São Paulo, 30 de março de 1991


‘Nunca analisaram meu
humor’, diz João Cabral

A seguir, João Cabral fala da revista “Fundação”, ao Recife, da sua amizade com Carlos Drummond de Andrade, de seu encontro com Mário de Andrade e de sua atividade jornalística no “Última Hora”, da Samuel Wainer, em 1954.

Folha - Como o senhor chegou à literatura?
João Cabral - Meu pai me levou ao “Diário de Pernambuco”, do seu amigo Aníbal Fernandes, porque eu queria ser jornalista. Mas o Aníbal disse: “Ele é muito moço para ser jornalista, deixa passar uns anos que ele vem trabalhar aqui”. Eu já frequentava uma roda literária no Recife com Lêdo Ivo e outros. O mais velho de nós todos, uma espécie de mentor, era o Willy Lewin. Ele tinha uma biblioteca de literatura francesa moderna enorme e foi quando eu tomei conhecimento do surrealismo e outros poetas modernos. Tudo acontecia nessa roda do Café Lafayette, que hoje não existe mais e onde atualmente construíram um banco. Meu ideal era ser crítico literário. Mas pensei que com 18 anos eu não tinha experiência nem cultura para ser crítico. Como ali todo mundo lia muito e escrevia poesia, comecei a escrever também.

Folha - O senhor ajudou a fundar a revista “Renovação”, junto com Willy Lewin e Vicente do Rêgo Monteiro?
João Cabral - Não. A revista pertencia à central sindical, cujo líder era Edgar Fernandes, amigo do Vicente, que o chamou para fazer a revista. Vicente acabou levando-a para o lado literário.

Folha - No seu livro “Primeiros Poemas”, publicado recentemente, pode-se perceber a forte influência de Murilo Mendes e de Carlos Drummond. Ambos foram convidados para participar do 1º Congresso de Poesia organizado por “Renovação”. Vocês já tinham laços estreitos nesta época?
João Cabral - O Murilo era mais amigo do Willy Lewin. Quando eu vim ao Rio pela primeira vez, em 1940, para conhecer a cidade, lembro que .....trouxe uma carta do Willy Lewin para o Murilo. O Murilo me recebeu muito bem e foi ele que me apresentou ao Carlos Drummond. Conheci também o Jorge de Lima. Seu consultório na Cinelândia era um ponto de encontro.

Folha - Neste livro que recobre suas primeiras produções também há muitas referências a Pirandello. O que o fascinava em Pirandello nesta época?
João Cabral - Quando eu estava no Recife, chegou uma edição de Pirandello traduzida para o francês e publicada pela Gallinard. Comprei e foi uma revelação. Esse poema sobre Pirandello foi um dos primeiros que escrevi. Eu era fanático por Pirandello. Gostava do teatro dele.

Folha - O senhor veio de mudança para o rio em plena Segunda Guerra. Veio direto para o Itamaraty?
João Cabral - Vim para o Rio em novembro de 43. Vim por terra porque os navios estavam sendo afundados pelos alemães. Fiz uma viagem de 13 dias, por trem, ônibus e barca, para atravessar o rio São Francisco. Como não havia nenhum concurso do Itamaraty aberto, fiz um para o Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), que controlava todos os exames e concursos. Fui ser assistente de seleção.

Folha
- Dessa vez, então, o senhor pôde se encontrar com o Manuel Bandeira?
João Cabral
- Manuel Bandeira era parente muito próximo. Eu o visitava toda semana. O Bandeira era muito curioso porque ele tinha saído do Recife aos nove anos e nossa conversa, fora a literatura, era a respeito da família. Ele perguntava: “E Fulano como era?” Às vezes, me dizia: “Isto aqui você deve ler que é muito bom...”

Folha - E como eram seus encontros com Drummond?
João Cabral - Nós nos encontrávamos diariamente. Todas as tardes íamos tomar lanche no Café Itaí. Eu descia do Dasp, que era no prédio do Ministério da FAzenda, aquele edifício horrendo, e o Carlos saía do edifício do Ministério da Educação, projetado pelo Oscar (Niemeyer). Agora, o Carlos Drummond só sentia muito prazer estando apenas com uma pessoa, se chegasse outro sujeito ele ia embora. Ele só sabia falar com uma pessoa. Por isso ele era um papo longuíssimo no telefone e muita gente que ele nunca viu conversou com o Carlos por telefone.

Folha - O senhor chegou a frequentar a casa dele?
João Cabral - Eu só fui à casa dele uma vez, porque meu irmão, Evaldo (Cabral de Melo Neto), que é historiador, queria conhecê-lo e ele não podia receber de dia no Ministério. Então, fomos visitá-lo à noite. O Carlos Drummond era um sujeito muito engraçado. Naquele tempo, ainda havia banquetes de homenagem a Fula e a Beltrano. Uma vez deram um banquete que eu não me lembro mais para quem era. Começou o banquete e o Carlos não tinha chegado. Então, daqui há pouco chega ele. Não come nada e diz: “Eu vim tarde porque eu me esqueci deste banquete e já almocei em casa”. Ele tinha a teoria de que comer é um ato obsceno, de que o sujeito não deve comer em público. A única vez que comi com o Drummond foi no dia do meu casamento, porque ele foi o meu padrinho no religioso. O meu sogro deu um almoço muito grande e ele, como padrinho, foi. O Manuel Bandeira, que gostava muito dele, tinha essa mágoa, porque nunca foi convidado para ir à casa do Drummond.

Folha - O Mário de Andrade mantinha nesse período aquele aspecto de liderança, sobre o Drummond inclusive?
João Cabral - Não. Mário de Andrade não tinha escrito o que talvez seja o melhor livro dele, “Lira Paulistana”. Quando estava escrevendo este livro, ele se correspondia quase diariamente com o Drummond.

Folha
- O Drummond lhe mostrava essas cartas?
João Cabral - Eu lia toda a correspondência entre eles , porque o Carlos meu deu para ler quando eu era funcionário do Dasp. Ele me mostrava e nós íamos acompanhado a criação de “Lira Paulistana”. As cartas de Mário de Andrade foram primeiramente escritas a mão. Foi minha futura mulher que copiou à máquina, mas eu não fique com cópia e devolvemos toda aquela parte manuscrita.

Folha - O senhor chegou a se encontrar com o Mário de Andrade alguma vez?
João Cabral - Todo mundo que escrevia poesia mandava para o Mário e ele comentava. Mas tenho a impressão que ele detestou meu primeiro livro. Fui o único sujeito que mandou livro para o Mário de Andrade que ele não respondeu. Outra vez, eu estava com o Bruno Accioly e ele me chamou para visitar o Mário de Andrade no Hotel Natal, na Cinelândia. Entramos, o Bruno me apresentou, o Mário de Andrade apertou minha mão e pronto. Sem uma palavra. Eu já tinha mandado o livro. Talvez o livro tenha se extraviado. Porque se ele teve preguiça de responder a carta, ele diria alguma coisa nesse primeiro encontro.

Folha - E com Oswald de Andrade, como foi seu contato?
João Cabral
- Eu vi o Oswald de Andrade duas vezes. Uma na casa do Aníbal Machado e outra no “Diário Carioca”, dirigido pelo Prudente de Moraes Neto, cujo pseudônimo literário era Pedro Dantas. Foi uma coisa muito engraçada. O Oswald de Andrade chamou o fotógrafo, nós sentamos, eu do lado dele e atrás do Prudente de Moraes Neto, junto com, se eu não me engano, esse senador Pompeu de Souza, que era jornalista. A foto foi feita mas eu nunca vi. Depois, o “Diário Carioca” acabou e devem ter destruído a fotografia.

Folha - Nessa época, na década de 30 e 40, era uma questão intelectual posicionar-se entre o grupo católico e o marxista. O Drummond, por exemplo, embora sem filiar-se ao Partido, era evidentemente alinhado à esquerda. Já o Murilo converteu-se ao catolicismo. O senhor conviveu com os dois...
João Cabral - Mas é isso. Nossas conversas não tratava deste assunto.

Folha
- Mesmo o Murilo Mendes teve um período em sua vida em que foi muito próximo do marxismo...
João Cabral - Ele gostava de fazer escândalos.

Folha - Após a conversão, no final da vida, afirmava ser um socialista...
João Cabral - Mas nesse tempo ele tinha se convertido à religião e publicou aquele livro duplo com o Jorge de Lima, “O Tempo e a Eternidade”. O Willy Lewin era católico, o Vicente do Rêgo era católico. O Willy era realmente católico, mas o Vicente era um pouco de atitude.

Folha - Como foi sua formação religiosa?
João Cabral - Era católico. A gente passava parte do dia na igreja, rezando, cantando. Aquilo me dava um enjôo danado.

Folha - O senhor sempre diz que não é católico, mas acredita no inferno...
João Cabral - Fiquei desde menino ouvindo aquelas coisas sobre o inferno dos irmãos Maristas, que eles descreviam como um espetáculo tão terrível, que passei a acreditar. Eu me considero materialista, mas acredito no inferno.

Folha - Mas como o senhor imagina o inferno?
João Cabral - Imagino como os irmãos Maristas descreviam, com aqueles caldeirões com água quente. Essa coisa me marcou muito. Como me marcou em geral o homem do interior do nordeste.

Folha - Voltando à questão política, como o senhor se definiria?
João Cabral - Eu detesto política. É uma coisa muito bonita enquanto está na teoria, mas quando chega na prática, prevalecem outros interesses.

Folha - Por que razões o senhor voltou ao jornalismo na década
de 50?
João Cabral - Isto foi depois que respondia a inquérito na polícia política, de 52 a 53, acusado de comunista, quando me afastaram do Itamaraty. Trabalhei na “Última Hora”, do Samuel Wainer, e num jornal chamado “A Vanguarda”, dirigido por Joel Silveira, onde fui secretário. No “Última Hora”, me lembro que fui eu que escrevi o artigo sobre a morte do Getúlio, publicado na primeira página e que o povo pregou nos postes pela cidade. Fui eu que fiz aquilo. Mas minha função era de comentarista internacional. Na “Última Hora” todo mundo era getulista e o pessoal na redação baratinou. Todo mundo, menos eu e o secretário do jornal, o Paulo Silveira, irmão do Joel Silveira, que era um sujeito frio, trabalhador. A gente tinha que botar o jornal na rua e o Samuel me pediu, chorando, que fizesse o artigo. Depois, meu caso foi julgado e me readmitiram no Itamaraty.

Folha - Como é seu cotidiano?
João Cabral - Acordo por volta de 9 e meia. Todo o café e leio os jornais, que acho tão essencial como o café da manhã. leio os jornais até 11h30, meio dia, e começo a ler livros. Depois do almoço, tenho que descansar uma hora, por ordem médica. Depois que eu descanso, volto a ler, Minha cadeira de leitura é muito confortável, mas hoje, quando é 6h, já não tem luz para ler. E com este calor do Rio, é impossível botar um desses abajures perto porque o calor aumenta. Eu fico muito irritado porque depois das 6h eu não posso ler mais.

Folha - O senhor gosta de beber?
João Cabral - Com esta vida diplomática é impossível não beber. Há sempre reuniões, almoços, jantares a que você tem que comparecer. Eu sou um sujeito tímido e bebo para me adaptar à presença de toda essa gente. Além disso, acho muito antipático se o sujeito oferece um troço para você e você não aceita, como se fosse um puritano.

Folha - O senhor excluiu alguns poemas de seu primeiro livro, “Pedra do Sono”, e sempre se refere de maneira negativa a “Morte e Vida Severina”. Estes seriam os pontos fracos em sua obra?
João Cabral
- Eu não falo mal de “Morte e Vida Severina”. O que eu digo é que o livro foi feito a pedido de Maria Clara Machado e eu tinha um prazo muito curto, de forma que é o menos trabalhado. Mas eu não tenho do direito de refazê-lo. Isso é o que eu digo e então pensam que eu não gosto do livro. Se não gostasse, não teria publicado, compreende? Agora, uma coisa que me decepcionou é que quando eu escrevi “Morte e Vida Severina” estava pensando nessa gente, como aquela do engenho, que não sabe ler e ficaria escutando. Quando o livro foi publicado, dei para o Vinícius e ele veio com o maior entusiasmo. Eu então disse: “Olha, Vinícius, eu não escrevi este livro para você e sim para o público analfabeto. Mas estou vendo que quem gosta do livro são os intelectuais. Para você escrevi ‘Uma Faca Só Lâmina’, que é uma coisa difícil”. Foi ingenuidade minha, “Morte e Vida Severina” não chega ao povo analfabeto que consome os romances de cordel.

Folha - Há algum aspecto de sua obra que não foi observado pela crítica?
João Cabral
- Escreveram tanto sobre mim que eu não vejo claro esta coisa. Eu não vivo lendo a minha obra. Mas eu tenho a impressão que, inclusive em “Dois Parlamentos” e “Morte e Vida Severina”, o humor é um dos aspectos dos meus livros que não chamou a atenção de ninguém.



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