São Paulo, 23 de julho de 1995

ENTREVISTAS HISTÓRICAS

O Risco Moderno

Lucio Costa conta como desafiou o Brasil conservador e implantou a arquitetura nova no país, em livro de memórias a sair em setembro

MARIO CESAR CARVALHO
Enviado especial ao Rio

A sala de Lucio Costa, num predinho de cinco andares à beira da praia do Leblon, no Rio, está menos caótica. Já não se vêem pilhas de jornais, fotos, cartas, textos, desenhos, o caos que ameaçava soterrar o arquiteto que criou o plano urbanístico de Brasília. Aos 93 anos, ele concluiu "Lucio Costa - Registro de uma Vivência'', o livro de memórias que prepara há 12. O caos das pilhas de papel foi mais ou menos ordenado e sai em livro em setembro. O Mais! publica com exclusividade trechos da obra.
Explica-se o mais ou menos ordenado: "Registro de uma Vivência'' não é um livro de memórias ordinário. É como se Costa abrisse a sala de seu apartamento ao leitor e permitisse que ele ficasse ali fuçando a papelada.
E a papelada é um espanto. O livro de 608 páginas tem desenho feito nos anos 10 na Inglaterra, o primeiro projeto do arquiteto (1921-1922), cartas à mãe, as casas modernas criadas nos anos 30 que haviam caído no esquecimento, o projeto de 1936 para o Ministério da Educação, crônicas, ensaios (um deles escrito para um curso de pós-graduação que deu junto com Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre), os primeiros esboços de Brasília, a urbanização da Barra, no Rio, e planos que ficaram no papel.
Só quatro textos foram escritos especialmente para o livro, mas isso não tira o frescor da obra. Seus ensaios saíram em revistas de circulação tão restrita que parecem inéditos. Costa corre o risco de ser tratado como ensaísta-revelação com mais de 90 anos.
Brasília, projetada em 1957 e inaugurada três anos depois, é um divisor na obra do arquiteto e urbanista, mas é também seu tormento. A grandiosidade da empreitada de se criar uma nova capital para o país fez sombra em quase todos os seus outros trabalhos.
Contribuiu aí também um certo recato de Costa. Ao contrário de outros artistas modernos, para os quais a autopropaganda é às vezes tão importante quanto a obra, Costa fez uma revolução quase silenciosa. Ou, como diz Caetano Veloso num vídeo sobre o arquiteto: "Ele tem a marca do modernizador que não agride o fluxo natural da vida. Para mim, é uma lição''.
O livro repara o descaso que havia com sua obra, aquém e além de Brasília, ao apresentar pela primeira vez o arquiteto de corpo inteiro.
Nascido em 27 de fevereiro de 1902 em Toulon (França) e registrado na Embaixada brasileira, Costa é uma espécie de elo entre a arquitetura acadêmica e a moderna no Brasil.
Começou copiando casas normandas e coloniais, segundo o receituário eclético do começo do século, até descobrir que havia acontecido uma revolução no século 19 que transformara o método de construção. Foi o advento do aço e do concreto.
Com colunas e vigas de concreto ou aço, as paredes perderam a função de sustentar a estrutura da casa ou do prédio. Podiam ser substituídas por vidro ou ganhar formas independentes da estrutura. Era a autonomia da arquitetura moderna.
Costa diz, em entrevista exclusiva à Folha, que descobriu sozinho essa revolução, observando o descompasso que havia entre as novas técnicas de construção e as imitações que fazia.
"Descobri essa mudança por meio da minha própria desconfiança de que havia um desencontro entre a tecnologia e a arquitetura. Foi uma revelação. Depois dessa descoberta, no fim dos anos 20, fiquei intransigente. Não conseguia trabalho, porque me recusava a fazer casas de estilo'', diz.
Conta também como convenceu o presidente Getúlio Vargas a trazer para o país, em 1936, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, o artífice da arquitetura moderna.
Sobre Oscar Niemeyer, o arquiteto que criou os prédios de Brasília sobre o traçado urbano de Costa, faz uma revelação. Nos anos 30, quando era estudante, Niemeyer queria pagar para trabalhar no escritório de Costa no Rio.

Folha - O sr. dizia que seus projetos mais recentes diferem dos antigos pelo maior apego à tradição. O sr. se desencantou com a arquitetura moderna?
Lucio Costa - Como passei muito tempo fora do Brasil, passei a gostar mais do meu país. Eu havia nascido em Toulon, vim bebê para o Rio e, em 1910, meus pais voltaram para a Europa. Só voltei ao Rio em 1916.
Meu pai era engenheiro naval. Fiquei sete anos seguidos na Europa, quatro deles na Inglaterra. Depois meu pai teve um desentimento com o ministro da Marinha e pediu reforma. Da Inglaterra, fomos para Paris e, no começo de 1914, para a Suíça, onde a Primeira Guerra nos pegou.
No fim de 1916 é que nós voltamos, às escuras, com medo dos submarinos, que já tinham afundado vários navios, inclusive brasileiros. O navio viajava às escuras, uma viagem um pouco penosa. Só conheci o Rio de Janeiro de verdade quando tinha meus 14, 15 anos.
Por ter vivido muito fora do Brasil é que eu sou mais brasileiro do que qualquer brasileiro.

Folha - Como o sr. foi parar na Escola de Belas Artes?
Costa - Meu pai sempre quis ter um filho artista e me matriculou. Engraçado, ele, como engenheiro naval, queria que eu fosse pintor ou escultor. Meus irmãos mais velhos foram para a engenharia elétrica. Eletricidade estava na moda.

Folha - O sr. estudou arte na Inglaterra?
Costa - Estudei desenho com uma professora muito bonita, miss Dorothy Taylor. Levava a gente a museus para desenhar pássaros. Foi professora das princesas Elizabeth (que viria a se tornar rainha da Inglaterra) e Margareth.
Quando eu voltei à Inglaterra, já rapaz, fui procurá-la em Newcastle. Ela já havia mudado, mas disseram que seria muito fácil eu obter informações sobre ela no Buckingham Palace. De Londres, liguei para o Buckingham Palace e, nem foi preciso botar mais um pennie, informaram-me que ela morava em Ditchling, sul da Inglaterra. Fui até lá, já era casado, mas ela me reconheceu pela voz.

Folha - Mas a volta à tradição significa um desencanto com a arquitetura moderna?
Costa - Não, não. A minha formação arquitetônica tinha sido tradicional. Estudava-se vários estilos, do gótico ao renascimento, para o aluno poder atender as encomendas, seja uma igreja ou um banco. Aí se recorria aos estilos antigos. Esse apego à tradição era uma coisa tão vinculada à realidade, ao momento presente, que não tinha esse divórcio que outras pessoas têm, de achar que o passado é uma coisa e a realidade é outra.

Folha - Quando o sr. entrou na Escola de Belas Artes, em 1917, havia um movimento pela volta ao passado colonial.
Costa - Eu peguei o movimento neocolonial. Era essa extravagância de querer voltar no tempo. Essa consciência de que as coisas mudam, mas o essencial fica, de um período para o outro, me dava a segurança de aceitar situações novas. Só depois dessa formação acadêmica é que comecei a notar que o estilo neocolonial era uma aberração. Aplicava recursos de arquitetura religiosa em arquitetura civil, fazia uma salada que não correspondia mais à realidade. Aí eu comecei a me desligar do chamado neocolonial.

Folha - Quando o sr. descobre a arquitetura moderna?
Costa - Foi tarde. Depois de formado, eu ganhei um prêmio na loteria e estava desencantado com essa clientela que queria casas de estilo inglês, francês, colonial.
Como estava com problemas sentimentais, com um namoro duplo, namorava duas Julietas, resolvi passar um ano na Europa. Lá andei como um turista, totalmente alienado.

Folha - O sr. se diz alienado, mas as cartas dos anos 20 revelam um juízo afinado. Alienado não escreve, como o sr. escreveu, que o Duomo de Milão era gótico de segunda mão.
Costa - Eu tinha uma boa formação profissional, mas era alienado em relação à arquitetura moderna. Não vi nada disso na Europa. Quando voltei, fui fazer outras coisas. O Rodrigo Mello Franco de Andrade, que foi para o Ministério da Educação com a Revolução de 1930, me convidou para dirigir a Escola Nacional de Belas Artes. Aceitei, para tentar reformular o ensino de arte no país.

Folha - O sr. já era um arquiteto famoso?
Costa - Era um arquiteto de sucesso, ganhava dinheiro, mas acadêmico. Lembro de uma senhora que me encomendou uma casa. Eu quis forçar a mão e fiz um projeto de uma casa contemporânea.
Foi pouco antes de 1930. A mulher não gostou: "Eu venho aqui pedir uma carruagem e o sr. quer me impingir um automóvel!''. Ela queria uma casa de estilo.

Folha - O sr. já conhecia Le Corbusier?
Costa - Conhecia vagamente. Era tão ignorante que, na volta da Europa de navio, brincávamos de forca a bordo, aquele jogo que a pessoa põe uma letra, e você tem que adivinhar a palavra toda. A primeira letra era a letra "l'', de Le Corbusier. Eu estava tão alheio que fui enforcado.

Folha - De onde saiu então esse "automóvel" que o sr. fez?
Costa - Eu já estava sentindo a contradição de que a arquitetura acadêmica não tinha nada a ver com a tecnologia da construção moderna. Tinha havido uma revolução no século 19 que transformou a tecnologia construtiva. As paredes já não serviam para apoiar. Passaram a ser apenas invólucros e a estrutura da casa era independente da parede.

Folha - Com quem o sr. descobriu essa revolução?
Costa - Descobri essa mudança por meio da minha própria desconfiança de que havia um desencontro entre a tecnologia e a arquitetura.

Folha
- Foi dedução própria?
Costa - Foi. Senti que havia um descompasso. Foi uma revelação. Depois dessa descoberta, no fim dos anos 20, fiquei intransigente como o novo rico, o novo crente. Não conseguia trabalho porque me recusava a fazer casas de estilo.

Folha - Foi a descoberta do concreto?
Costa - Foi. Aí fui estudar. Eu estava já casado, morando com meu sogro no Leme. Foi um período de pobreza, mas tive vários anos de estudo apaixonado da arquitetura nova. Fui me informando sobre Gropius, Le Corbusier, Mies van der Rohe, me apaixonei pela renovação e larguei totalmente a arquitetura acadêmica.

Folha - Essa literatura era disponível no Brasil?
Costa - Não, ninguém conhecia. Levei muitos anos sem trabalho, com dificuldades, porque ninguém aceitava a renovação. Os projetos eram rejeitados. A clientela era muito apegada à tradição, no mau sentido. Foram três, quatro anos de crise intelectual.

Folha - Foram os anos fundamentais na sua formação?
Costa - Foram. Muitos arquitetos se revelam num período de sucesso. Eu me formei no fracasso.

Folha - Por que o sr. não gosta que o chamem de arquiteto modernista?
Costa
- Moderno é o certo. Modernista tem um ar pernóstico e um sentido suspeito. Parece que está se opondo ao que se fazia antes, à tradição, para fazer uma coisa obcecadamente moderna. Eu não via diferença. A verdadeira arquitetura moderna não promove uma ruptura com o passado, só a falsa. Isso acontece por causa da má formação de pseudo-arquitetos.

Folha - Os artistas modernos que o sr. expôs no Salão Revolucionário de 1931, como Lasar Segall e Tarsila do Amaral, não rompiam com o passado?
Costa - Não havia ruptura. Convidei os artistas modernos porque eles não compareciam ao Salão Nacional de Belas Artes. Eram rejeitados ou mal recebidos. Prevalecia a arte acadêmica. A escola só me aceitou porque tinha havido uma Revolução.

Folha - Como esse salão foi tratado na época?
Costa - Foi mal recebido pelos jornais, pelos artistas. Eu estava forçando a mão. Fui a São Paulo convocar os artistas paulistas da Semana de 22, Tarsila, Anita. Mário de Andrade veio também.
Foi uma novidade. Tinha uma parte renovada e todo aquele entulho dos artistas que compareciam todo ano. De ano para ano, parecia que era o mesmo salão, uma coisa muito monótona, pintores medíocres. Só uma minoria aceitava a arte moderna. Depois desse momento, o salão ficou mais aberto.

Folha - Muitos de seus projetos arquitetônicos dos anos 30, como a vila operária da Gamboa, são praticamente desconhecidos. O sr. esconde esses trabalhos?
Costa
- Não escondo. É que na época eram mal aceitos. Desfiguraram totalmente a Gamboa. Fiz essa vila com o Warchavchik. Ele veio para dar aulas na Escola de Belas Artes e ficou. Tivemos um escritório juntos e fizemos uns quatro ou cinco projetos.
Vi um trabalho do Warchavchik pela primeira vez na revista ``Para Todos''. Era aquela casa que ele fez na rua Toneleros, aqui no Rio. Foi a primeira vez que vi a possibilidade de fazer algo contemporâneo. A partir daí, comecei a me interessar pela arquitetura nova.

Folha - Le Corbusier e Gropius defendiam que a arquitetura moderna deveria estar à disposição das massas, mas vocês só faziam casas para grã-finos. Não era uma contradição?
Costa - Era uma contradição completa. É que o clima aqui era muito reacionário, muito negativo às renovações. O moderno era mal visto até pela sociedade culta.

Folha - Como é que um período tão reacionário formou os dois maiores arquitetos modernos do Brasil, o sr. e Niemeyer?
Costa - O Oscar ainda era estudante e já casado, tinha uma filhinha, e apareceu um dia no meu escritório com uma carta de apresentação do Banco Boavista. Ele queria trabalho.
O pai dele era uma pessoa de recursos, mas estava passando por um período um pouco difícil. Expliquei que era impossível, porque eu não tinha trabalho. Quando falei que não podia pagar nada a ele, o Oscar se prontificou a pagar. Ele queria pagar para trabalhar. Não aceitei, claro.
Mas falei que ele podia frequentar o escritório. Ele disse: ``Era justamente o que eu queria''. Passamos a ficar amigos. Ele frequentou o escritório por mais de um ano e não revelou nenhuma qualidade.

Folha - Ele era medíocre?
Costa - Era simpático, mas não mostrou talento. Era só um desenhista. Na época, eu não apostaria um tostão nele. É para você ver como as coisas são enganadoras. Oscar só se revelou depois que Le Corbusier veio ao Brasil, em 1936. Antes, ele estava alheio ao Le Corbusier, não sabia nada disso.

Folha - Por que Le Corbusier foi chamado para opinar sobre o projeto para o Ministério da Educação?
Costa
- Eu tinha feito um projeto que não agradava nem a Le Corbusier nem a mim. Era um projeto mal resolvido, ruim.

Folha - Não dá para entender como o governo Vargas convida em 1935 um arquiteto fascista, o Piacentini, para fazer o projeto de uma cidade universitária, e, no ano seguinte, chama Le Corbusier, que era tido como um arquiteto de esquerda.
Costa - Piacentini não era propriamente fascista. Todo italiano era considerado fascista. Era um movimento unânime. Por causa do Piacentini, o Gustavo Capanema (ministro da Educação) dizia que era impossível propor ao Vargas a vinda de outro estrangeiro.
Insisti tanto, que ele disse o seguinte: ``Eu levo você ao Vargas, e você explica. Eu não tenho condições de propor isso. O projeto que vocês fizeram está agradando''.
Fui e tive um diálogo muito curioso com o Vargas. Ele disse: ``O ministro está muito satisfeito com o projeto que você fez. Por que eu vou chamar um estrangeiro?''
Argumentei, apaixonado, sobre a vinda de Le Corbusier, tão apaixonado que senti que estavam puxando meu paletó atrás, para eu parar. Era o Capanema, chamando a atenção de que eu estava exorbitando, ao falar com o presidente daquela maneira.

Folha
- O que o sr. falou para o presidente Vargas?
Costa - Disse que era uma oportunidade excepcional, que não podia se perder, que essas coisas só acontecem uma vez. O Vargas disse: ``Então, chamem o homem''. Foi como o avô que cede ao neto por causa de um capricho.
Ele veio no zepelim, de madrugada. Ficou um mês aqui. Deu conferências, opinou sobre o ministério e a cidade universitária.
Na época, não havia no mundo prédios de arquitetura moderna com o porte do Ministério da Educação. Só havia coisas mais modestas. A responsabilidade e a dificuldade eram enormes. Por isso chamamos Le Corbusier.

Folha - O que ele sugeriu para o prédio?
Costa
- O Le Corbusier não teve nenhuma participação. O grupo que fez o projeto era apaixonado por Le Corbusier e procurou fazer o que o Corbusier gostasse. Ele fez um risco para um ministério, um projeto alongado. Ele sugeria que não fosse feito ali onde seria construído, mas num terreno à beira-mar. Dizia que o ministério ficaria cercado de prédios vulgares. Ele estava certo.
Mas o Capanema não aceitou. O governo tinha pressa, não tinha tempo para buscar outro terreno.

Folha - Quem decidiu que o prédio do Ministério da Educação seria feito por um grupo?
Costa - O Capanema havia me convidado, mas abri mão do projeto individual. Foi meu primeiro gesto acertado. Sou muito individualista, não gosto de trabalhar em grupo, mas as circunstâncias pediam um grupo.
Eram quatro arquitetos: eu, Carlos Leão, Afonso Eduardo Reydi e Jorge Moreira. Oscar e Ernani Vasconcelos entraram depois. O Moreira queria pôr um sócio dele no projeto, e o Oscar disse: ``Se o Moreira quer pôr o sócio dele, eu, que participo do projeto como amigo há um ano, também quero entrar''. Cada um ganhava um conto de réis por mês.
O Corbusier só conheceu o ministério depois de pronto. Não tem nada dele no prédio.

Folha - Em 1937, o sr. dirigia o grupo que projetava o prédio do Ministério da Educação e, ao mesmo tempo, estava no patrimônio histórico. Como era possível conciliar arquitetura moderna e preservação histórica?
Costa - No estrangeiro, quem gosta de arquitetura moderna detesta a tradição e vice-versa. Aqui foi diferente _o moderno e a tradição andavam juntos. Eu chefiava a divisão de Estudos e Tombamentos do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Achava que a arquitetura moderna não devia contradizer nossa tradição.

Folha - O sr. já havia descoberto Aleijadinho em 1937?
Costa - Eu fazia certas restrições a essa obsessão das pessoas por Aleijadinho, quando havia uma tradição colonial muito variada. Achava que tudo isso era menosprezado em seu favor.
Eu, erradamente, lamentava a projeção de Aleijadinho. Hoje, reconheço que a personalidade importante na história da nossa arquitetura é o Aleijadinho. Sou apaixonado por ele.

Folha - O sr. projetou o conjunto de prédios no Parque Guinle nos anos 40, uma época em que se dizia que o carioca de classe média alta não aceitaria morar em apartamento. Foi fácil vender os apartamentos?
Costa - Não. Custou um tempo, porque os corretores não sabiam vender apartamento. Esse projeto foi um combate desde o começo. Queriam fazer um prédio imitando o Palácio das Laranjeiras. Eu achava que não podia imitar porque ia ficar parecendo uma senzala ao lado da casa grande.
Foi difícil convencer os Guinle a fazer um prédio contemporâneo. Eles aceitaram porque eu não pedia muito dinheiro. Depois, eles fizeram um prédio maior para recuperar o dinheiro.

Folha - Como o sr. virou urbanista sem nunca ter estudado sistematicamente urbanismo?
Costa - Urbanismo era dado no último ano da escola. Depois, com Le Corbusier, voltei a me interessar pelo assunto. O Corbusier tratava o urbanismo como coisa fundamental e a arquitetura como coisa complementar. Foi com ele que me apaixonei por urbanismo. Não dá para separar a arquitetura do urbanismo.

Folha - No Memorial de Brasília, o sr. diz que não buscou o projeto, mas que estava se desvencilhando de uma solução. O sr. não estudou o Plano Piloto?
Costa - Não, eu não estava pensando em Brasília. Fui procurado por muitos arquitetos que queriam minha colaboração e sempre recusei. Eram seis meses de prazo e os arquitetos achavam o período curto. Nesse intervalo, fui aos Estados Unidos, convidado pela Parsons School of Design. Não estava interessado no concurso. Quando voltei por mar, comecei a me interessar por Brasília.
Cheguei, faltavam menos de dois meses para terminar o prazo, e me ocorreu uma solução que me pareceu válida. Desenvolvi a idéia e apresentei na última hora, no último dia. Já estavam fechando o guichê. Fiquei no carro e minhas filhas foram entregar o projeto.

Folha - A idéia já era a dos eixos se cruzando em cruz?
Costa - Era, mas não tem nada de religioso. Não me considero ateu, nem religioso. A minha sorte é que na comissão julgadora tinha três estrangeiros. Um deles, um arquiteto inglês chamado William Holford, me pareceu a cabeça mais lúcida dos três estrangeiros. A impressão que me ficou é que a opinião dele pesou muito.

Folha - Se o sr. não estudou o projeto para Brasília, então foi iluminação?
Costa
- Em parte, foi iluminação. Não tinha consciência, mas estava preparado para o projeto.

Folha - Brasília é acusada de ser uma cidade autoritária...
Costa - A cidade é a mais democrática possível. É um cacoete chamarem a cidade de autoritária. Não tem justificativa. A cidade tem um espírito aberto. Eu já disse que a Praça dos Três Poderes era a Versalhes do povo.

Folha - Havia uma idéia socialista por trás de Brasília?
Costa
- Talvez. Embora eu não me considere socialista, no fundo a minha abordagem tinha sempre um lastro socialista. Mas foi sem querer. Nunca pensei em conotações políticas. Eu sempre fui muito liberal. Na página final do livro, escrevo que não sou socialista nem capitalista e vou explicando o que sou. Brasília saiu daquele jeito porque eu já estava imbuído do interesse social, sem estar consciente disso.

Folha - Acusam Brasília de ser uma cidade artificial.
Costa - Todas as cidades projetadas são artificiais. Mas artificial não no sentido pejorativo, mas como uma invenção pessoal. Partiu de uma cabeça e um criador.

Folha - Dizem que Brasília é chata porque não tem esquinas.
Costa - Isso é uma bobagem, porque cada entrada de conjunto de quatro superquadras é uma esquina. As superquadras vão-se arrumando ao longo do eixo rodoviário e, de quatro em quatro, elas formam uma esquina.
Toda entrada de superquadra é uma esquina. Tem restaurante, café, aquelas coisas características de esquina. Não tenho nada contra a esquina. As pessoas não percebem as esquinas de Brasília porque estão habituadas a esquinas muito primárias. Lá, esquina é uma coisa mais urbana.

Folha - Com quais críticas a Brasília o sr. concorda?
Costa
- As críticas simpáticas eu recebo de bom grado e as antipáticas são de pessoas que já são prevenidas contra a cidade. Um crítico disse uma vez que Brasília era nome de cozinheira. É um preconceito muito arraigado.

Folha - Brasília não tem nada de negativo?
Costa - Deve ter, mas não sou eu a pessoa mais indicada para falar disso. Sou apegado a Brasília.

Folha - O sr. disse que Brasília não foi concluída. O que falta a ser feito na cidade?
Costa - O essencial está lá. Falta só arborizar as áreas não edificadas. Sou favorável ao plantio de arvoredos e bosques. Em toda quadra, foram reservados 20 metros para plantar dois renques de árvores de porte. Com o tempo, as copas se fecham e formam uma moldura verde. Em muitas quadras, falta essa definição de enquadramento verde.

Folha - Há críticos que dizem que a arquitetura moderna tem servido ao gosto de governos autoritários. O prédio do Ministério da Educação foi feito sob o Estado Novo e Brasília cresceu sob o regime militar. O sr. concorda com essa idéia de que a arquitetura moderna é tão vaga que serve a regimes autoritários de direita ou de esquerda?
Costa - Não acho isso uma consideração negativa. É um bom sinal o urbanismo funcionar bem num governo de direita ou de esquerda. O bom urbanismo está acima das ideologias. Pode ocorrer tanto num sistema político autoritário quanto num liberal.
Tudo depende dos profissionais responsáveis. Se eles são submissos a caprichos políticos, então são irresponsáveis. O verdadeiro urbanista está acima da direita e da esquerda.

Folha - O sr. já disse que o excesso de originalidade é um defeito em arquitetos. Por quê?
Costa - Não é o excesso de originalidade, é a preocupação com originalidade. É um defeito você começar a projetar qualquer coisa preocupado com originalidade.
Ela tem de ser intrínseca. Jamais deve estar na cabeça do arquiteto. Preocupação com originalidade é um mau começo, um defeito. Já começa errado.

Folha - O sr. chama Le Corbusier e Niemeyer de gênios, mas define-se como um ``espírito normal''. O que é isso?
Costa - É um espírito que não tem essas preocupações de figurar como evidência pessoal. Nunca tive essa ambição, de querer estar em evidência. Se tive alguma evidência, é apesar de mim e não por culpa minha.
As circunstâncias me puseram no cargo de diretor da Escola de Belas Artes, para organizar o grupo que fez o prédio do Ministério da Educação, e assim por diante.
Não tenho prazer em aparecer, nem me preocupo em ser discreto. Respeito quem gosta de aparecer, mas não fui talhado nessa linha de montagem. Fico fazendo o que me cabe. Faço o possível para não ficar em evidência.

Folha - Em 1969, quando fez o projeto para a Barra, o sr. previa grupos de prédios bastante separados uns dos outros. Por que o plano fracassou?
Costa - O espaçamento seria de 1 km, 1,5 km. Isso não aconteceu, mas está freando a ocupação geral. A Barra está se desenvolvendo com características mais generosas que o resto da cidade

Folha
- O sr. não sente culpa pelo que ocorreu à Barra?
Costa - Não, era de se esperar. A vida é mais rica, mais selvagem e mais forte que os projetos individuais. Já de saída, eu sabia que isso era uma fatalidade histórica.

Folha - Em 1930, o sr. disse numa entrevista: "Fazemos cenografia, `estilo', arqueologia, fazemos casas espanholas de terceira mão, miniaturas de castelos medievais, falsos coloniais, tudo, menos arquitetura''. Mudou algo nesses 65 anos?
Costa - Não tanto quanto deveria ter mudado. Muito do que eu falei está de pé, mas já existe uma série de critérios novos. De certo modo, melhorou. Não é só o lado negativo que cresce.

Folha - O sr. gosta da obra de algum dos jovens arquitetos?
Costa - Gosto dos renovadores, mas não ouso citar nomes.

Folha - Por que a arquitetura moderna é considerada capricho de arquiteto até hoje?
Costa - Ela ainda dá cabeçadas, mas o panorama é melhor do que na época em que comecei. Não há mais hostilidade contra os inovadores modernos. Ela vai se tornar linguagem do senso comum quando madurar. É questão de tempo.

Folha - O sr. diz que o que faz uma cidade funcionar é o estabelecimento de uma série de critérios simples. Isso é válido para metrópoles como São Paulo, Tóquio ou Cidade do México?
Costa
- Não, já é tarde. Essas cidades cresceram demais, já passou a oportunidade. Nós, talvez, estejamos vendo essas dificuldades por burrices congênitas.

Folha - O sr. saberia o que fazer para melhorar a qualidade de vida nessas cidades?
Costa - Sinceramente, não. Mas acho que essas cidades têm salvação. A vida é mais rica do que a nossa pobre filosofia e acaba dando certo. Há uma tendência a acertar. O resultado final é sempre a favor.

Folha - O que o sr. acha da arquitetura pós-moderna?
Costa - Falar em pós-moderno é uma precipitação pedante. O futuro é que dirá se a arquitetura é pós-moderna ou não.
Essa coisa de criar cenários ocorre nos Estados Unidos e os Estados Unidos não têm muito o que falar para o mundo. Os americanos já contribuíram com o máximo para a vida moderna e isso merece um respeito enorme. Gosto muito dos EUA, mas não podemos esperar mais deles. A Europa unida é que tem muito recado a dar, inclusive em arquitetura, por causa da diversidade de culturas.

Folha - O sr. nasceu em 1902 e está chegando ao final do século 20. O que este século produziu de melhor?
Costa
- Não ouso fazer distinções. Fui acompanhando a vida, sendo castigado. Sinto-me culpado pelo acidente que matou minha mulher. Isso me marcou por muito tempo (Costa bateu o carro numa árvore, acidente em que morreu sua mulher Julieta, em 1954).
Fiquei inteiramente perdido, mas fui me recuperando por causa das minhas filhas, a Maria Elisa e a Helena. Tive o privilégio de ter filhas boas, apesar dessa maldade do destino (chora). Foi um cochilo meu, idiota.

Folha - O sr. conheceu três dos maiores arquitetos deste século: Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e Mies van der Rohe. Qual deles era o gênio?
Costa
- O Corbusier. Era artista, filósofo e técnico. Desde o primeiro livro dele, ``A Caminho de uma Arquitetura'', ele tinha umas páginas impressionantemente atuais, proféticas. Os outros eram talentosos, mas não tinham essa visão global.

Folha
- O sr. parece distante de Niemeyer. Vocês brigaram?
Costa - Jamais. É que não cultivo amizade. Tenho pena de ser assim. Brasília foi uma coisa pessoal minha, não teve participação do Oscar. Ele é uma personalidade singular, que merece muito respeito. Nunca houve nenhuma nesga entre nós, só o afastamento.

Folha - Por que o sr. decidiu fazer o livro de memórias em formato heterodoxo, com cartas, projetos, crônicas, desenhos?
Costa - Não foi escolha. Simplesmente saiu assim. Chegou um dado momento em que senti a obrigação de dar o meu recado. Senão, eu morrendo, as interpretações dos meus atos, da minha vivência, poderiam ser erradas. Achei conveniente me antecipar. Só isso.
Reuni num livro coisas escritas durante a vida. Só a última página foi escrita especialmente para o livro. Tudo o mais foi uma compilação de sentido autobiográfico.

LUCIO COSTA - REGISTRO DE UMA VIVÊNCIA.
Organizado por Maria Elisa Costa. Empresa das Artes-Universidade de Brasília, com o apoio da Fundação Banco do Brasil e Via Engenharia. 608 págs., R$ 100. Nas livrarias a partir de agosto.



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