Dinheiro no ar
Venda de créditos de carbono gera renda para comunidades indígenas e é alternativa a atividades ilegais como extração de madeira, mas encontra resistência em algumas aldeias
Horas após uma viagem de 1.600 km de barco, ônibus e avião, 13 índios de nove etnias do Parque do Xingu (MT) já se acomodavam no auditório com teto de palha e datashow da associação Metareilá, em Cacoal (RO), fundada por índios paiter-suruís.
O cansaço não diminuía a vontade de entender como extrair da floresta o fruto da moda, que não tem nada a ver com castanhas ou açaí.
"Quando a gente ouve 'carbono' fica assustado", diz Ayakanukala Laura, 32, técnico de gestão territorial do povo wauja. "A minha pergunta é assim: continua usando a floresta? Continua usando ervas medicinais? Continua fazendo roça?"
As dúvidas abriram um sorriso no rosto de Julio Suruí, 35, um dos coordenadores do primeiro projeto de crédito de carbono em terra indígena brasileira. "Pensei que você fosse perguntar: 'Vocês venderam a floresta?'", brincou o veterano de reuniões para tentar convencer seu próprio povo de que a novidade oferece alternativa à exploração de madeira e ao aluguel de terras indígenas para fazendeiros, atividades tão ilegais quanto comuns ali.
Essas são as questões mais básicas da controvérsia acerca da venda de créditos de carbono. Para seus defensores, trata-se de renda que melhora a vida das comunidades e incentivo econômico para manter a mata em pé.
Do outro lado, seus críticos argumentam que o pagamento não leva à redução das emissões pelas empresas, que compram o direito de poluir por meio dos créditos de carbono, mas apenas terceiriza as metas de redução dos países ricos para as nações em desenvolvimento.
ESTOQUE DE CARBONO
A ideia de vender créditos de carbono começou a circular em 2007 na Terra Indígena Sete de Setembro, área de 2.480 km² entre Mato Grosso e Rondônia onde vivem cerca de 1.400 suruís. Surgiu como possível fonte de financiamento do plano de gestão da área, elaborado em 2000.
"A gente precisa buscar a solução dos desafios. Primeiro, o desmatamento. Segundo, o impacto negativo sobre nossa cultura. E, terceiro, fortalecer a economia do povo", diz o líder Almir Suruí, 41, aos "parentes" do Xingu na associação Metareilá, liderada por ele e sediada a 50 km da Terra Indígena Sete de Setembro.
Em 2009, o projeto de carbono foi lançado. Na primeira etapa calculou-se o estoque de carbono da floresta.
Em 2012, eles receberam a certificação internacional do VCS (padrão verificado de carbono, na sigla em inglês) e do CCB (clima, comunidade e biodiversidade). Baseadas nos EUA, essas ONGs atuam em parceria para auditar projetos comunitários.
Foram calculadas 210 mil toneladas de gás carbônico (CO) retiradas da atmosfera pela terra indígena entre 2010 e 2012. Em paralelo, houve um zoneamento etnoambiental para orientar a ocupação do território. Foi com esse mapa que Julio respondeu às perguntas de Ayakanukala.
O território foi dividido em três. Nas bordas, as áreas para aldeias e agricultura. Espalhadas pelo território, manchas representam áreas degradadas que precisam de recuperação. Outra área, a maior delas, foi usada para calcular o sequestro de carbono. Zona de preservação, só pode ser usada para caça, pesca e extrativismo.
PIONEIROS SURUÍS
Em 2013, 44 anos após terem sido contatados pela Funai, os paiter-suruís se tornaram a primeira população indígena do mundo a vender créditos de carbono no programa Redd+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal).
O mecanismo internacional de créditos de carbono tem aval da ONU e parte do princípio de que emissões de gases tóxicos evitadas por queda do desmatamento devem ser consideradas.
No Brasil, o esquema carece de regulamentação pelo governo, que não concluiu a Estratégia Nacional de Redd+ iniciada em 2010.
O primeiro comprador foi a fabricante de cosméticos Natura, que pagou R$ 1,2 milhão por 120 mil toneladas de CO para compensar parte das emissões da empresa. Foi preciso o aval da Funai.
No ano passado, antes da Copa do Mundo, a Fifa também adquiriu 70 mil toneladas, por valor não revelado.
O dinheiro, depositado num fundo e administrado pela Metareilá, é gasto na aquisição de equipamentos, como caminhonetes para a fiscalização do território, e no financiamento de projetos das aldeias, como lavouras.
A adesão, no entanto, é minoritária entre os paiter-suruís. Só dez das 25 aldeias estão envolvidas.
Para Almir, a maior dificuldade é o imediatismo: muitas aldeias não esperam a maturação de um projeto sustentável e acabam aliciadas por madeireiros e fazendeiros que querem arrendar a terra.
Os madeireiros pagam aos índios cerca de R$ 60 por metro cúbico das toras mais nobres, como cedro e freijó.
O Ibama admite que a situação na região está fora de controle e culpa os Estados por emitirem licenças de extração de madeira em planos de manejo –são 70 num raio de 80 km, mais 306 serrarias.
Um dos índios que admitem negociar com madeireiros é Henrique Suruí, 50, primo-irmão de Almir e principal liderança contrária à venda de créditos de carbono.
Em janeiro, ele foi a Brasília denunciar o projeto Redd+ ao Ministério Público Federal, acusando-o de dividir os paiter-suruís com a distribuição desigual dos recursos.
Ele disse que, durante a discussão do projeto, a venda de madeira foi suspensa. Hoje, porém, os que se opõem a Almir negociam as árvores. "O povo suruí votou pela retirada da madeira de terra indígena. É um tipo de protesto."
NA INTERNET
Assista ao vídeo em
folha.com/152614
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GLOSSÁRIO
ZONEAMENTO ETNOAMBIENTAL
Estudo que mapeia os recursos naturais de terras indígenas e aponta como eles devem ser utilizados
VCS
Sigla para Verified Carbon Standard. É um programa de reduções voluntárias de emissão de gases do efeito estufa. Estabelece critérios para comprovar que os projetos certificados por eles são reais, permanentes e verificados de forma independente
CCB
Sigla para Climate, Community and Biodiversity. É uma ONG que analisa projetos que reduzem a emissão de CO?, comprovando que eles trazem benefícios