São Paulo, 27 de abril de 1991

ENTREVISTAS HISTÓRICAS

PAULO RÓNAI

Faz 50 anos que o tradutor
e ensaísta chegou ao Brasil


NELSON ASCHER
Da equipe de articulistas
ALCINO LEITE NETO
Editor de "Letras"

No dia 3 de março, fez 50 anos que Paulo Rónai, nascido na Hungria, chegou ao Brasil. Em 13 deste mês, comemorou 84 anos de vida. Nenhuma das datas foi pretexto para que se ausentasse do sítio Pois É, em Nova Friburgo (RJ), onde mora desde 77, com a mulher Nora, cercado das obras da Brilhoteca (como um dos netos chamava os seus dois andares de livros).
Naturalizado brasileiro desde 1945, tradutor, ensaísta e professor, Rónai é uma das principais figuras intelectuais do Brasil no pós-guerra. Na entrevista a seguir, ele recorda sua vida na Hungria, sua prisão em um campo de concentração, como descobriu a língua portuguesa, a sua amizade com Aurélio Buarque de Holanda ferreira, Guimarães Rosa, Ribeiro Couto e seu incansável
trabalho de divulgador da cultura mundial _o trabalho de um apaixonado das línguas e das literaturas. Sempre no plural.

Folha - O senhor tinha sete anos quando começou a Primeira Guerra Mundial. Como a guerra afetou a vida de sua família na Hungria?

Rónai - O meu pai foi convocado, apesar de ter seis filhos. Passou três anos longe da família. Eu me lembro de diversas privações que nós tivemos. Havia pouca comida. Minha mãe sozinha dirigia a livraria que meu pai possuía em Peste e tratava dos filhos. Era uma livraria sobretudo didática, num bairro onde havia muitas escolas. Mas a vida idílica que eu presenciei até os sete anos, num país muito tranquilo, a Hungria, parte da monarquia austro-húngara, acabou em 1914 e nunca mais a reencontrei.

Folha - Quando começou seu interesse por Balzac?
Rónai - Depois de meus primeiros estudos em Budapeste, ganhei uma bolsa do governo francês para frequentar a Sorbonne. Foi lá que comecei a estudar Balzac. Ele me acompanha desde 1929. Defendi tese sobre as suas obras juvenis na Universidade de Budapeste em 1930.

Folha
- Sua carreira de tradutor data da mesma época?
Rónai - Sim, junto da de professor. Dei aulas em vários ginásios de Budapeste, por último no ginásio israelita, e ao mesmo tempo já começava a escrever. A minha atividade literária tinha várias partes. Eu traduzia do húngaro em francês para uma revista que se chamava “Nouvelle Revue de Hongrie”. Traduzia também poetas de vários línguas, sobretudo de latim, mas também do francês, do espanhol, e tinha um capricho, que era apresentar a literatura brasileira ao público húngaro.

Folha - Mas como surgiu seu interesse pelo português?
Rónai - Quando estava em Paris, vi uma série de “As Cem Melhores Poesias da Língua Italiana”, “... da Língua Francesa” e assim por diante, e encomendei “As Cem Melhores Poesias da Língua Portuguesa”. No dia em que recebi a antologia, encontrei nela um poema de Antero de Quental, que compreendi e traduzi no mesmo dia. Levei a um jornal onde aceitaram publicá-lo. Quer dizer, no mesmo dia em que vi pela primeira vez um livro português já comecei a traduzir.

Folha - Junto da antologia veio também uma gramática?
Rónai - Não, veio só um dicionário. Um dia, numa das minhas aulas de italiano no colégio israelita, vi que um dos meus alunos não prestava atenção. Ele estava lendo um livro. Perguntei que livro era. Era uma gramática portuguesa. Perguntei a ele por que estava lendo esta gramática nas aulas de italiano. Ele respondeu: “Porque vamos imigrar para o Brasil”. Eu pedi a ele a gramática, publicada por uma livraria húngara de São Paulo e anotei o endereço. Escrevi a essa livraria, que era muito pequena, pedindo que me mandassem uma antologia da poesia brasileira e eu mandaria livros húngaros em troca.

Folha - E a livraria paulista respondeu?
Rónai
- Respondeu. Recebi uma antologia da poesia paulista e lá encontrei poemas de Ribeiro Couto e outros poetas, que comecei a traduzir. A primeira poesia que traduzi da antologia paulista foi “A Moça da Estaçãozinha Pobre”, de Ribeiro Couto. Quando já tinha traduzido um certo número de poesias, comecei a recitá-las. Em 1939, publiquei uma antologia de poesia brasileira, “Mensagem do Brasil”, que saiu no primeiro dia da Segunda Guerra. A Embaixada brasileira se interessou e mandou um pequeno relatório ao Brasil, cujo resultado foi um tópico no “Correio da Manhã”, que dizia assim: “Enquanto a guerra se aproxima, a cada espaço na Hungria, um maluco de Budapeste, está traduzindo poesia brasileira”.

Folha - Era um artigo sobre sua tradução?
Rónai - Era um tópico que tinha 20 linhas mas despertou o interesse de uns 50 poetas brasileiros, moços, jovens, a maioria sem nunca ter publicado nada, e comecei a receber livros de poesia. Fui à Embaixada e pedi alguns textos brasileiros. Na Embaixada só tinham o número de um Boletim Comercial da Embaixada do Brasil no Japão. Encontrei lá o nome de Ribeiro Couto, cônsul do Brasil na Holanda, que dava parabéns aos diretores do jornal. Escrevi para ele, em Haia, perguntando se era parente do poeta. Ele respondeu que ele mesmo era o poeta. A partir daí comecei a me corresponder com ele.

Folha - Do que tratavam nessa correspondência?
Rónai
- Muitas vezes ele respondia as minhas perguntas, várias delas esquisitas. Por exemplo, eu perguntava a ele o que era “morro”. Ele me desenhou um morro para explicar. Mas isso eu tinha encontrado no dicionário. O que o dicionário não explicava é que morro era favela, porque em Budapeste as colinas são as partes mais nobres da cidade, mais elegante. Ficamos amigos e foi Ribeiro Couto que me adquiriu um visto de entrada no Brasil. Quando recebi esse convite, já estava num campo de concentração, onde passei seis meses. Deixei na Hungria a minha noiva, que foi morta pelos nazistas.

Folha - Como o senhor escapou do campo de concentração?
Rónai - Nessa primeira fase foi uma convocação do governo húngaro pró-hitlerista. Deixaram-nos sair durante o inverno, depois convocaram de novo e, então, os que foram para lá nunca mais saíram. Fui convocado como trabalhador escravo. Passei seis meses numa ilha do Danúbio, onde nosso trabalho consistia em derrubar um edifício e construir um outro exatamente igual no lugar, sem ferramentas. Éramos pessoas de todas as profissões, em condições sub-humanas. Morria muita gente nos campos, de tifo e outras causas. Depois foram assassinados, mas nessa primeira fase ainda dependia de acaso. Quando nos deixaram sair durante o inverno, eu aproveitei a brecha e saí de lá. Deixei a Hungria em 28 de dezembro de 1940.

Folha - Como foi sua chegada no Brasil?
Rónai - Cheguei em 3 de março de 1941. Logo depois, comecei a ensinar em vários colégios. Dei muitas aulas. Até que apanhei uma doença muito desagradável, uma desinteria amebiana, que forçou a me hospitalizar. E aproveitei o tempo passado no hospital, onde estava completamente sozinho, para escrever uma série de livros de latim, que me permitiu, depois de ter saído de lá, abandonar um dos colégios e viver da renda do livro. Os dois primeiros ainda estão em uso hoje,a pesar da reforma do ensino. Só que o “Gradus Primus”, que era destinado à primeira série ginasial, é livro de estudo do primeiro ano de faculdade.

Folha - O senhor voltou a ter contato com sua família, na Hungria?
Rónai - A minha família sofreu os horrores da guerra na Europa. Perdi uma parte dela, minha mulher, minha sogra. Digo minha mulher porque eu contratei casamento por correspondência, por procuração em 43, quando já estava no Brasil. Nem isso conseguiu salvá-la da morte. Em 46, os membros da família que sobreviveram, sete pessoas, inclusive minha mãe, vieram para o Brasil e os ajudei a recomeçar a vida. Nesse momento eu já estava escrevendo com muita frequência em jornais. Foi quando conheci minha mulher Nora, arquiteta e professora, que ilustrou vários de meus livros. Nora foi o fato mais importante da minha vida, junto de minhas filhas Cora e Laura.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.