Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria
Opinião
Chute de exoesqueleto é, mais uma vez, oferta de baú misterioso de salvação
JAIRO MARQUES COLUNISTA DA FOLHAEm um rápido esbarrão com o filósofo Mário Sérgio Cortella, dias atrás, ele me aconselhou a nunca questionar esperanças, apenas respeitá-las e tentar entendê-las.
Assim, preciso admitir que a também rápida, rapidíssima, papa-léguas demonstração da roupa robótica, usada por um paraplégico, que encostou em uma bola em plena abertura da Copa do Mundo, pode abrir uma nova era de possibilidades.
O exoesqueleto, supostamente comandado por sinais do cérebro, oferece promessas futuras de mais conforto, mais mobilidade e mais independência para pessoas com deficiência física. A tecnologia tem potencial para destrancar sonhos guardados no campo do impossível.
Dito isso, o cutuque na bola --visto por alguns superatentos--, que consumiu R$ 33 milhões de dinheiro público, traz consigo elementos controversos para um arrazoado respeito e aceitação.
Vendido como "cura", o exoesqueleto se posicionou com a imponência de um avião que abriria fronteiras jamais cruzadas, sobrepôs-se à necessidade de entender a diversidade humana e a urgência de promover inclusão no planeta de hoje, de amanhã e de vários séculos.
É emocionante ver. É gostoso imaginar. É prazeroso acreditar. Porém, mais uma vez, um baú misterioso que guarda salvações foi aberto diante daqueles que sensivelmente se agarram em quaisquer fios de gelatina.
O experimento propagou o andar como algo estritamente motor, bastando vestir um suporte para que o corpo de um lesado medular saia saracoteando como pinto no lixo.
A realidade é brutalmente mais complexa. Ficar em pé e dar uns passinhos, a Rede Sarah de Reabilitação já consegue com êxito há décadas, e de forma mais clara do que o que foi exibido.
Um paraplégico voltar a andar vai implicar intercorrências em um sistema circulatório debilitado, em ossos enfraquecidos, em um tecido dérmico sujeito a feridas.
Tratar de dentro para fora, como os experimentos com células-tronco e estimulação elétrica têm tentado, com menos holofotes, é rumo bem mais certo.
A melhoria da qualidade de vida para os "presos a cadeiras de rodas" --como arrotou ao vivo o narrador Galvão Bueno-- exige uma atenção contínua, plural e menos espetaculosa.
Toda sorte e incentivo à ciência, a todos os corações a esperança e um bocadinho mais de cuidado e respeito com a realidade.