São Paulo, 29 de maio de 1994

ENTREVISTAS HISTÓRICAS

Educação pela fome

O educador Paulo Freire, que vai lançar um livro
de memórias, conta como criou a "pedagogia do oprimido"

MARILENE FELINTO

Da Equipe de Articulistas
MÔNICA RODRIGUES COSTA
Editora da Folhinha

Paulo Freire, 72, o mais importante educador brasileiro, está lançando seu livro de memórias, "Cartas a Cristina", pela editora Paz e Terra.
Escrito para uma sobrinha que queria conhecer melhor o tio exilado por 16 anos (de 1964 a 1980), o livro é uma coletânea de ensaios sobre sua vida e obra.
Paulo Regis Neves Freire é pernambucano de Recife, nascido a 19 de setembro de 1921.
Pai de cinco filhos, Freire é viúvo, casado pela segunda vez. É formado em direito, mas sempre exerceu as profissões de professor e pedagogo.
A grande contribuição de Freire à educação é tratar o ensino como fato político e de linguagem. Chamou atenção para a responsabilidade de educar, aliando competência técnica à conscientização política.
Em seu método de alfabetização, conhecido como método Paulo Freire, postula que o trabalho de alfabetização deva pôr em prática permanente a leitura do mundo e a leitura da palavra.
Considera que não existe texto sem contexto, tendo, por consequência, criado conceitos como "universo vocabular", "palavra geradora", "palavra-tijolo".
Em 1963, foi convidado pelo ministro da Educação, Paulo de Tarso, para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização.
Foi exilado por ocasião do movimento militar de 1964. Viveu no Chile, na Suíça e nos EUA, onde deu aulas na Universidade de Harvard. No Brasil, é ligado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à Universidade Estadual de Campinas.
Freire é doutor "honoris causa" pelas universidades Aberta de Londres, na Grã-Bretanha, de Louvain, na Bélgica, de Genebra, na Suíça, e de Michigan, nos Estados Unidos. Seus livros foram traduzidos para dezenas de línguas.
Em 1986, recebeu o prêmio Unesco de Educação. De 1988 a 1990, foi secretário da educação do município de São Paulo, na gestão Luiza Erundina.

Folha - O sr. está lançando um novo livro, "Cartas a Cristina". São suas memórias?
Freire - É um livro com memórias, mas não de memórias. É um livro que escrevi para uma sobrinha, quando eu estava no exílio, nos anos 70.
Ela escrevia muito para mim, vivia dizendo que queria conhecer melhor o tio e o professor. Comecei a escrever-lhe cartas sobre minha vida, a infância, a adolescência, a maturidade sobretudo.
Mas quando escrevo, não sigo um roteiro. Com um fato que se deu quando eu tinha dez anos, por exemplo, busco a compreensão teórica desse fato, nunca o deixo puramente escrito, mas analiso.
O livro é escrito em forma de cartas, mas no fundo são ensaios, e o estilo é leve.

Folha - O sr. tem um estilo quase literário. Já teve vontade de escrever ficção?
Freire - Isso! E eu estou praticando cada vez mais. Olha, vontade, você nem imagina. É um sonho, diria que é uma quase frustração, porque espero, eu gostaria, mas não sinto que tenha talento.
Essa é uma das razões por que eu, por exemplo, não aceitaria entrar em nenhuma academia de letras, porque não me considero escritor. É uma questão de rigor. Não é que eu ache as academias perda de tempo, nada disso, tenho grande respeito.

Folha - O livro "Cartas a Cristina" abrange que período de sua vida, exatamente?
Freire - O começo dele trata do exílio. Depois, discuto nas cartas, por exemplo, um fato importante na minha vida, a mudança que minha família fez, em 1932, de um bairro do Recife para uma cidade pequena, chamada Jaboatão.
Descrevo aí o que significou essa mudança na vida de um menino que até então tinha uma experiência de quintal na zona urbana e foi viver na beira de um rio.
Analiso o que essa sociologia especial provocou em mim. Saí de uma psicologia urbana e fui para uma psicologia rural, com água.

Folha - Em outros livros seus o sr. conta que nessa época conheceu a fome.
Freire - É, falo sistematicamente dessa experiência da fome e de milhares de outras fomes que conheci. Minha experiência dramática resultou do fato de que a família de classe média em que nasci sofreu o impacto da crise do capitalismo universal, a crise de 29.
O grande esteio nosso estava num tio, que era irmão de minha mãe, um homem rico, que perdeu quase tudo com a crise.
Meu pai, um oficial reformado da Polícia Militar de Pernambuco, se acidentara numa queda de cavalo e morreria em consequência disso. Antes da morte dele, a família tinha já grandes limites, por causa da quebra do meu tio.
Aí nos mudamos da casa onde nasci, no bairro de Casa Amarela, para Jaboatão. Meus pais foram para lá como se estivessem procurando uma tábua de salvação.

Folha - Foi nesse período que aconteceu sua "conscientização"?
Freire - Não, obviamente que não. Diria que já despertava em mim a sensibilidade para o fato de que, no mundo, havia qualquer coisa de errado.
Jaboatão me ofereceu essa possibilidade de ter mais chão e de viver mais pobreza, mais miséria, de conviver com menino trabalhador.
Foi uma convivência que considero hoje como um momento excelente de minha vida. Por um lado, senti mesmo a vontade de comer e não ter o quê, por outro vi outras fomes, mais profundas do que a minha, e convivi com o oprimido.
O que também é importante nessa minha experiência de infância é que eu venho de uma família católica. É um dado que serve a essa "conscientização".
Meu pai era espírita, minha mãe era católica e os dois se respeitavam, dando a nós um testemunho formidável. Isso foi meu primeiro exemplo de uma convivência democrática.
Não há democracia sem a convivência com o diferente. Se você recusa o diferente, você discrimina o diferente, o que é um absurdo. A democracia não pretende criar santos, mas fazer justiça.
Sem tolerância não é possível democracia. Até hoje tenho um enorme respeito pelo contrário e pelo diferente de mim. Foi importante para a minha aposta na liberdade, no respeito; não na licenciosidade, não. Acredito na liberdade que experimenta o seu limite. Vale dizer que eu creio na liberdade que tem relação democrática com a utilidade.

Folha - E a educação formal, o aprendizado da leitura e da escrita em sua infância, também contribuiriam para a formulação de seu método?
Freire - Minha primeira experiência como aluno se deu com meu pai e minha mãe. Eles eram leigos, não eram professores, mas me ensinaram de maneira exemplar, porque me ensinavam a partir do meu universo de menino.
O chão era o meu quadro-negro, o graveto era o meu giz. Eu escrevia ali as palavras, até que cheguei a me alfabetizar com sete anos. E aí fui para a escolinha de Eunice, que já morreu. Com ela aprendi uma coisa que me marcou muito, o exercício de fazer sentenças.
Isso se fazia muito na época, e era correto, porque a linguagem parte da sentenciação e não das sílabas, não da palavra solta. Eunice pedia que eu escrevesse num pedaço de papel quantas palavras eu soubesse e quisesse. Eu escrevia duas ou três palavras e ela mandava que eu fizesse sentenças.

Folha - As escolas que o senhor frequentou depois eram rígidas? Havia palmatória?
Freire - Não. Eu nunca passei pela experiência da palmatória. Nunca fui apavorado por algum professor. Depois dessa Eunice, fui marcado por uma outra professora fantástica, no grupo escolar, chamada Áurea.
E por fim, na adolescência, fui muito influenciado por uma terceira grande professora, uma intelectual chamada Cecília Brandão, já em Jaboatão, que me ensinou gratuitamente e me fez avançar no conhecimento da língua portuguesa. Então, se eu não tive experiências assim em escolas públicas, que me tivessem marcado demasiadamente, também não tive nenhuma que me tivesse horrorizado.

Folha - Com que idade o sr. começou a lecionar e como era o Paulo Freire professor?
Freire - Comecei a dar aulas aos 17 anos, em casa. Depois, aos 19 anos, passei a lecionar no Colégio Osvaldo Cruz, em Recife. Eu ainda estava no 4º ano de ginásio, ainda estava estudando.
Eu dava aula de português e era um apaixonado pelo que fazia. Confesso que não acredito em nada que a gente faça sem amar. Não é cavilação nem, digamos, falsidade. Acho que há duas condições para você ser eficaz no seu trabalho, uma é que você seja competente naquilo que faz. É preciso ir superando deficiências, ir ganhando um certo saber profissional. Em segundo lugar, não acredito em eficácia quando se faz a coisa sem que haja uma entrega a ela.
É preciso também exigir respeito por nosso trabalho, senão não adianta, eu não ficaria em lugar nenhum desrespeitado, a não ser se morresse de fome. Entre morrer de fome e aguentar um desrespeito, é o jeito. Mas, então, sem amar não dá, e eu realmente tinha e tenho um gosto tão grande pelo processo de ensinar que vocês não imaginam. Antes de começar a ensinar, eu sonhava com ensinar.
Quer dizer, ficava horas sentado num canto, me experimentando em pura fantasia de professor. Vivi tão intensamente isso que quando comecei a dar as primeiras aulas, elas eram tão concretas quanto as fantasias que desenvolvi como sonhador do magistério.

Folha - De onde o sr. acha que veio esse amor pela pedagógia?
Freire - Tu sabes que essa é uma pergunta boa, mas que eu não consegui jamais responder. Essa coisa me tomou, obviamente. Só que, antes de realizá-la, ela era de um modo. Eu precisava provar se, ao fazê-la, ela continuaria a me tomar. E então, o que acontece é que, quando eu dei as primeiras aulas, me senti extraordinariamente feliz, entende? Eu só pensava em fazer isso, em crescer assim, em me especializar cada vez mais. Então, eu estudava muito.
Lembro, por exemplo, da época da Segunda Guerra, em Recife, quando eu fazia minhas primeiras experiências de ensino. Recife era uma das cidades do Nordeste visadas pelos alemães como possibilidade de invasão do Brasil. De modo que a cidade vivia uma experiência de blecaute. Havia determinações do Exército no sentido de não se acender a luz da sala principal das casas. Só se podia acender a luz na interioridade da casa.
Eu aproveitava então a escuridão para iluminar a parte posterior da casa e estudar até duas, três horas da manhã. Li na época tudo o que havia de fundamental no campo da gramática, e as obras centrais de Ernesto Ribeiro, um baiano famoso, e de Rui Barbosa.

Folha - O sr. diria que já fundamentava o seu ensino na lógica, na filosofia?
Freire - Claro! Tu sabes que, mesmo quando eu não soubesse ainda, me encaminhava no sentido de mostrar a fundamentação científica da linguagem, certos mistérios da linguagem. Jamais a gramatiquice me atraiu, mas sim a compreensão sociológica, psicológica, tanto estética quanto filosófica da linguagem. E eu conseguia transmitir isso aos alunos.

Folha - O sr. tem noção precisa do momento em que concebeu o que seria depois chamado de método Paulo Freire?
Freire - Isso foi um pouco mais tarde. Em 1947, fui procurado por um amigo, a respeito de um serviço criado pelas indústrias brasileiras e que existe até hoje, o Serviço Social da Indústria, o Sesi.
Fui trabalhar como diretor da divisão de educação do Sesi. Obviamente que o problema educacional já me tinha sido revelado na minha experiência de professor. Os estudos que fiz como autodidata, no campo da psicologia, da linguagem, da filosofia, da linguística, terminaram me levando ao setor da comunicação e da teoria da comunicação, ou seja, ao campo da educação, da filosofia da educação.

No Sesi, tive meu reencontro com a classe trabalhadora, através do ensino, que reavivou um sem-número de conhecimentos e intuições de minha adolescência ainda, e que pude aplicar nas escolas que então fundamos.
Uma das coisas que tentamos realizar foi, por exemplo, o aprofundamento das relações entre família e escola. Desenvolvi toda uma metodologia dialógica que era também um reencontro com a minha vida pessoal, familiar.
Foi por ocasião dos meus seminários no curso de formação permanente para professoras que um dia me perguntei: por que não desenvolver um certo processo, com algumas metodologias, com alguns materiais, que façam mais fácil ao adulto aprender a ler e a escrever?

Folha - O sr. pensou desde o início no adulto?
Freire - Pensei realmente no adulto, não na criança. Essa preocupação na época era também política e não só educativa.
A prática educativa é uma prática política, que coloca ao educador uma ruptura, uma opção, ou seja, você educa com vistas a um certo ideal. É o sonho de sociedade que você tem.
Naquela época, quando eu me fiz essas perguntas, estava, de um lado, assombrado, e do outro, zangado, porque eu acho que o direito de ter raiva é fundamental na vida.
E eu tinha a mesma raiva de quando era menino e descobri que o mundo tinha qualquer coisa de errado e precisava ser corrigido.
Nessa altura descobri que o analfabetismo era uma castração dos homens e das mulheres. Uma proibição que a sociedade organizada impunha às classes populares.

Folha
- Seu trabalho no Sesi foi tão importante quanto o trabalho no Movimento de Cultura Popular (MCP)?
Freire - O MCP teve vida curta, ele nasce em 1961 e é abolido em 1964, com o golpe militar. Mas ele teve uma presença marcante no Brasil. Foi nessa ocasião que nasceu a minha grande indagação. O trabalho anterior que fiz no Sesi desde 1947 serviu de fundamentação para a resposta que dei à minha pergunta.

Folha - A resposta foi o "método Paulo Freire"?
Freire - Exatamente, a resposta foi o que se veio chamar de método Paulo Freire. Ele foi concebido espaço entre 1961 e 1963, quando foi aplicado em Angicos (RN). Mas nada nasce quando a gente pensa que nasceu. As coisas vêm de antes, dormindo, não é? Desde 1947 eu trabalhava sem saber naquilo que veio depois.

Folha - Como foi implantada em Angicos essa experiência?
Freire - Olha, a coisa se deu da seguinte forma, eu recebi um chamado do secretário da Educação do Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes, para ver até que ponto eu daria uma colaboração a eles. Fui muito criticado por alguns elementos da esquerda, que me pensaram pervertido já pela Aliança para o Progresso.

Folha
- Quem criticou o sr. nessa época?
Freire - Eu preferia não chegar a nomes. Mas foram algumas pessoas sérias e, na minha opinião, equivocadas. Minha tese era a seguinte: o que importava a mim para ajudar nosso povo era saber se, primeiro, eu teria autonomia político-pedagógica.
Segundo, se eu poderia indicar a pessoa responsável pela experiência no Rio Grande do Norte. Daí para a frente, o dinheiro poderia vir de onde viesse.
Terceiro, eu não receberia dinheiro, não recebi. Eu tinha meu ordenado da universidade. Mas alguns amigos, gente séria, gente boa, achavam que isso era dar uma colher de chá muito grande ao imperialismo americano.
Eu dizia que não, eu só estaria dando colher de chá ao imperialismo americano se eles interferissem no conteúdo do trabalho.

Folha - Nos anos 60 como era a sua participação na política?
Freire - De forma indireta. Eu hoje te digo que era de forma diretíssima, entende? Mas não através de uma sigla partidária. Sobre isso eu tenho, inclusive, uma história curiosa para contar.
Quando eu estava no exílio, na Inglaterra, em 1969, achei um livro chamado "A Aliança que Perdeu seu Caminho" ("The Aliance which Lost its Way").
Era de autoria de dois jornalistas do "The New York Times", que tinham trabalhado no Recife e em Natal. Lá pelas tantas, eles estudavam o programa do Paulo Freire em Natal, no Nordeste, e diziam: "Para nós, Paulo Freire foi eminentemente subversivo, ou melhor, revolucionário, na medida em que seu programa estimulava o pensamento crítico, trabalhava contra as tradições autoritárias dos donos do mundo, dos donos da vida. E quando –diziam eles– a direção geral da Aliança para o Progresso descobriu essa conotação política do programa Paulo Freire, suspendeu sua ajuda três meses antes do golpe a Goulart".
Eu acho que essa afirmação nesse livro me absolve historicamente, prova que eu estava certo.

Folha
- Esse programa se aplicaria hoje?
Freire - As minhas perguntas em torno do chamado método de natureza política e ideológica continuam de pé. Hoje, eu adequaria algumas de minhas propostas, de acordo com os estudos atuais da sociolinguística, da psicolinguística. Não há dúvida de que fundando-me em Piaget, Vygotsky, e nos achados que a pesquisadora argentina Emília Ferrero vem apresentando no campo da alfabetização, da produção da linguagem.
Vygotsky, inclusive, me influenciou antes que eu o lesse, nós dizemos coisas parecidas sobre o procedimento da prática da alfabetização. Do ponto de vista da compreensão do que é ler e escrever, não mudo coisa nenhuma do que escrevi.
Acho que com isso respondo a sua pergunta sobre quando o método nasceu. Minha preocupação era com a crítica da prática educativa.
A tese acadêmica que escrevi em 1959, "Educação e Atualidade Brasileira", já era um anúncio da "Pedagogia do Oprimido", de 1968. Era o núcleo central de todo esse pensamento que eu desenvolvi também no livro "Educação como Prática da Liberdade".

Folha - O Golpe de 64 de algum modo estigmatizou seu método como subversivo, de esquerda radical.
Freire - Tentaram, mas não vingou, na medida em que os estudiosos descobriram que minha proposta era um pouco mais do que a pura alfabetização, ainda que a alfabetização seja de absoluta importância.
O professor Ernani Fiori, que escreveu o prefácio da "Pedagogia do Oprimido", diz que a alfabetização é uma introdução à antropologia, à compreensão do homem e da mulher.
Os intelectuais perceberam que afinal eu estava preocupado com uma compreensão crítica e criadora da educação, com a filosofia da educação.

Folha - Seu método é mais importante por ter fundado uma filosofia da educação no Brasil ou pela aplicação concreta que teve?
Freire - Todas essas coisas são válidas. Um fato curioso quanto à aplicação concreta no Brasil é, por exemplo, o Mobral nascer para negar meu método, para silenciar meu discurso, mas ter trazido para dentro de seu quadro de professores jovens que tinham trabalhado com o método Paulo Freire.

Folha
- Por que o método Paulo Freire não conseguiu erradicar o analfabetismo no Brasil?
Freire - Tu sabes que, em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou, centralmente, foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Para a classe dominante reconhecer os direitos fundamentais das classes populares não é fácil.
Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história.
Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas.

Folha - Como foi o episódio de sua prisão, em 1964?
Freire - Quando o golpe se deu, eu estava em Brasília. Conseguimos mandar minha mãe, que estava comigo, e meus cinco filhos, as três meninas e os dois meninos, de volta para Recife.
Ficamos, Elza e eu, na casa de um grande amigo, Luiz Bronzeado, que era deputado federal da situação na época, essas coisas que só no Brasil existem, não é?
Ele era da situação... Ele dizia "Paulo, discordo de tuas idéias, mas tu és um homem de bem, um homem como eu, e eu gosto muito de você, sou teu amigo", e nos guardou a mim e a Elza durante os primeiros dias.
Eu sabia que seria preso. O que eu queria evitar era a prisão no Nordeste. Onde tem cana-de-açúcar a coisa é muito bruta, não é? Elza foi para Recife antes de mim, e não foi presa.
Depois de um mês em Brasília, voltei a Recife, me apresentei à polícia e eles marcaram para eu ser entrevistado, quando então o Exército se antecipou e me prendeu.
Foram me buscar um dia em casa, me levaram para o quartel do Exército, em Olinda, e eu fiquei preso durante 75 dias numa cela de 1,70 m por 60 cm e de paredes ásperas. Respondi interrogatório, mas não fui torturado. Fui preso no começo da experiência do golpe, quando não haviam ainda "democratizado" a violência, a tortura.
Depois disso me mandaram para o Rio de Janeiro, para eu continuar a ser inquirido. No Rio, um amigo me aconselhou a me esconder e ir embora do Brasil. Então pedi asilo na embaixada da Bolívia, onde passei um mês, até o governo brasileiro me dar o salvo-conduto para deixar o país.
Depois da Bolívia, fui para o Chile, onde fiquei até 1969 e então saí para os Estados Unidos. Foi muito importante viver quase um ano nos Estados Unidos, porque eu tive a possibilidade de ver de perto o bicho na toca.

Folha
- O sr. é um cientista. É também religioso?
Freire
- Sou muito mais um homem de fé. Mas sequer tenho mérito por isso, porque não faço força para acreditar, entende?
Quando eu era moço, li num livro do filósofo espanhol Unamuno a seguinte frase: "Eu estou em minha fé." Acho que comigo acontece isso também.
Experimento a fé, como quem se experimenta nesta cadeira agora. Eu me sinto instalado na fé. O importante é que jamais consegui conceber que minha fé pudesse servir contra os interesses do povo. Jamais pude admitir que pudesse conciliar a fé com uma posição reacionária.

Folha - O fim do comunismo é definitivo?
Freire - O fim do comunismo no Leste europeu representa uma queda necessária, na minha opinião. Mas é a queda não do socialismo, do sonho, da utopia socialista. É a queda da moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista, dentro da qual se pôs o socialismo.
Entre o socialismo e o capitalismo, a diferença fundamental é que o capitalismo tem uma moldura democrático-burguesa. O que presta no capitalismo, no meu entender, não é ele. Para mim, ele é uma malvadez em si mesma. Se se pensa na excelência do capitalismo no Brasil, eu me pergunto: que excelência é esta que produz 33 milhões de famintos?
O que o capitalismo tem de bom é apenas a moldura democrática. Um dos maiores erros históricos das esquerdas que se fanatizaram foi antagonizar socialismo e democracia.
Por isso, a queda do muro de Berlim é uma espécie de hino à liberdade, muito mais do que um retorno ao capitalismo. A utopia socialista talvez nunca tenha tido uma oportunidade tão bacana quanto hoje, historicamente, para crescer.
Porque, de agora em diante, o capitalismo já não pode dizer que a culpa de seus males é do comunismo. Ele tem que assumir a sua responsabilidade.

Folha
- Como foi sua experiência de secretário da Educação da prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina? Dizem que o sr. não conseguiu imprimir sua marca pessoal naquela administração.
Freire - Qual nada. Eu diria até que a gente não tem que imprimir marca pessoal coisíssima nenhuma. As marcas pessoais são sociais. Mas há sempre uma dimensão pessoal a ficar, e esta ficou. Nossa gestão fez um trabalho de colegiado, e isso é bem Paulo Freire. Fui possivelmente o secretário que menos poder teve, porque descentralizei totalmente a administração.


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