompanhou até
o exílio, flertando Furtado até 1984 com uma carreira de
romancista da maturidade. O historiador elogiado por Fernand
Braudel reconhece hoje que a razão nem sempre dá conta de
explicar a história. O cassado com injusto estigma de comunista
(Furtado sempre se situou na esquerda independente e jamais
foi do PCB) afirma ter recebido maior influência do culturalista
Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala) do que do marxista
Caio Prado Jr. (Formação do Brasil Contemporâneo).
Folha - Formação Econômica do Brasil
é um livro de esperança; Brasil, Construção
Interrompida parece o final de um ciclo em que pelo menos parte
daquela esperança se abalou. Como o sr. compara esses dois momentos
da sua produção intelectual?
Furtado - A minha preocupação desde o começo
foi entender o Brasil. Mas, à medida que eu fui avançando
nesse trabalho, fui compreendendo que para entendê-lo há
que entender outra coisa maior, até chegar a entender o homem inteiro,
porque há tal interdependência entre os sistemas econômicos
atuais, e de tal maneira o Brasil se transformou numa peça importante
dessa economia mundial, que sem essa idéia de ver a história
como uma coisa global nós não podíamos avançar
muito. E eu sempre insisto nesse ponto que a nossa intelligentsia,
os nossos pensadores são muito provincianos, preocupados com os
acontecimentos imediatos. Agora mesmo estamos vendo isso. O Brasil tem
uma crise muito séria, tem uma crise de civilização.
É todo o modelo de desenvolvimento do Brasil que está em
causa. E, por outro lado, há uma crise de reinserção
na economia mundial, e todos só pensam no problema PC Farias. Não
minimizo a importância disso, porque esses pequenos sintomas são
importantes para se compreender a realidade brasileira. Mas é preciso
ver globalmente. Temos que pensar a partir de uma visão global
do mundo.
Folha - Mesmo partindo para essa visão global, em sua obra
há um grande conceito-âncora, que é o
Estado nacional.
Furtado - Exato. Em realidade, a minha visão da história
moderna é a história dos Estados nacionais. O que se chama
história moderna começa exatamente quando os atores Estados
nacionais passam a desempenhar papel decisivo, de agenciamento, de ação
pública.
Folha - Todo o contexto econômico hoje, tanto em termos
de política econômica como das estruturas econômicas,
nega o Estado nacional como agente relevante.
Furtado - Exato, porque acontece o seguinte: o Estado nacional,
que desempenhou um papel decisivo, passou depois a ser um pouco empecilho.
Agora, há situações diferentes, porque o Estado nacional
tem que nascer com vocação de universalidade como os Estados
Unidos, onde o Estado nunca teve o mesmo papel que em outras partes. Nasceu
já como que configurado para se planetarizar. E foi lá que
surgiu a grande empresa, foi lá que surgiu, na verdade, a idéia
de seguir um sistema monetário internacional etc.
Folha - No caso do Brasil, o sr. acha que a construção
do Estado nacional se encontra interrompida ou bloqueada?
Furtado - O caso do Brasil é um caso singular. É
que o Brasil foi feito pelo Estado nacional. Em países como o México
ou mesmo a Colômbia, o Peru, pré-existia uma população
importante, a ameríndia, e essa população é
o núcleo desses países até hoje. Agora, países
como o Brasil, Argentina, são países fabricados pelo colonizador.
É evidente que, olhando para o mapa do Brasil todo mundo se pergunta:
como é possível um país assim, com essa heterogeneidade
tão grande e essa extensão tão fantástica?
É que o Estado português tinha um tremendo sentido de interesse
nacional e lutou e deu primazia aos interesses propriamente nacionais,
ou melhor, da entidade política nacional.
Folha - A grande pergunta é se o Estado nacional tem sua
trajetória interrompida ou se de fato se esgotou. Esgotou-se no
Brasil, política, militar, economicamente, a função
do Estado nacional como organizador da dinâmica?
Furtado - Sem dúvida nenhuma, o Estado nacional como principal
agente organizador do espaço econômico mudou e declinou fundamentalmente.
No século 20 ainda foi o Estado nacional, que desempenhou papel
decisivo. E o keynesianismo não foi nada mais do que a ideologia
do Estado nacional. Você então organiza a economia à
base do mercado interno, protege, e a Inglaterra, que nunca tinha tido
protecionismo, voltou a ter protecionismo, e assim foi feito. No decorrer
do século 20 se percebe que os Estados deixam de ser Estados imperiais
para serem Estados econômicos, para serem mercados controlados,
protegido. Na Alemanha foi isso. Primeiramente, o Estado foi um espaço
econômico protegido.
Folha - Com o esgotamento dessa função, qual será
a força organizadora?
Furtado - O importante é ter em conta que nesses outros
países todo o Estado nacional esgotou sua função.
Na Europa, por exemplo, isso é perfeitamente claro, porque é
alcançada a tal homogeneidade social, dentro de certos limites,
evidentemente. Portanto, se esses países se integram uns aos outros,
não há grandes transferências de recursos entre eles.
Não há região dominante propriamente, porque eles
estão homogêneos. Holanda e Alemanha, por exemplo, que são
um país grande e um pequeno, não têm medo um do outro,
porque eles têm o mesmo padrão de desenvolvimento. No caso
do Brasil eu digo que foi interrompido o processo de homogeneização,
que é parte do papel desempenhado pelo Estado nacional. E esse
processo de homogeneização social, que vinha conjuntamente
com a instalação do Estado nacional ou com o amadurecimento
do Estado nacional, foi interrompido. Não avançamos suficientemente
na homogeneização. E é isso que representa perigo
para o Brasil.
Folha - Quando se dá essa ruptura?
Furtado - A grande quebra se dá quando se pára o
desenvolvimento, nos anos 80. Até os anos 70, 80, havia um projeto
nacional, e uma idéia clara de que o desenvolvimento do todo iria
prevalecer sobre todas as partes. Se o Nordeste estava em dificuldade,
se ajudava o Nordeste, porque o Nordeste era um grande mercado. Havia
uma solidariedade orgânica entre as partes.
Folha - E a dívida externa, nesse contexto?
Furtado - É preciso ter em conta que a tradição
brasileira foi sempre socializar perdas. Então, o que passou com
a dívida foi a socialização da dívida. A dívida
foi acumulada por grupos privados em grande parte, não é?
Esses US$ 50 bilhões que estão negociando agora é
uma dívida em grande parte acumulada pelo setor privado. Agora,
habilmente se passou para o setor público, como no passado, através
da inflação se socializavam as perdas do sistema, o que
permitia acumular capital e fazia com que a renda se concentrasse sempre
no Brasil. Agora, isso tem limites. O que é grave no Brasil, hoje
em dia, é saber que o Estado, todo mundo diz e repete, assume infinitas
responsabilidades. Como é que o Estado pode administrar aqui no
Brasil até hotéis, turismo e tudo isso? Isso foi possível
por quê? Foi através de socialização de perdas.
Mas o verdadeiro problema não está nisso. Você pode,
na verdade, ter um sistema semiprivado ou a combinação do
público e do privado, como aliás eles fizeram na França
com a privatização. Voltaram atrás na França
com a combinação do interesse público e privado.
Com a administração privada, mas, digamos a responsabilidade,
em parte, dos custos do Estado. Portanto, isso aí se resolve, eu
creio que com a modernização do Estado brasileiro. Em cinco
ou dez anos se faria. Agora, o empecilho diante de tudo isso é
que o Estado está imobilizado porque ele foi incapaz de resolver
o seu problema da dívida externa. Isso é que é impressionante.
O país estava com aquele dinamismo todo, crescendo a 10%, a 8%,
6%, quando mudou a conjuntura internacional. Com a moratória mexicana
de 82 mudava a coisa internacional e eles aqui fizeram o diagnóstico
completamente equivocado. Pensaram que era uma coisa de curto prazo. Se
endividaram brutalmente e depois, com o reajustamento da economia norte-americana,
subiram os juros lá para cima e a dívida que era US$ 60
bilhões passou para US$ 100 bilhões do dia para a noite,
praticamente. E isso inviabilizou o Brasil. O Brasil e toda a América
Latina foram incapazes de enfrentar esse problema.
Folha - O sr. poderia comentar essa renegociação
que acabou de ser fechada?
Furtado - Ninguém pode negar que o Brasil não tinha
alternativa. O Brasil podia ter negociado de outra maneira quando tinha
a possibilidade de liderar um movimento muito maior, internacional, coma
solidariedade de outros países. Isso naquele período em
que o Brasil ainda tinha uma economia muito forte, no começo dos
80, um potencial muito grande de expansão até para o exterior
e, por outro lado, os bancos estavam incapacitados para enfrentar a situação.
Todo esse período foi perdido. Dentro do quadro atual, perdemos
todas as cartas do jogo, as chances. Agora, o que eu critico _e tenho
insistido nisso_ é que se apresente essa renegociação
como uma vitória do Brasil. Isso é uma impostura, porque
essa negociação foi feita para atender os bancos, que estavam
em dificuldade nos Estados Unidos, por causa das medidas tomadas pelo
governo americano, pela reserva federal, de exigir provisões de
reservas muito maiores. Foi um grande alívio, os bancos estavam
ansiosos para essa renegociação. Agora, não tínhamos
alternativa, está certo, e é importante normalizar a situação
do país. Eu disse até ao Marcílio, já depois
da renegociação: Você fez um trabalho importante,
agora não me diga que isso é uma vitória para o Brasil,
isso é apenas, digamos assim, a administração de
uma derrota. Quando você perde uma guerra tem que administrar
bem a sua derrota. Os japoneses administraram maravilhosamente a derrota
deles e chegaram onde estão.
Folha - Seu ensaio parece dizer que o problema não é
só a falência do Estado nacional, o problema é que
o Brasil como país, hoje, está em cheque.
Furtado - Bem, é que o que soldou o Brasil, o que manteve
o Brasil nessas condições modernas não foi mais a
força militar, como no século 19. No Brasil do século
20 isso não era mais viável. Então, era preciso unir
o Brasil internamente e essa união interna foi dada pela industrialização,
dando ao mercado interno o papel de soldadura do país. E essa industrialização
parou.
Folha - No livro A Fantasia Organizada, o sr. fala
com certa antipatia da vida acadêmica e com muita paixão
da vontade de conhecer os ares do mundo, ser testemunha da história.
Em que momento o sr. deu essa irada? Isso tornou mais fácil a vida
acadêmica?
Furtado - Não, a vida acadêmica foi uma imposição
da história. Eu só me tornei realmente professor quando
fui cassado, em 64. Mas antes, eu tinha uma paixão: queria ser
jornalista. Era minha curiosidade de ver o mundo e eu creio que nada como
o trabalho no jornalismo para fazer isso. Mas, à medida que eu
fui penetrando tudo isso é que eu fui compreendendo que era preciso
me armar com instrumentos muito mais completos para compreender o mundo.
Não bastava olhar para ele, testemunhar, não. Foi aí
que me veio a idéia de estudar economia.
Folha - Pode-se dizer que o sr. optou pela razão?
Furtado - Eu optei pelo que imaginei que era a minha aptidão
maior. Não é a razão. É o que você pensa.
O homem é uma potencialidade ou é uma promessa, como você
quiser. O difícilestá em canalizar essa virtualidade e descobrir
quem você é, qual é o seu verdadeiro talento. O Braudel
me confortou, dizendo: Celso, você é uma das pessoas
que mais entenderam o que é a história. Ele tinha
ficado entusiasmado com o meu livro sobre a formação econômica
do Brasil. Então, a minha paixão passou a ser, de verdade,
a história. E aprofundar a história com a economia, passou
a ser, digamos assim, o que me levou a globalizar as coisas, o que me
singularizou. Por que os meus livros são lidos no mundo inteiro,
em mais de dez idiomas? Eu globalizei a América Latina. Os latino-americanos
não são capazes de integrar o Brasil na América Latina.
Isso foi possível porque eu compreendi as relações
com os Estados Unidos muito cedo. Porque compreendi a diferença
da colonização inglesa da colonização portuguesa
e espanhola. Fiz um panorama da América Latina em trezentas e tantas
páginas, que passou a ser o livro mais conhecido sobre o assunto.
Veja o que é descobrir o seu talento.
Folha - Sei que Robert Musil era o seu escritor predileto. Isso já
desde sua juventude?
Furtado - Bem, eu só o conheci depois de Thomas Mann, Proust.
Na realidade, conservei a ilusão de que tinha que apelar para o
instrumento literário por muito tempo depois da juventude, imaginando
que eu ia escrever romance ainda. Faria romance de maturidade. Eu tinha
a impressão de que o instrumento do romance da ficção
era a melhor forma de pintar o homem.
Folha - O sr. desenvolvia projetos concretos de romance?
Furtado - Grande parte dos chamados romancistas e que não
são autênticos romancistas, são autobiográficos.
De modo que todos os meus projetos no fundo versavam sobre experiências
minhas. Essa é que é a história. E é aí
que você vê a sua limitação como romancista.
Para pintar uma sociedade, como romancista, como fez Proust é preciso
um talento ou um gênio, natureza que eu não tinha. Se eu
tivesse, não tinha ido para a economia.
Folha - É possível afirmar que o seu trabalho agora
é memorialístico. O sr. acha que A Fantasia Organizada,
A Fantasia Desfeita, Ares do Mundo são
um pouco uma tentativa de retomar essa sua verve literária, só
que trabalhando seus dois talentos?
Furtado - É, é uma coisa tipo Musil. Na verdade não
são nem livros de memória, nem de ficção,
nem de sociologia, nem de economia. Tem um pouco de tudo. Todo mundo ficou
muito admirado. Na América Latina teve uma repercussão tremenda,
porque ninguém tinha escrito por aqui um livro como esse, que pensava
a América Latina a partir das pessoas que viviam a história.
É um pouco coisa de romancista, não é?
Folha - O sr. mantém diários?
Furtado - Ah! mantive muitos diários. Não diário
de journal, como fazem os franceses, todo dia uma reflexão.
Todo ato importante que acontecia comigo eu anotava. E mesmo no governo
de Sarney eu anotei tudo. Agora, só não vou escrever sobre
isso agora porque não me interessa, está próximo
demais, mas eu anotei tudo.
Folha - Li uma vez que seu filme predileto era Cidadão
Kane e que o sr. teria encontrado Orson Welles...
Furtado - Cidadão Kane teve um impacto muito
grande na minha geração. Ele me mostrou que o cinema podia
ser muito mais do que era o cinema convencional. Aquilo foi uma beleza.
Agora, eu tive a chance de encontrar Orson Welles quando ele veio filmar
Its All True, no Brasil. Eu trabalhava na Revista
da Semana e fui com sua equipe acompanhar suas filmagens em Ouro
Preto. Ele decidiu que a Semana Santa em Ouro Preto era uma coisa importante
culturalmente para entender o Brasil.
Folha - Eu me lembro que Paulo Emílio Sales Gomes teve
alguma contribuição no fato de que a sua primeira tese na
França ter sido sobre o Brasil colonial. Qual foi sua relação
com ele?
Furtado - Eu o conheci em Paris. Quando cheguei lá, tomei
contato com ele, porque estava metido em tudo que era cineclube, do que
eu gostava muito, também. Íamos juntos aos cineclubes do
Quartier Latin e ficamos muito amigos. Ele dirigia, nada menos do que
um instituto, lá no Museu do Homem, que tinha, na época,
a melhor biblioteca sobre o Brasil que havia na Europa. Essa biblioteca
depois veio para a América Latina. E eu então ia lá
ler sobre o Brasil e consultar os livros porque estava preparando a minha
tese. Ele era uma grande figura, tinha um sentido de humor muito grande,
tinha uma alegria de viver... Agora, era dispersivo, produzia pouco. Eu
me recordo, nessa época eu conhecia também Ernesto Sábato,
os dois, em Paris. O Sábato era da mesma maneira que ele, uma inquietação,
uma curiosidade por tudo, mas também dispersivo.
Folha - Hoje é consensual que seu livro Formação
Econômica do Brasil forma o quarteto clássico para
explicar o Brasil, junto com Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda, Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre,
e Formação Histórica do Brasil Contemporâneo,
de Caio Prado Júnior. Gostaria de saber até que ponto o
sr. foi influenciado por Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio
Prado Júnior.
Furtado - Fui muito influenciado por Gilberto Freyre, porque li
desde jovem Casa Grande e Senzala. Foi um autor que li e reli,
estudei, porque ele revelava uma dimensão antropológica
que eu não captava. Deste ponto de vista foi o autor que mais me
influenciou. Agora, Raízes do Brasil, eu li e me entusiasmei,
mas não me pareceu que tivesse coisa importante para mim. Provavelmente
eu não tinha, naquela época, sensibilidade para perceber
o que havia de original nele e talvez por isso mesmo eu li, mas não
me influenciou muito. Com o Caio Prado, é um pouco diferente, porque
eu tinha lido Formação Histórica do Brasil
Contemporâneo e tinha percebido as enormes limitações
do Caio do ponto de vista econômico. Quando é história,
era interessante, mas não original. Agora, quando entrava na economia,
era rígido, o marxismo dele o imobilizava bastante para pensar
por conta própria. Eu percebi isto e quando escrevi o meu livro,
não o citei. Depois, muita gente me disse que era um absurdo não
ter citado, e ele mesmo ficou magoado. Mas também não citei
o Gilberto. Agora, isso tem uma outra explicação: eu não
quis fazer uma bibliografia exaustiva.
Folha - Lendo seu livro de memórias A Fantasia Desfeita
me chamou a atenção a visão muito original que o
sr. tem de Jânio Quadros. O sr. chega a dizer que ele poderia ter
sido um estadista de ordem superior.
Furtado - É verdade. Ele tinha uma força de imaginação,
uma originalidade, que poderia ter feito dele alguém completamente
fora de série, um De Gaulle, em outro contexto, evidentemente,
mas dentro da história do Brasil. Essa originalidade de pensamento
político é uma coisa miuto rara e ele tinha laivos de gênio
inegavelmente. Você conversava com ele e percebia isso. Agora, tinha
pouca formação. Ele fraquejava. No fundo, era uma pessoa
fraca. E isso me deu pena nele, ver que se este homem tivesse garra seria
um Tito, um Nero, uma grande figura que poderia mudar a história
do Brasil. Ele tinha uma percepção do valor da coisa internacional
que nenhum outro estadista brasileiro teve, que eu tenha conhecido.
Folha - E Juscelino?
Furtado - Era uma pessoa completamente diferente. Sem Brasília,
ele teria sido uma coisa corrente, um presidente a mais no Brasil, entusiasmado
com a industrialização. O que dá a Juscelino uma
singularidade histórica é ele ter pensado Brasília,
porque, então, todo o Brasil teve que ser repensado por causa disso.
Mas ele fazia um jogo muito pessoal.
Folha - Primeiro foi A Fantasia Organizada, depois
A Fantasia Desfeita. Resta ainda alguma fantasia para Celso
Furtado?
Furtado - Bem, restam os ares do mundo.
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